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Urbanismo

A busca por espaços livres

Desenvolvimento urbano recente tem sido marcado por contradições envolvendo o uso de áreas abertas

São Paulo (SP): edifícios com mais de quatro andares predominam em menos de 15% das quadras

Laboratório Quadro do Paisagismo da FAU-USP

Nos últimos 30 anos, as cidades brasileiras de médio e grande porte registraram significativas transformações, rompendo com padrões de forma e de uso que prevaleceram no século XX. Estudos conduzidos em 70 municípios, de todas as regiões do país, revelam que nesse período houve a proliferação de loteamentos e condomínios fechados ao mesmo tempo que também se ampliou a apropriação do espaço público. Desde 2006, o Laboratório Quadro do Paisagismo (Lab Quapá) da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) realiza pesquisas de amplitude nacional para analisar como os espaços livres urbanos se desenvolvem, propondo diretrizes práticas às gestões municipais sobre como melhorar seu uso. “Uma das constatações é que populações de diferentes cidades passaram a ocupar esses espaços de maneiras diversas, para fins políticos, religiosos, atividades físicas e de lazer”, afirma Eugênio Fernandes Queiroga, professor da FAU-USP e coordenador de projeto de pesquisa sobre o tema.

A pesquisa trabalha com uma concepção de espaço livre que inclui não apenas zonas de conservação ambiental, mas envolve territórios sem edificações como, por exemplo, determinadas áreas de quintais, pistas de aeroportos, estações de tratamento de água e esgoto, ruas e avenidas. Foi na década de 1970, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que a população urbana brasileira superou a rural, com 56% dos habitantes passando a viver em cidades. Nessa época, explica Queiroga, os espaços livres de melhor qualidade predominavam, sobretudo, em bairros de elite, como Casa Forte, em Recife, Graça, em Salvador, ou Jardim América, em São Paulo. O sistema viário era concebido exclusivamente para a circulação de veículos automotivos, sem incluir pedestres e bicicletas. “No século XXI, há uma busca pela distribuição mais equânime dos espaços livres públicos no território”, resume o pesquisador, lembrando que algumas diretrizes elaboradas pelo projeto em relação ao uso dos espaços livres foram incorporadas ao plano diretor de São Paulo, em 2014.

Segundo o pesquisador, ao contrário daquela época, hoje os espaços livres começam a se disseminar por outras regiões das cidades. Algumas características são comuns a quase todos os municípios analisados, independentemente do tamanho, e estão presentes em todas as capitais. Uma delas é que as ruas funcionam como os principais elementos dos sistemas de espaços livres urbanos, no âmbito público, com exceção de Florianópolis e do Rio, onde há forte presença de áreas verdes. Junto com os espaços livres privados, constituem a maioria dos espaços desimpedidos nas cidades. “Apesar de ainda serem minoritários na paisagem urbana, constatamos a proliferação, em diferentes zonas das cidades, de outras categorias de espaços livres públicos, de uso comum e compartilhado por toda a população, como parques, praças, jardins, calçadões e orlas”, observa o pesquisador.

De acordo com Queiroga, apesar de a verticalização ser uma marca crescente da paisagem urbana, com a construção cada vez mais frequente de edifícios com mais de quatro andares, os municípios ainda são, sobretudo, horizontais. Prevalecem nos territórios estudados construções com até três andares. “Diferentemente do que se imagina, em São Paulo, por exemplo, menos de 15% das quadras contam com a predominância de edifícios com mais de quatro pavimentos”, informa.

A arborização das cidades não costuma ultrapassar 10% dos espaços vazios dentro das quadras e grandes extensões de cobertura vegetal são comuns apenas em parques, praças, terrenos baldios e áreas de preservação ambiental. “Algumas exceções podem ser encontradas em bairros de elite que possuem calçadas mais largas e, com isso, espaço ampliado para o plantio de árvores, como são os Jardins, em São Paulo, o Jardim Oceânico, no Rio de Janeiro, e Jurerê, em Florianópolis”, destaca. Por outro lado, em distritos periféricos ocupados principalmente pela população de baixa renda tendem a prevalecer espaços livres que se limitam a ruas, pequenas praças e campos de futebol.

