Imprimir PDF Republicar

Humanidades

A busca de uma nova técnica de interpretação

O ator em primeiro plano. É com essa perspectiva que o Lume (Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da Unicamp) investiga, desde 1985, as múltiplas possibilidades de formação do ator teatral. Não se trata apenas de preparar jovens artistas para atuar no palco. O objetivo do Lume é pesquisar as técnicas que constituem a chamada arte de ator, desenvolvendo, assim, novos métodos de trabalho para a criação teatral. Aberto às mais diferentes formas de linguagem e expressão corporal – desde elementos da cultura popular brasileira até experiências de vanguarda – o grupo vem obtendo crescente reconhecimento internacional.

Técnicas e espetáculos criados pelo Lume já foram apresentados em inúmeros países da Europa e da América Latina. A mais importante pesquisa em desenvolvimento pelo Lume é Mímeses Corpórea e a Poesia do Cotidiano. Seu princípio está na observação e na imitação da gestualidade humana. A pesquisa foi apresentada como um projeto temático à FAPESP e desde janeiro de 1997 conta com o apoio da instituição, no valor de R$ 45,6 mil.

Em sua primeira fase, encerrada no ano passado, o projeto compreendeu o confronto de duas metodologias: as técnicas de expressão do Butô – criado no Japão no início da década de 1960, em oposição à rígida tradição cênica do país – desenvolvidas pela coreógrafa e bailarina Anzu Furukawa e o método de Mímeses Corpórea , elaborado pelo próprio Lume.O convite para Anzu Furukawa realizar um intercâmbio com o grupo da Unicamp não foi ao acaso.

“Suas técnicas são diferentes, mas com resultados semelhantes aos que procuramos”, diz a professora Suzi Frankl Sperber, coordenadora do Lume e do projeto temático. Considerada uma das mais importantes representantes do Butô, Anzu Furukawa é autora de dezenas de coreografias apresentadas no circuito internacional de festivais de dança. Seu trabalho é voltado ao mundo inconsciente, procurando fazer com que o corpo fale por si.

Já a Mímeses Corpórea está baseada na observação das pessoas. “Não se trata de uma mera repetição de movimentos”, diz Carlos Roberto Simioni, ator e pesquisador do Lume. “A idéia é que o ator coloque o outro dentro do seu próprio corpo. Assim, os gestos codificados são acoplados às técnicas corpóreas de representação”, aponta Simioni.

Cem anos de solidão
Além da pesquisa sobre o confronto de técnicas, o intercâmbio teve como objetivo a montagem de um espetáculo inspirado na obra Cem Anos de Solidão, do escritor colombiano Gabriel García Márques. Batizada como Afastem-se Vacas que a Vida é Curta, a peça foi apresentada no final de 1997, sendo que a sua estréia aconteceu no Teatro Luís Otávio Burnier (que homenageia o fundador do Lume, morto em 1995), em Campinas.

Para encenar o universo mágico descrito pelo livro de García Márques, o Lume empreendeu uma viagem de pesquisa até a Amazônia. “Resolvemos coletar material nessa região, limítrofe da Colômbia, porque ela é a que mais se aproxima do mundo de Cem Anos de Solidão, conta Suzi Frankl Sperber. Entre abril e maio de 1997, um grupo de atores-pesquisadores esteve em cerca de 30 cidades, coletando informações sobre hábitos e comportamentos dos moradores da região.

Nessa empreitada, os pesquisadores utilizaram todo o tipo de transporte possível: aviões da Força Aérea Brasileira, barcos a motor ou mesmo canoas a remo conduzidas por índios. Assim, eles tomaram contato com o cotidiano dos rincões do país. “Conhecemos pessoas que tinham uma percepção de vida completamente diferente da nossa”, conta Ana Cristina Colla, atriz e pesquisadora do Lume. “Um Brasil completamente novo, cuja riqueza corporal, vocal, textual e humana me encantou profundamente”, acrescenta.

Em cada cidade visitada, os pesquisadores dedicavam muitas horas a conversas com os moradores locais, principalmente os idosos, justamente por terem mais experiências para contar. Sem falar no encontro com tribos indígenas, como os Ianomani. Sua proposta era não deixar passar despercebido nenhum detalhe das narrativas de vida dos moradores da Amazônia, assim como gestos, hábitos e posturas. Tudo era anotado, gravado e, quando possível, fotografado.

O material pesquisado na Amazônia foi a matriz da montagem de Afastem-se Vacas que a Vida é Curta, apresentada entre setembro e dezembro de 1997 pelo interior do Estado de São Paulo. Encenada com sete atores, a peça combina figurinos e expressões da cultura brasileira com situações insólitas. A peça, entretanto, não esgotou o material coletado na viagem para a Amazônia.

“Temos uma pesquisa rica e vasta que pretendemos utilizar em novos trabalhos”, afirma Carlos Simioni. É o caso de inúmeras canções da região, que fazem parte do mais novo espetáculo do grupo, Café com Queijo, com estréia prevista para o final deste mês de março, no Teatro do Lume, em Campinas. “A pesquisa da Mímeses Corpórea tem ainda de subir novos degraus até que estejamos em condições de sintetizar uma nova técnica”, diz Simioni.

Antropologia teatral
O trabalho desenvolvido atualmente pelo Lume dá continuidade às idéias que alimentaram a sua criação. O centro foi idealizado pelo diretor Luís Otávio Burnier, após ter passado oito anos em estudo e pesquisa pela Europa – quando teve contato com importantes nomes da interpretação moderna, como Etienne Decroux, Eugenio Barba, Jerzy Grotowski, Ives Lebreton e Jacques Lecoq, além de mestres do teatro oriental, como Noh, Kabuki e Kathakali. Retornando ao Brasil, Burnier resolveu investir no projeto de criação de um centro de pesquisa teatral cujo foco fosse a arte de ator.

