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ASTRONÁUTICA

A conquista privada do Cosmo

Cápsula da empresa SpaceX voa até a Estação Espacial Internacional e pode devolver aos Estados Unidos a capacidade de colocar em órbita seres humanos

O foguete Falcon 9, pronto para ir ao espaço, com a cápsula Crew Dragon no topo

Joel Kolwsky/NASA

Eram 2 horas e 49 minutos da madrugada de 2 de março, na Flórida, Estados Unidos, quando foram acionados os motores do foguete Falcon 9, produzido pela empresa SpaceX, do bilionário e entusiasta de viagens espaciais Elon Musk. De uma base no Centro Espacial Kennedy, partia para um teste inaugural a primeira cápsula projetada e desenvolvida por uma companhia privada para levar seres humanos ao espaço. Produzida sob a supervisão da Nasa, a agência espacial norte-americana, a Crew Dragon comporta sete pessoas. Naquele sábado, levava apenas um manequim portando o traje espacial da empresa com sensores para medir a aceleração a que um astronauta seria submetido no voo.

Três minutos após o lançamento, o Falcon 9 já se encontrava a 90 quilômetros (km) de altura e deixava para trás seu primeiro estágio, que pousaria para ser reutilizado em outra missão. O motor do segundo estágio impulsionou a cápsula a até 200 km de altitude e a cerca de 27 mil quilômetros por hora. Nesse momento, aos 10 minutos de voo, um globo terrestre de pelúcia passou a flutuar ao lado do manequim, apelidado de Ripley em homenagem à personagem da atriz Sigourney Weaver no filme Alien (1979). A Crew Dragon estava no espaço. No dia seguinte a cápsula se conectaria de modo autônomo à Estação Espacial Internacional (ISS), antes de retornar à Terra em 8 de março e ser resgatada no Atlântico, próximo à costa da Flórida. Após o restauro, ela deverá ser usada em outro voo-teste para avaliar os dispositivos de segurança em caso de falha no lançamento. As cápsulas Crew Dragon, depois de um voo, ainda podem servir para o transporte de carga.

Entrevista: Lucas Fonseca
00:00 / 21:28

O teste da Crew Dragon é um feito inédito e duplamente simbólico. Demonstra que uma empresa comercial alcançou maturidade tecnológica para realizar voos até a órbita terrestre com eficiência, segurança e um custo inferior ao de programas tradicionais das agências espaciais governamentais. Também indica que os Estados Unidos estão perto de recuperar a autonomia para levar seres humanos ao espaço por conta própria. Hoje o país depende dos foguetes russos Soyuz.

“O lançamento bem-sucedido de hoje marca um novo capítulo em excelência americana, deixando-nos mais perto de, outra vez, fazer astronautas americanos voarem em foguetes americanos a partir de solo americano”, escreveu James Bridenstine, diretor da Nasa, no Twitter após o lançamento. Mais tarde, em entrevista à imprensa, ele foi mais conciliador: “Queremos ter certeza de que manteremos nossa parceria com a Rússia, forte desde a era Apollo-Soyuz, mas também queremos ter certeza de que temos capacidade própria de ir à Estação Espacial Internacional e retornar”. A parceria da Nasa com a SpaceX integra o new space, modelo de negócios em que a agência espacial compra produtos e serviços de empresas privadas.

Não é a primeira vez que uma cápsula da SpaceX aporta na ISS. De 2012 a 2018, uma versão mais simples – a Dragon, destinada ao transporte de carga – realizou 15 voos e atracou 14 vezes à estação, um laboratório situado a uma altitude que varia de 330 km a 435 km, na órbita baixa do planeta, essencial para experimentos em ambiente de microgravidade e a investigação dos efeitos de longos períodos no espaço sobre o corpo humano. Sua construção e manutenção consumiram US$ 150 bilhões – um terço, em viagens para reabastecimento e troca de tripulação.

NASA Chegada da cápsula à Estação Espacial InternacionalNASA

A fim de baixar os custos, a Nasa contratou em 2008 os voos da SpaceX e de um consórcio concorrente, a United Launch Alliance (ULA), formado pela Boeing e pela Lockheed Martin, fabricantes de aviões comerciais e militares, satélites e mísseis. As 12 primeiras viagens da SpaceX saíram por US$ 1,6 bilhão, dinheiro que ajudou a evitar a falência da empresa espacial de Musk, também fundador da fabricante de carros elétricos Tesla (ver Pesquisa FAPESP nº 265).

