Tortuosos foram os caminhos que conduziram o Brasil a reconhecer a importância da história da África. Em nosso país, enquanto o tráfico atlântico abastecia os portos, fazendas e cidades com africanos de todas as partes, circulavam certos conhecimentos a respeito dos territórios e povos africanos. O interesse, porém, restringia-se a informações práticas que subsidiavam o infame comércio, com a reiteração de um vocabulário altamente racializado. Depois disso, persistiu por muito tempo um eloquente silêncio. Em torno da metade do século XX, embora iniciativas pontuais, como a fundação de centros de pesquisa africanistas, tenham surgido entre nós, a situação manteve-se inalterada.
A superação de tal descaso analítico é tema central de África, margens e oceanos. A obra reflete a emergência de investimentos acadêmicos na formação de especialistas, com desenvolvimento de linhas de pesquisa e produção de um campo de saber capaz de subsidiar o ensino da história daquele continente. Se a partir da década de 1980 a renovação dos estudos sobre a escravidão no Brasil já havia jogado luz sobre a necessidade de pesquisas sobre os africanos da diáspora forçada, foi apenas com a Lei n° 10.639 de 2003 que um interesse mais específico sobre o tema invadiu os estudos acadêmicos no Brasil. E, como mostra África, margens e oceanos, o interesse veio para ficar.
Estruturado em quatro partes e com 16 capítulos, o livro apresenta reflexões de autores nacionais e internacionais, com discussão de perspectivas originais e muito bem anotados. Trata-se, portanto, de uma antologia planejada, com textos que discutem entre si ou se desdobram em problemáticas afins. Cabe, inicialmente, sublinhar o prefácio de Robert Slenes e a introdução dos organizadores. Ambos oferecem um rico panorama dos estudos africanistas e seus desafios no Brasil, ressaltando especialmente o papel dos oceanos Atlântico e Índico. Como notam esses autores, essas vias de contato se tornaram tão profundamente integradoras que poderiam muito bem ser descritas como rios, como sugeriu Alberto Costa e Silva.
A primeira parte do livro coloca os rios-oceanos em relevo, apresentando o panorama geral de integração dos povos banhados pelo Índico, que precedeu em muito a economia do Atlântico, sugerindo a existência de uma economia mundo não eurocentrada. Lição importante, pois recoloca a economia atlântica em uma escala historicamente mais realista. Os dois capítulos seguintes detalham circuitos de trocas comerciais e movimentação de gente, plantas e saberes no mundo do Índico. Já o último se volta para a análise das conexões intracontinentais na África Central, explicitadas pelas demandas escravistas de ambos os oceanos.
A segunda parte do livro estabelece seu foco no Atlântico, discutindo a emergência de identidades, práticas culturais e comerciais nas duas margens desse “rio”. Os capítulos se debruçam sobre a expansão do islã na porção atlântica de Senegal e Serra Leoa, o comércio do ouro estabelecido entre europeus e africanos no Reino do Daomé, as expedições britânicas prospectivas ao longo do rio Níger e, finalmente, sobre a complexidade da formação do candomblé da autodenominada nação Ketu na Bahia em suas conexões com a costa ocidental africana. O fio condutor é a demanda de escravizados em suas múltiplas consequências.
A terceira parte encontra sua inspiração na história social para colocar em relevo a atuação de africanos em diferentes contextos. Os dois primeiros capítulos, ao tratarem de concepções das signares e seus trabalhadores em Saint-Louis e Gorée e do papel das mulheres de elite na apropriação de terras na transição do trabalho escravo em Angola, estabelecem a questão do gênero. O papel das chefias africanas no domínio colonial português dos séculos XVII e XVII é tema do capítulo seguinte. A seção se fecha com as práticas musicais e dançantes no contexto do século XX em Moçambique.
A quarta e última seção oferece um balanço do impacto das novas concepções e abordagens a respeito da história da África tanto no ambiente acadêmico quanto nas práticas didáticas. Os textos discutem novas possibilidades interpretativas para o desenvolvimento da pesquisa acadêmica, mas, sobretudo, avançam para uma discussão sobre produção e ensino de história da África e das políticas públicas de combate ao racismo.
Maria Helena P. T. Machado é professora titular do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP)
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