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Geologia

A anatomia do sal

Imagens microscópicas detalham composição e organização interna de rochas que formam as estruturas dos reservatórios de petróleo do litoral brasileiro

Cristais de sal

Léo Ramos Chaves

Uma camada de sal com 2,2 mil quilômetros (km) de extensão e espessura de até 2 km forma a estrutura das principais reservas de petróleo do Brasil, desde o litoral do Nordeste até o do Sul, a uma profundidade de 1 a 4 km da superfície do mar. Retirar de lá amostras para análises geológicas é caro e difícil. Para os geólogos, uma das formas de conhecer melhor sua estrutura e composição é examinar as galerias de minas e camadas de sal em poços terrestres do norte no estado de Sergipe, geologicamente semelhantes às submarinas e relativamente rasas, a profundidades entre 350 metros (m) e 1.300 m. Estudos recentes nessa área detalharam a estrutura macroscópica e microscópica de diversos tipos de sal e podem ajudar a encontrar novos reservatórios de petróleo e gás e a estimular o desenvolvimento de equipamentos para operar em águas ultraprofundas.

Em um artigo publicado em maio deste ano na revista científica Marine and Petroleum Geology, um grupo de 16 geólogos da Petrobras apresentou 76 imagens que expõem a composição, a organização interna e as áreas de maior ou menor deformação de rochas chamadas evaporitos, de cujos minerais se extrai o sal para consumo humano e fertilizantes para a agricultura. Algumas imagens mostram os testemunhos (amostras) obtidos dos poços e outras foram feitas por meio de uma técnica chamada fotomicrografia, que consiste em uma câmera fotográfica encaixada em um microscópio, com ampliação, de 20 a 100 vezes.

Uma das imagens de testemunhos de sal parece uma fatia generosa de bolo, com sete camadas de massa avermelhada intercaladas com recheio de brigadeiro, mas na verdade trata-se de camadas alternadas de dois minerais, halita branca (cloreto de sódio, o sal de cozinha) e carnalita  vermelha (cloreto de potássio e  magnésio). Outra, que parece um fóssil, na realidade é um  conjunto de cristais de halita cercado por fragmentos de minerais, o chamado silte, formado por partículas menores de grãos de areia.

Os evaporitos podem ser considerados rochas líquidas ou temporárias, por se dissolverem facilmente em contato com a água. “Por essa razão, não é fácil preparar as lâminas de rochas para examinar sob o microscópio, porque as amostras reagem com a umidade do ar e se desfazem”, diz o geólogo húngaro Peter Szatmari, que tem estudado evaporitos na Europa continental, no Reino Unido, nos Estados Unidos, no Canadá e no Brasil desde 1961 e coordenou o grupo da Petrobras. “É preciso polir as amostras com delicadeza e trabalhar em um ambiente muito seco.”

Ao analisar 98 amostras das camadas de sal das minas de Sergipe, os geólogos encontraram colônias de bactérias que extraem oxigênio das moléculas de sulfato (SO4, o S é de enxofre) dos minerais; organismos capazes de viver nesse ambiente inóspito são bastante raros. Também identificaram algo inédito: cristais de quartzo (óxido de silício), mais resistentes que os dos outros dois minerais que os cercam, a gipsita (sulfato de cálcio) e a silvita (cloreto de potássio).

SZATMARI et al. Marine and Petroleum Geology. 2021. O interior do sal (da esq. para a dir.): camadas alternadas de halita branca (Hl) e carnalita vermelha; cristais de halita cercado por silte (SL); e fotomicrografias de um mosaico de carnalita (Cn) e taquidrita (Tc) e goethita (Gt) e de cristais de bischofita (Bh) associados com cristais de carnalitaSZATMARI et al. Marine and Petroleum Geology. 2021.

Das galerias subterrâneas da mina de potássio de Sergipe se extraem cloreto de potássio, usado na produção de fertilizantes. Ali, o mineral predominante, como na bacia de Santos, é a halita (cloreto de sódio), o de maior resistência a deformação entre os cloretos da maioria dos sais que precipitam durante a evaporação da água do mar. “As minas de Sergipe também têm bastante taquidrita, um tipo de cloreto de cálcio e magnésio que se dissolve rapidamente com a umidade do ar, encontrado em quantidade apenas nas margens brasileira e oeste-africana do oceano Atlântico e, fora dessas, somente na Tailândia”, diz Szatmari.

Os depósitos de sal nas margens do trecho sul do oceano Atlântico formaram-se há cerca de 112 milhões de anos, durante a separação da América do Sul da África. À medida que os dois continentes se afastavam, formaram-se grandes depressões, ocupadas por água, rochas e matéria orgânica. Coberto por uma camada de sal, esse material orgânico gerou compostos hidrocarbonetos, principalmente petróleo e gás natural.

Com largura variável de 600 km no litoral paulista e 200 km em Sergipe, a camada de sal protegeu as reservas de petróleo sob o mar. “Por ser mais leve que a água, o petróleo tende a subir para a superfície”, diz Szatmari. “A camada de sal deforma-se sobre os reservatórios como um chapéu sobre a cabeça, evitando o esvaziamento do petróleo, mantém as temperaturas mais baixas, impedindo que todo petróleo se transforme em gás, e restringe o ataque de bactérias. É um selo perfeito.”

O geólogo Renato Darros de Matos, que trabalhou na Petrobras e na Universidade Federal do Rio Grande do Norte e não participou desses estudos, acentua: “Para engenheiros de perfuração e geofísicos, grandes espessuras de sal representam um desafio para a segurança e estabilidade mecânica durante a perfuração dos poços profundos. Já para os geólogos e geofísicos, as grandes espessuras de sal prejudicam a transmissão de ondas sísmicas utilizadas para a produção de imagens de potenciais armadilhas de petróleo”. Portanto, segundo ele, as imagens podem facilitar a busca por petróleo e gás natural.

Iniciada em 2008, a exploração das reservas do chamado pré-sal, principalmente as da bacia sedimentar de Santos, que se estende de Cabo Frio, no Rio de Janeiro, até Florianópolis, em Santa Catarina, fez a produção brasileira saltar de 500 mil barris por dia (bpd) em 1984, como resultado da operação de 4.108 poços, para 1,5 milhão de bpd em 2018, com apenas 77 poços, de acordo com a Petrobras. As reservas já identificadas no litoral são de 33 bilhões de barris, mas a estimativa é de que a quantidade guardada sob o cobertor de sal do litoral possa chegar a 80 bilhões de barris.

Artigos científicos
SZATMARI, P. et al. Petrography, geochemistry and origin of South Atlantic evaporites: The Brazilian side. Marine and Petroleum Geology. v. 127, p. 1-31. mai. 2021.

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