Há uma grande diferença entre transportar alimentos e equipamentos ou astronautas. No segundo caso, as exigências de segurança e controle ambiental da cabine (como pressão e temperatura) são bem mais rigorosas. A aceleração do foguete pode levar o corpo dos tripulantes ao limite do suportável. No caso do Falcon 9, o empuxo equivale ao de cinco Boeing 747 com motores à plena força, capaz de pôr 22,8 toneladas na órbita baixa da Terra (até 2 mil km de altura). Além disso, mecanismos de controle e propulsão têm de ser extremamente confiáveis, com sistemas redundantes.

“Fazer um módulo autônomo de transporte de astronautas chegar à ISS é um grande feito”, afirma o engenheiro de infraestrutura aeronáutica Carlos Augusto Teixeira de Moura, presidente da Agência Espacial Brasileira (AEB). “Sair do nível de transporte de cargas para o de tripulantes exige a superação de uma série de desafios técnicos, o que torna o projeto extremamente caro”, diz.

Há oito anos os norte-americanos dependem dos russos para ir à ISS, a um custo cada vez maior (US$ 80 milhões por assento). De 1981 a 2011, os astronautas da Nasa chegavam lá em ônibus espaciais, mais confortáveis, sofisticados e, sobretudo, caros. Eles levavam até sete pessoas e eram mais versáteis – podiam trazer satélites de volta à Terra ou ser usados no reparo do telescópio Hubble. Em 135 voos, houve dois acidentes: a explosão do Challenger, em 1986, e a do Columbia, em 2003. Cada viagem custava de US$ 450 milhões a US$ 1,5 bilhão. Com os anos, elas consumiram boa parte do orçamento da Nasa.

NASA Lançamento do Atlantis, o quarto ônibus espacial norte-americano, em 3 de outubro de 1985NASA

“Os ônibus espaciais eram como uma Ferrari”, compara Oswaldo Loureda, doutor em engenharia aeroespacial e professor da Universidade Federal da Integração Latino-americana (Unila), em Foz do Iguaçu, Paraná. “Seus motores eram uma obra de arte da engenharia, mas cada um custava quase US$ 1 bilhão e, após cada viagem, exigia revisões e reparos que podiam durar um ano”, conta Loureda, também fundador e diretor-técnico da Acrux Aerospace Technologies, startup brasileira especializada na produção de pequenos foguetes, drones e estruturas para microssatélites.

Os russos tiveram seu ônibus espacial, o Buran, que voou apenas uma vez. O preço levou-os a optar pelos foguetes Soyuz, robustos, confiáveis e baratos – o voo sai por US$ 50 milhões. Em diferentes versões, o Soyuz foi ao espaço 1.700 vezes desde 1966, com raros acidentes.

“As naves Soyuz nunca prezaram pelo conforto dos viajantes”, conta o engenheiro aeroespacial Lucas Fonseca. Ex-integrante da missão Rosetta, da Agência Espacial Europeia (ESA), Fonseca dirige a Airvantis, empresa de tecnologia aeroespacial voltada para a produção de microssatélites e apoiadora da missão brasileira Garatéa-L, que pretende levar um deles à órbita da Lua. “Na Soyuz, os tripulantes são submetidos a acelerações próximas ao limite do suportável.”

Com a Crew Dragon, a SpaceX promete mais conforto a um custo mais baixo. Em março, enquanto a cápsula permaneceu no espaço, o astronauta canadense David Saint-Jacques, o primeiro tripulante da ISS a visitá-la, descreveu-a como “uma experiência de ‘classe executiva’”.

“O voo da Crew Dragon à ISS serviu como teste de validação da tecnologia e do modelo concorrencial”, afirma o engenheiro e empreendedor brasileiro Sidney Nakahodo, cofundador e diretor-executivo da New York Space Alliance, startup sediada nos Estados Unidos que fomenta o desenvolvimento de startups espaciais e atua para facilitar a transferência de tecnologia da Nasa para as empresas. “O evento é um marco na era espacial. A SpaceX mostrou ser capaz de atender os requisitos da Nasa e que problemas tão complexos podem ter soluções oferecidas pelo mercado”, afirma.

