O que nos permite, hoje, afirmar que o que aconteceu na vida política brasileira em 2016, na ocasião do impeachment da presidenta Dilma Rousseff (PT), foi um golpe? Ou ter a certeza de que em 1964 foi um golpe militar, e não uma revolução, que instaurou uma ditadura por 21 anos no Brasil?
Newton Bignotto persegue em seu livro a gênese histórica da ideia de golpe de Estado a partir do que ele chama de “camadas de significado” que vão se agregando ao longo dos séculos. Não se trata de fazer um recenseamento exaustivo das ocasiões históricas em que sabidamente ocorreu um golpe de Estado, mas de eleger alguns momentos marcantes na história do Ocidente e simultaneamente acompanhar a análise filosófica desses momentos – algumas dessas análises já são clássicas, como a que Karl Marx (1818-1883) faz do 18 Brumário, mas outras, como a de Madame de Staël (1766-1817) sobre o Terror que se seguiu à Revolução Francesa, são pouco conhecidas.
Bignotto descreve, por exemplo, acontecimentos como a conjuração de Catilina (108 a.C.-62 a.C.) e simultaneamente apresenta as análises de um de seus personagens, o filósofo Cícero (106 a.C.-43 a.C.); narra o complô contra os Médici na Florença de 1478 (a chamada conjuração dos Paz-zi), o exílio de Maquiavel (1469-1527), acusado de conspiração contra a mesma família em 1512, e as análises que Maquiavel faz desses acontecimentos; o golpe de Luís Napoleão (1808-1873) em 1851; e a leitura de Victor Hugo (1802-1885). Assim, combina análise rigorosa de ideias com uma narrativa viva de acontecimentos históricos, num estilo literário que torna a leitura particularmente prazerosa.
Dentre esses momentos históricos e teóricos, há dois que são particularmente importantes para Bignotto. A análise que Maquiavel faz das conspirações, porque fornece as balizas conceituais do livro, sobretudo o par conceitual conquista/manutenção do poder, ferramenta de interpretação de outros golpes. E, em segundo lugar, o golpe de Napoleão Bonaparte (1769-1821), que põe fim à Revolução Francesa (1789-1799), porque fornece um modelo paradigmático para a tópica dos golpes de Estado, instaurando o que entendemos hoje por golpe, relacionado sobretudo a um atentado às leis e à Constituição. Mas é importante mencionar ainda a recuperação da obra de Gabriel Naudé (1600-1653), que fornece uma camada de significado à ideia de golpe anterior ao 18 Brumário: Naudé dá precisão ao conceito de “golpe de Estado” no século XVII, enfatizando sua fase de preparação e legitimando o uso da violência numa ação que supostamente visa defender o poder legítimo. E menciona também a análise do jurista nazista Carl Schmitt (1888-1985), no século XX, quando o tema já era corrente na linguagem política.
Nesse trabalho de recuperação das camadas que deram origem ao que entendemos como golpe, é preciso fazer uma depuração da linguagem. Por isso, Bignotto mostra que a ideia de “conspiração”, presente em Maquiavel, pode ser lida como a origem da ideia de golpe de Estado. E comenta a proximidade entre os termos “golpe” e “revolução”, alertando que é preciso especificar as diferenças para evitar que determinados atores políticos, como as Forças Armadas brasileiras, disputem o significado daquilo que aconteceu de fato através de uma operação no plano da linguagem – usar a expressão “revolução” serviria, nesse caso, para apagar seu caráter nefasto contra a democracia brasileira.
Essa construção da ideia de golpe de Estado através da análise das camadas de significado permite vislumbrar o quanto a ferida provocada por um golpe atinge a esfera institucional, mas atinge principalmente o corpo político e social: um golpe é uma fratura na vida das pessoas – para recuperar a leitura de Victor Hugo. Bignotto entra na senda de Hugo quando apresenta uma leitura dos acontecimentos da história ocidental – ocidental é de minha lavra, é preciso observar –, que busca a vida concreta dos conceitos que estão sendo elaborados; certamente por isso a recriação literária das cenas históricas é tão importante – e impactante. De uma maneira muito elegante, Bignotto chama o leitor a se posicionar politicamente sobre acontecimentos que se tornaram corriqueiros desde o século XX, os golpes de Estado. Não é possível ficar indiferente.
Tessa Moura Lacerda é professora de filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).
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