Outro movimento comum identificado pelo projeto envolve a expansão de loteamentos (divisão de glebas em lotes destinados à edificação) e condomínios fechados, que atendem às demandas de estratos de renda média e alta da população. “Porém, essa dinâmica não significa, necessariamente, que as pessoas deixaram de frequentar os espaços públicos. Ao contrário, constatamos que ela foi acompanhada de uma maior apropriação desses espaços, como aconteceu, por exemplo, após junho de 2013, quando ocorreram manifestações políticas em ruas e praças de cidades de todos os portes”, sustenta Queiroga. Nesse sentido, o projeto detectou a criação de novos espaços destinados ao encontro e convívio público, para além de áreas convencionais como praças e parques.

Silvio Soares Macedo

Em São Paulo, por exemplo, a Lei municipal nº 16.833, de fevereiro deste ano, transformou o elevado João Goulart, o Minhocão, em parque municipal, ampliando a já existente restrição ao tráfego de carros e o horário destinado ao lazer. Antes disso, em junho de 2016, apoiando-se na Lei federal nº 2.587, sancionada em janeiro de 2012 com o objetivo de promover o desenvolvimento sustentável da cidade e garantir equidade no uso do espaço público, a prefeitura paulistana havia criado o programa Ruas Abertas. Por intermédio desse programa, ruas e avenidas, como a Paulista, passaram a proibir o fluxo de carros em alguns domingos e feriados, prática que hoje funciona semanalmente, incentivando a circulação de pedestres, atividades físicas e de lazer. “Viadutos ou avenidas que se transformam em parques sem perder seu papel inicial, destinado à circulação de veículos, manifestam níveis de plurifuncionalidade que não estavam previstos nos seus desenhos iniciais”, observa Queiroga.

Entrevista: Eugênio Fernandes Queiroga
00:00 / 25:31

Os exemplos se repetem em outros lugares, informa Eneida Maria Souza Mendonça, professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Desde 2012, a prefeitura de Vitória, por exemplo, restringe o acesso de carros a uma das pistas de uma avenida importante, na praia de Camburi, com a finalidade de estimular práticas esportivas e lazer. No Rio de Janeiro, praças, calçadões, largos e principalmente viadutos, que oferecem proteção contra o sol, também têm sido utilizados para a realização de feiras, eventos e aulas, explica Vera Tangari, professora do Departamento de Projetos de Arquitetura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A pesquisadora lembra que, no Rio, as periferias e os morros, que concentram a população de baixa renda, cresceram mais do que as áreas centrais. Mas essa expansão não foi acompanhada pela criação de novos espaços livres.

Laboratório Quadro do Paisagismo da FAU-USP Manaus (AM) mantém parques para evitar enchentes e sanear córregosLaboratório Quadro do Paisagismo da FAU-USP

Em Florianópolis as praias também desempenham função importante como espaço livre destinado ao lazer, observa Alina Gonçalves Santiago, professora do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). De acordo com ela, áreas livres como praças e parques não representam 1% do total do município. “E a prefeitura justifica os baixos investimentos em espaços dessa ordem pela existência das praias, que cumpririam a função de oferecer espaços de lazer à população”, conta. Apesar disso, a capital catarinense dispõe de extensa área de preservação ambiental, que cobre cerca de 50% do seu território. Boa parte dela, no entanto, está desconectada da malha urbana e não oferece estrutura de acesso, como ruas para entrada de carros, estacionamentos ou trilhas para caminhadas.

Século dos parques
Se na Europa o século XIX ficou conhecido como o período de proliferação de parques urbanos, no Brasil, o desenvolvimento dessas áreas ganhou impulso somente a partir da segunda metade do século passado. Queiroga aponta a criação de parques como outra tendência recente no país e informa que a dinâmica deriva da Constituição Federal de 1988, com sua previsão de criação de espaços de conservação ambiental dentro das cidades. De acordo com o arquiteto, Goiânia é a capital que mais destinou áreas para parques neste século. “A profusão de parques ocorreu principalmente nas capitais, que difundiram essa cultura urbanística e paisagística para cidades menores”, enfatiza, lembrando que o estudo identificou a existência de parques até mesmo em municípios pequenos como Engenheiro Coelho, na Região Metropolitana de Campinas (SP), que possui cerca de 20 mil habitantes.

