Nos últimos 200 anos, vivemos uma separação entre natureza e cultura que, grosseiramente, definiu os limites das ciências biológicas e “exatas” com as humanas. Essas fronteiras nunca foram pacíficas, movendo-se ao sabor de escaramuças intermináveis – mas, em linhas gerais, funcionaram¹.
A emergência da idéia de Bildung, ou formação, no século 18, foi decisiva para gestar o que hoje chamamos ciências humanas. Elas consideram que o homem não é um ser dado por natureza, mas constituído – em larga e indefinida medida – pelo seu entorno também humano. Daí nasceram idéias como educação e cultura. Até aquela época, não tínhamos nada comparável ao que denominamos educação. Às vésperas da Revolução Francesa, aparecem três idéias mestras, conjugadas, que vão mudar o mundo. Uma é a de educação , ou seja, a de que o indivíduo humano é mutável, conforme foi criado ao longo de seus decisivos anos de formação. Quem melhor a formula é Rousseau, no Emílio. Outra é a de história como ciência – a idéia de que a coletividade humana muda segundo a época: o moderno é diferente do antigo. Saint-Just pode assim dizer que “a felicidade é uma idéia nova na Europa”, e conclamar os franceses a acabar com a injustiça do regime monárquico. Uma terceira idéia é a de revolução: é possível mudar, deliberadamente, toda a organização da própria sociedade. Até então, essa palavra indicava os movimentos dos astros, cumprindo sempre a mesma trajetória – portanto, tudo voltava ao mesmo lugar, nada mudava, somente se perturbava um pouco a estabilidade. Mas, com as revoluções Americana e Francesa, o termo revolução passa a designar uma mudança radical – e, para muitos, promissora.
Poderíamos acrescentar outras idéias, todas tendo em comum que o ser humano seja passível de modificação – não seja dado de uma vez por todas. Ele é visto como uma criação de si próprio, mediante um trabalho específico, ligado à convivência social, à ação de uns sobre os outros (e reciprocamente). É nesse quadro que os antropólogos, mas não só eles, se especializaram na idéia de que a cultura é a dimensão característica do ser humano. Como, enquanto isso, deslancham as ciências da natureza, mais velhas, porque começam no século 17, entende-se que o homem se torne uma exceção às ciências naturais.
É claro que o ser humano pode ser objeto da biologia – mas o que ela considerará, em nós, não é o mesmo que as ciências humanas. Porém, a fronteira vai sempre ser problemática. Se adoeço, como vou me tratar? O óbvio, se a moléstia afeta meu corpo, é medicar-me. Mas sabemos que há doenças de base psicológica. Serei tratado por um médico ou por um psicoterapeuta? Essa questão, pela qual devem ter passado em sua vida pessoal muitos dos leitores de Pesquisa FAPESP, encena na esfera micro a pergunta macro sobre as fronteiras entre natureza e cultura. Quando um amigo meu, psicanalista, cada vez que tenho um problema físico, brinca, dizendo: “Sempre achei que a psicanálise sai mais barato”, ele toma posição em favor da cultura. Quando outro amigo, neurocientista, diz que: “Gostaria de ter conhecido o cérebro das bailarinas russas famosas do começo do século 20”, ele se coloca do lado da natureza.
O que tem isso a ver com o DNA? Nenhum avanço científico recente teve talvez tanto destaque na mídia quanto um desdobramento da descoberta que ora completa 50 anos. É a pesquisa sobre o Genoma Humano que por sinal levou a Fapesp a ter, como destaque em sua imagem pública, estudos brasileiros sobre o genoma. O salto qualitativo que isso representa, nas ciências, não pode ser ignorado. A decifração do genoma permitirá detectar e tratar doenças antes de eclodirem – já no feto, talvez. Poderemos, quem sabe, pôr fim à miopia. Isso não apenas substituirá toda uma parte da medicina, que sairia do software (remédios) para entrar no hardware (uma intervenção cirúrgica preventiva que lembra a engenharia), como pode pôr em xeque todo um campo das ciências humanas.
O grande exemplo disso é o que se discute sobre o homossexualismo. Nos últimos anos, seja como by-product das pesquisas sobre o genoma, seja em decorrência de outras, mas certamente inspiradas pelo exemplo daquelas, alguns cientistas afirmaram ter encontrado a base natural para a homossexualidade. O assunto é controverso. Psiquiatras relatam casos de gêmeos univitelinos, dos quais um é homossexual e outro, não – o que contesta a tese da fundamentação natural da homossexualidade.