Outros dois voos da Crew Dragon estão planejados para breve. No primeiro, a cápsula, sem tripulantes, simulará um abortamento de missão após o lançamento. Se os sistemas de segurança funcionarem como o esperado, em julho, os astronautas Robert Behnken e Douglas Hurley devem usá-la para ir à ISS. Ainda este ano, a cápsula de transporte de astronautas CST-100 Starliner, da Boeing, projetada para ser reutilizável, deve realizar seu primeiro voo não tripulado.

NASA Módulo russo Soyuz, em viagem de retorno da Estação Espacial Internacional para a Terra em abril de 2006NASA

A aposta na SpaceX e na Boeing é parte do programa Commercial Crew, da Nasa. Iniciado há uma década, ele visa reduzir os gastos com projetos ao comprar produtos desenvolvidos e testados por novas empresas do setor aeroespacial. Nele, a agência identifica uma necessidade a ser atendida – por exemplo, a construção de um módulo de transporte –, determina as características do produto e, em geral, um limite a ser gasto. A execução fica por conta de uma ou mais empresas vencedoras da licitação, que escolhem a tecnologia de manufatura e o modelo de negócio.

É uma estratégia diferente da seguida pelas agências espaciais desde a Guerra Fria, quando a Nasa e a agência espacial da então União Soviética, a Rosaviakosmos (hoje Roscosmos), não poupavam esforços e recursos. Nos Estados Unidos, a Nasa projetava um foguete ou uma cápsula do início ao fim e contratava uma empresa para construí-la, usando a infraestrutura e técnicos da agência. Nesse sistema, o old space, não havia limite de gasto. Adotando a política de preços cost-plus, a Nasa pagava o custo do desenvolvimento e uma porcentagem de lucro.

Os princípios do new space surgiram nos anos 1970 e tomaram corpo nas duas últimas décadas com a criação de empresas como a Blue Origin, do multibilionário Jeff Bezos, dono da Amazon; a SpaceX, de Elon Musk; e Virgin Galactic, do magnata britânico Richard Branson. “Na essência, são empresas de tecnologia de gestão enxuta que propõem modelos de negócio próprios e sustentáveis, baseados em atividades de infraestrutura espacial. Elas não dependem dos ensejos governamentais, mas podem ter o governo como cliente”, explica Fonseca, da Airvantis. Essas empresas nasceram com a intenção de baratear o acesso ao espaço e já são cerca de 500 no mundo – poucas no Brasil, como a Airvantis e a Acrux.

“Há um movimento disruptivo rápido na indústria aeroespacial”, afirma Loureda, da Acrux. Caso avance, o novo modelo pode complicar a vida das agências que operam à moda antiga. Para alguns especialistas, seria uma chance de negócio para países sem tradição na área espacial. “Esse movimento permite envolver o setor privado no desenvolvimento de projetos que, a priori, não se sabe quanto vão custar e antes ficavam a cargo das agências governamentais”, comenta Luiz Gylvan Meira Filho, presidente da AEB de 1994 a 2001. “Isso pode estimular empresas brasileiras a atuarem em atividades que não são do interesse de órgãos governamentais locais.”

Moura, da AEB, também vê no new space uma oportunidade. Há no Brasil cursos de engenharia aeroespacial e uma infraestrutura que existe em poucos países, como o laboratório para a montagem de satélites do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e o Centro de Lançamento de Alcântara, no Maranhão. Caso o Congresso brasileiro e o norte-americano aprovem o acordo de salvaguardas tecnológicas assinado em março, Alcântara pode despertar o interesse de países que queiram colocar satélites em órbita a custo mais atraente e, por exemplo, impulsionar o desenvolvimento de empresas que atuem no apoio a lançamentos. “O Brasil é um grande comprador de serviços espaciais. Temos de aproveitar o embalo do new space para nos tornarmos fornecedores”, afirma.

As empresas brasileiras poderiam atuar ainda no fornecimento de equipamentos de satélites, pequenos lançadores e experimentos em microgravidade. Para que isso ocorra, lembra Nakahodo, o desafio do Brasil é criar um ambiente favorável aos empreendedores. Loureda, da Acrux, afirma: “É o momento de o país decidir se vai ser ator ou espectador”.

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