Silvio Soares Macedo

Na avaliação do pesquisador, a criação de áreas verdes urbanas gera, entre outras consequências, a valorização da ideia de conservação ambiental na sociedade. Porém, para que a conservação efetivamente ocorra, é fundamental que os espaços verdes ofereçam estrutura de acesso. “Não adianta criar áreas verdes e deixá-las relegadas, como é o caso do maior parque municipal de São Paulo, o Anhanguera, que possui 9 milhões de metros quadrados, mas sua zona de visitação não chega a um terço do tamanho do Parque Ibirapuera. Com isso, ninguém o conhece”, analisa.

Já a criação de jardins públicos resulta de motivações distintas, variando conforme a cidade. Assim, municípios como Curitiba (PR), Manaus (AM), Rio Branco (AC) e Sorocaba (SP), explica Queiroga, desenvolveram seus parques a partir da necessidade de evitar enchentes e sanear córregos, enquanto em Campo Grande (MS) e Maringá (PR) esses equipamentos são resultado de ações de planejamento urbano, que reservaram espaços livres prevendo suas criações futuras. Maringá, por exemplo, teve seus espaços livres planejados desde a fundação, em 1947, quando determinou a construção de calçadas com 3 a 5 metros de largura e reservou áreas para arborização, além de parques constituídos como estratégia de conservação das nascentes. Queiroga recorda que o Código Florestal, atualizado pela Lei federal nº 12.727, de 2012, estipula que devem ser deixadas margens de 30 metros nas bordas de rios com menos de 10 metros de largura. “O planejamento de Maringá vai além e designa a reserva de margens de 60 metros, o que, com o passar dos anos, permite a construção de parques lineares nas laterais dos rios”, diz o pesquisador, ao indicar Campo Grande como outra cidade que teve seus espaços livres bem planejados. Desde os anos 1960, além das áreas reservadas à criação de parques, o município também concebeu extensas avenidas, com canteiros centrais de até 20 metros, o que, com o tempo, viabilizou a construção de ciclovias e áreas exclusivas para pedestres.

Laboratório Quadro do Paisagismo da FAU-USP Avenidas em Campo Grande (MS): canteiros centrais de até 20 metros de largura viabilizam a inclusão de cicloviasLaboratório Quadro do Paisagismo da FAU-USP

Como contraponto, Queiroga observa que essas duas cidades se distanciam de Brasília. Na capital federal, constata ele, apenas a região do plano piloto foi bem planejada. Na cidade satélite de Águas Claras, por exemplo, a maior parte da produção de novos espaços urbanos envolve a construção de prédios com mais de 20 andares, que oferecem lazer interno e calçadas estreitas, inadequadas à circulação de pedestres. Na mesma linha, Belo Horizonte também possui espaços livres planejados sobretudo em sua área central, avalia Staël de Alvarenga Pereira Costa, professora da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Mas, em bairros periféricos, as únicas áreas desimpedidas são as ruas e os campos de futebol.”

Silvio Soares Macedo, da FAU-USP e responsável pela coordenação do projeto de pesquisa até 2016, conta que, para mapear a situação dos espaços livres, a equipe utilizou imagens de satélite disponíveis na internet, que foram incorporadas a um sistema de georreferenciamento. Coube à equipe do projeto – que somente em São Paulo reuniu cerca de 25 pessoas, entre professores e alunos de graduação e pós-graduação – identificar as características de cada quadra de todas as cidades analisadas, incluindo seus níveis de arborização, a presença de edifícios, jardins ou calçadas largas.