De todo modo, o Genoma Humano fez cintilar a expectativa de que uma gama de problemas que costumamos atribuir à cultura ou à educação, isto é, à formação humana do ser humano, poderia ter bases genéticas – e assim as poderíamos identificar e quem sabe resolver. Por isso é que pode mudar a linha divisória entre natureza e cultura. As escaramuças de fronteiras continuariam, mas o traçado delas seria outro. Espanta-me que essa não seja a principal discussão hoje nas ciências humanas. Se o conjunto de propósitos reunido no Projeto Genoma Humano se confirmar, o papel das humanas diminuirá. As disciplinas mais afetadas serão provavelmente as mais ligadas à idéia de cultura, a antropologia e a psicanálise. Por isso mesmo, elas deveriam conhecer e discutir melhor o DNA. Evidentemente, se as expectativas do projeto derem certo, deveremos ser os primeiros a aceitar seus resultados. Não se trata de combatê-los em nome de qualquer corporativismo de área. Mas precisamos discutir o que isso significa.
E por isso devemos explicitar os argumentos que fazem muitos de nós sermos algo céticos em relação às promessas do Genoma Humano. Em primeiro lugar, a publicação dos seus resultados em fevereiro de 2001 foi um anticlímax. Esperava-se que a decifração do genoma resolvesse uma série de mistérios sobre o ser humano; viu-se que falta ainda muita pesquisa. Por isso, embora a mídia de divulgação científica não tenha propriamente feito a crítica daquelas expectativas, ela discretamente reduziu o alcance dado a elas. Três anos atrás, o Genoma Humano aparecia como uma enorme promessa, um divisor de águas; hoje, um pouco menos.
CLAUDIUSMas ele haverá de trazer resultados, que espero permitam vencer muitas doenças e insuficiências humanas. Pessoalmente, sou entusiasta dessas perspectivas. Porém, devo expor qual o grande argumento para o ceticismo das humanas: há uma enorme tendência do ser humano a querer considerar-se coisa, objeto. Aceitar que somos indeterminados naturalmente, que seremos lapidados pela educação e a cultura, que disso decorrem diferenças relevantes e irredutíveis aos genes é muito difícil. Significa aceitarmos que há algo muito precário na condição humana. Parte pelo menos dessa precariedade ou indeterminação, alguns chamarão de liberdade. Porém, nem mesmo a liberdade é tão valorizada quanto se imagina. Ela implica responsabilidades. E diante disso é comum desejar-se algo que resolva nossos problemas independentemente de nós mesmos. São inúmeros os relatos de psicoterapeutas, psiquiatras e psicanalistas sobre pessoas que querem “curar” seus problemas psíquicos com um remédio. São também incontáveis os doentes que fazem exame após exame sem encontrar etiologia física para seus males, levando o próprio médico a recomendar uma terapia.
Parece que se busca conforto na condição de coisa. Se eu for um objeto, isto é, se eu for natureza , meus males independem de minha vontade. Aliás, o que está em discussão não é tanto o que os causou, mas como resolvê-los: se eu puder solucioná-los com um remédio ou uma cirurgia, não preciso responsabilizar-me, a fundo, por eles. Tratarei a mim mesmo como objeto.
A postura das ciências humanas e da psicanálise é outra, porém. Muito da experiência humana vem justamente de nos constituirmos como sujeitos. Esse papel é pesado. Por isso, quando ele entra em crise – quando minha liberdade de escolher amorosa ou política ou profissionalmente resulta em sofrimento -, posso aliviar-me, procurando uma solução que substitua meu papel de sujeito pelo de objeto. Um antidepressivo pode ter essa singela função. Quando tomo um Prozac ou um Lexotan, renuncio à posição de sujeito da minha vida psíquica e converto-a em objeto de ordem natural.
Sabemos todos, ainda mais numa sociedade estressada e histérica como a nossa, como é difícil sustentar a responsabilidade e a liberdade pela vida pessoal. Daí que se deseje a passividade, a renúncia à liberdade. Ora, esses assuntos foram amplamente discutidos pelas ciências humanas. Ou seja, com todo o respeito pelas verdades que o Projeto Genoma Humano traga à luz, temos nas ciências humanas elementos para trabalhar o que é o mito por trás dele.
Que dizer, então? Precisamos, nós de humanas, nos preparar para a mudança de fronteiras. Mas também temos muito a dizer aos colegas que decifram o código genético. Podemos mostrar-lhes o quanto há de mito na imagem pública de seu projeto. Podemos discutir como esse mito atende a um público de pessoas que querem – paradoxalmente – livrar-se de sua liberdade, a um mercado que por isso mesmo vende bem, a empresas que lucram com isso, a poderes públicos que preferem esse approach ao, muito mais cheio de dúvidas, das ciências humanas. Penso que esse diálogo respeitoso entre as duas partes seria muito rico. E, se o Brasil apostar nisso, ele fará algo que praticamente não se fez no resto do mundo.
¹Algumas idéias deste artigo foram desenvolvidas por Adauto Novaes (org.), em O Homem-Máquina, São Paulo, Companhia das Letras, no prelo (previsto para junho).
Renato Janine Ribeiro é professor titular de Ética e Filosofia Política da Universidade de São Paulo e autor, entre outros livros, de A Sociedade contra o Social – o Alto Custo da Vida Pública no Brasil.
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