Formada pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), Vera Hamburger desenvolveu ao longo de três décadas uma sólida e consagrada carreira de diretora de arte, cenógrafa e figurinista no cinema, assim como no teatro e na montagem de exposições. A inquietação e a curiosidade em relação a seu ofício, no entanto, só se intensificaram com o acúmulo de experiência. A partir de 2003, com três projetos paralelos, Vera mergulhou numa investigação profunda sobre a direção de arte, sem deixar de lado a criação profissional. Nesse mesmo período, trabalhou como cenógrafa ou diretora de arte em filmes como Carandiru (2003) e O passado (2007), ambos de Hector Babenco, Não por acaso (2006), de Philippe Barcinski, e Hoje (2010), de Tata Amaral.
“Eu percebia que a direção de arte era uma função muito pouco compreendida e em 2003 comecei a dar aulas com a intenção de discutir com os alunos e refletir sobre isso”, diz Vera. No mesmo ano, ela ganhou uma bolsa da Fundação Vitae para uma pesquisa sobre a direção de arte no cinema brasileiro. “Desde então não parei mais de juntar as duas vertentes, pesquisa e produção artística.”
Do trabalho de prospecção teórica e histórica nasceu o livro Arte em cena – a direção de arte no cinema brasileiro, publicado no ano passado pela Editora Senac em conjunto com as Edições Sesc, um compêndio sobre as práticas, atribuições e rotinas da direção de arte (que engloba funções como escolha de locações, cenografia, figurino, maquiagem e efeitos especiais) acrescido da trajetória de quatro nomes da área – Pierino Massenzi, Clóvis Bueno, Marcos Flaksman e Adrian Cooper – e descrições sobre o trabalho realizado em filmes específicos.
Na evolução paralela da atividade didática, “a experiência direta passou a ser mais rica do que as aulas expositivas”, o que resultou na criação do laboratório interdisciplinar Fronteiras Permeáveis, realizado em 2013 na Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP). “Tive a oportunidade, pela primeira vez, de ter o retorno de uma investigação que se desenvolveu exclusivamente no espaço da obra, sem a interferência de uma narrativa”, diz Vera. Essa observação inédita, vinda da “apropriação da recepção dos exercícios pelos alunos”, se desdobrou num terceiro projeto, a dissertação de mestrado O desenho do espaço cênico: da experiência vivencial à forma, defendida no fim do ano passado.
O convite para o curso, oferecido como disciplina optativa no Departamento de Audiovisual da ECA, foi aberto a várias áreas. “Minha opinião é que seria ótimo se a universidade adotasse uma abordagem multidisciplinar em vez de investir apenas na especialização”, diz Vera. Selecionados a partir de cartas de intenções, os alunos vieram da FAU e dos departamentos de Artes Cênicas, Artes Visuais e Audiovisual da ECA. O ponto de partida foi organizar exercícios de intervenção no espaço, livres de qualquer roteiro narrativo, a partir unicamente dos elementos essenciais da conformação do lugar – como a linha, ponto, luz, matéria, cor, textura e imagens projetadas – em intervenções construtivas diretas.
“Tanto no ensino quanto na prática artística, a questão narrativa e conceitual é colocada como primeiro objetivo, quando a aproximação inicial, na realidade, é do corpo e das sensações”, diz Vera, que toma emprestada do artista plástico teuto-americano Josef Albers a ideia de elaborar a teoria através da prática. O primeiro módulo constitui-se em desenvolver essas percepções em espaços delimitados. O segundo transportou a experiência para locações, ou seja, ambientes não controlados. E o terceiro se voltou para a teorização a partir do processo experimentado. “O que constatei foi uma relação distinta de cada participante com as diretrizes do curso”, diz Vera.
Um dos alunos, em seu relatório final, deu o seguinte depoimento: “Permaneci concentrado nos chamados elementos primordiais. E todo o trabalho coletivo entrou em foco. Passei a observar o que eu tinha interesse em fazer e aquilo que efetivamente conseguia realizar. (…) Foi como dar um giro de 180 graus em meu modo de ser. (…) De repente o mundo dos significantes superou o dos significados.” A própria professora absorveu a experiência de maneira semelhante e percebe a conexão entre a vivência pedagógica e a criação de novas dinâmicas de trabalho na elaboração de projetos cenográficos ou na prática corrida de um set de filmagem, exercícios permanentes de criação da obra coletiva. “Cada um tem um tempo e uma contribuição”, diz Vera.
O termo direção de arte só aparece pela primeira vez nos créditos de um filme brasileiro em 1985, em O beijo da mulher aranha, de Babenco. Foi nessa época que Vera começou a trabalhar na área. Ela percebe, desde então, uma evolução na valorização e na concepção mais clara da direção de arte, que forma com o cineasta e o diretor de fotografia o tripé da concepção visual de um filme.
Dada a complexidade das funções de cada um, é da natureza do processo que todas as instâncias tragam consigo um conceito diferente da realização. Como diz um dos entrevistados do livro, o diretor de arte Clóvis Bueno, faz-se um exercício de conquista do outro. “Vivemos o sofrimento e o prazer ao mesmo tempo, mas é sempre um exercício incrível”, diz Vera, que ainda tem uma parte de sua pesquisa a ser publicada. Trata-se da história da cenografia e da direção de arte no cinema ficcional brasileiro, desde seu nascimento na virada do século XIX para o XX.
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