Proliferação de condomínios fechados foi acompanhada por maior ocupação do espaço público

Com a cartografia pronta, o laboratório da FAU organizou mais de 40 oficinas em universidades parceiras e também com gestores do poder municipal. Como parte das atividades, foram feitos sobrevoos nas regiões pesquisadas, de maneira a permitir uma análise mais próxima das zonas inicialmente mapeadas pelo satélite. A articulação com as prefeituras envolveu as cidades paulistas de Santos, São José dos Campos, Sorocaba e São Paulo. “Nessas reuniões, mostramos aos profissionais responsáveis pelo desenvolvimento urbano como podem utilizar os dados levantados pelo projeto para melhorar os sistemas de espaços livres dessas cidades, por meio do desenvolvimento de planos diretores e a elaboração de legislações municipais para regular a atuação dos principais agentes de transformação do território”, relata Queiroga.

Como resultado desses encontros com o poder municipal, uma das principais conquistas se deu em 2014, com a inclusão, no plano diretor de São Paulo, de conceitos relativos aos sistemas de espaços livres que vão além da simples criação de áreas verdes. “Conseguimos, por exemplo, que o plano paulistano, instrumento básico da política de desenvolvimento urbano, determinasse a criação de espaços de fruição pública em propriedades privadas. Agora, as incorporadoras são obrigadas a reservar parte dos seus projetos para uso público, criando, por exemplo, áreas de passagens ou para descanso de pedestres dentro das construções que empreendem”, relata. Esse tipo de medida, explica Queiroga, considera o adensamento da população, permitindo que novas construções comportem a circulação crescente de pedestres no meio urbano.

Ponto fora da curva
Macapá não pode ser acessada por terra, apenas por meio de escassas linhas de aviões ou barcos, e isso fez com que a cidade vivenciasse com menos intensidade as transformações identificadas em outras regiões do país. Fundada no século XVIII a partir de um plano diretor elaborado no período colonial, a capital do Amapá é considerada ponto estratégico por estar situada na entrada do rio Amazonas, oferecendo conexões fluviais com Belém, Manaus e acesso ao oceano Atlântico. Pedro Mergulhão, professor do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Amapá (Unifap), afirma que os planos diretores da cidade foram elaborados em sintonia com o primeiro, mantendo o padrão de largura das vias e quadras perpendiculares ao rio Amazonas.

“Assim, parte da paisagem urbana do período colonial foi preservada, incluindo as praças e as margens ribeirinhas que podem ser acessadas pela população, diferentemente de Belém, no Pará, edificada de costas para o rio”, explica. A exemplo do que ocorre na maior parte do estado, e diferentemente de outras capitais, Macapá ainda possui extensas áreas desocupadas, favorecendo o planejamento de espaços livres capazes de assegurar melhor qualidade de vida à população.

Macapá (AP) possui espaços livres extensos, favorecendo a criação futura

Macedo, que começou a pesquisar o tema em meados dos anos 1990, explica que, até então, os projetos urbanísticos tendiam a valorizar a criação de áreas verdes. Porém, ele defende que pensar o desenvolvimento urbano a partir dos espaços livres faz mais sentido, na medida em que são esses espaços os responsáveis por estruturar a qualidade de vida nas cidades, determinando a incidência de luz e a circulação de ar. Ao analisar as cidades a partir do desenvolvimento dos espaços livres, Vera Tangari observa que os estudos conduzidos pelo Lab Quapá ajudaram a criar uma escola brasileira de morfologia urbana. “Antes, esse campo de estudos era interpretado por meio de análises históricas da arquitetura, tendo como parâmetro o desenvolvimento das cidades europeias”, diz. De acordo com ela, análises baseadas na evolução dos espaços livres propiciam melhor entendimento da configuração das cidades brasileiras, mais próximas dos municípios latino-americanos. A partir dessa constatação, pesquisadores do projeto pretendem criar um observatório latino-americano da paisagem urbana.

Projeto
Os sistemas de espaços livres na constituição da forma urbana contemporânea no Brasil: Produção e apropriação – QUAPA-SEL II (2012-2018) (nº 11/51260-7); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Eugenio Fernandes Queiroga (USP); Investimento R$ 585.123,33.

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