A proposta tornou-se realidade em 1985, quando o Lume foi estabelecido por Burnier, Denise Garcia, Carlos Simioni e Ricardo Puccetti. Institucionalmente, o Lume é um núcleo da Pró-Reitoria de Desenvolvimento Universitário da Unicamp. “O projeto de Luís Otávio Burnier era a criação de uma antropologia teatral”, diz Suzi Frankl Sperber, que assumiu a coordenação do núcleo em 1996. “Sua proposta consistia no aproveitamento das técnicas aprendidas na Europa junto com elementos da cultura brasileira”, conta a professora.

“Ele investiu na hipótese de que o universo cultural brasileiro, principalmente no que tem de ritualístico, traria elementos para a criação teatral.” Dentro dessa perspectiva, seria necessária a criação de uma nova concepção de ator. “Era preciso criar um ator independente, investindo-se, assim, na busca dos elementos que seriam necessários para a formação do corpo desse ator”, afirma Suzi Sperber. Essa foi a razão da constituição do Lume como um centro formado por atores-pesquisadores, envolvidos num projeto de longo prazo. “O ator precisa ter o conhecimento das suas potencialidades. Ele precisa saber como expressar as variadas energias que estão no seu próprio corpo”, aponta Carlos Simioni. “Nossas pesquisas procuram o desenvolvimento autônomo de cada ator, fazendo com que ele seja o teorizador da sua própria prática”, diz Suzi Sperber.

A concepção de teatro do Lume, porém, não extingue a função do diretor, mas exige uma nova postura da sua parte. “O diretor continua existindo. Mas o seu papel passa a ser o de um orientador”, diz Suzi Sperber. “Ele não é orientador que impõe o seu projeto, mas aquele que sabe discernir o que é novo e interessante no projeto do seu orientando”, aponta a professora. “É como se fosse uma colcha de retalhos. Cada pedaço de tecido é a proposta de um ator. Cabe ao diretor costurar esses retalhos”, compara Carlos Simioni. “Antes da produção artística, nossa preocupação é pesquisar o homem e o seu corpo em situações de representação”, diz Suzi Sperber. Assim, os espetáculos montados pelo Lume são uma conseqüência natural da pesquisa sobre o fazer artístico. “Técnica e criação são inseparáveis”, aponta a professora.

Técnicas em pesquisa
O Lume está sediado num casarão próximo à Unicamp, que já se transformou num laboratório de experimentos teatrais. São comuns os festivais com grupos da região, ou mesmo do exterior. Diariamente, os atores-pesquisadores do Lume enfrentam longas jornadas de treinamento e pesquisa da expressão corporal e teatral. Além da Mímeses Corpórea, o grupo desenvolve outras duas linhas de pesquisa: a Dança Pessoal e o Clown e a Utilização Cômica do Corpo. A Dança Pessoal visa a elaboração e a codificação de uma técnica pessoal de representação que tenha como base a dilatação e a dinamização das energias potenciais do ator.

“É uma técnica que permite ao ator trazer para fora sentimentos e emoções de todos os tipos, mesmo que eles sejam monstruosos”, diz Carlos Simioni. “Com a Dança Pessoal, temos o ator e as suas emoções dilatados corporalmente. Assim, o ator deve saber controlar essas reações.” Já o Clown e a Utilização Cômica do Corpo tem como base técnicas mais antigas da arte dos palhaços. “O clown é profundamente humano. Ele trabalha com energias sutis, reais e não dilatadas. A técnica do clown faz com que o ator se revele”, diz o ator e pesquisador. “Não se trata simplesmente de uma pesquisa para ser palhaço.

Mas a busca de uma compreensão do ser humano despojado. O clown é um ser despido para poder reagir ao mundo”, afirma Suzi Sperber. Embora as técnicas desenvolvidas pelo Lume trabalhem com princípios diferentes, as três linhas convergem para a arte de ator, possibilitando, assim, pesquisasem conjunto. Dado o caráter experimental do trabalho, no entanto, nem sempre é possível visualizar o resultado. “Nós não partimos de certezas, mas de suspeitas”, aponta Suzi Sperber. “É verdade que projetos que começam com tudo já delineado são mais confortáveis. Mas eles também não trazem nada de novo.”

Dessa maneira, conforme avança em suas experiências teatrais, o Lume também vem teorizando o seu trabalho. Um esboço das suas propostas pode ser conferido no primeiro número da Revista do Lume, publicada no final do ano passado. O grupo também dispõe de uma página na Internet (www. unicamp.br/lume/). Outro fruto do trabalho do Lume é o CD-ROM Lume – a arte de não interpretar como poesia corpórea do ator, produzido pelo ator e pesquisador Renato Ferracini, como parte da sua dissertação de mestrado sobre a proposta do grupo.

O Lume está programando algumas apresentações do seu novo espetáculo, Café com Queijo, para a cidade de São Paulo, em abril. Também em abril acontece o festival Tem Cena na Vila 2, na sua sede em Campinas, com a participação dos grupos Companhia Sarau, Boa Companhia, Barracão Teatro e Seres de Luz. Para o próximo ano, o grupo pretende Publicar em livro a sua metodologia de trabalho.
A pesquisadora Suzi Frankl Sperber, 60, anos é diplomada em Letras, pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, com mestrado e doutorado em Teoria Literária, na mesma instituição. É professora do Instituto de Estudos da Linguagem, da Unicamp, e coordenadora do Lume, orientando trabalhos na área de decodificação de linguagem.

Republicar