As mulheres tiveram participação de destaque na difusão da psicanálise no Brasil, tanto em relação à prática clínica quanto na investigação científica e divulgação das ideias de Sigmund Freud (1856-1939), médico austríaco criador desse método terapêutico. Entre os nomes que contribuíram para a consolidação do movimento psicanalítico brasileiro na primeira metade do século XX destacam-se os de Adelheid Koch, Marialzira Perestrello e Virgínia Bicudo, primeira mulher a se habilitar psicanalista no país. A participação de Virgínia, em especial, foi importante para a institucionalização e disseminação do pensamento psicanalítico ainda na década de 1930, sendo uma das responsáveis pela criação da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), principal centro de formação desses profissionais àquela época.
Filha de uma imigrante italiana e de um funcionário público negro, Virgínia Bicudo (1910-2003) formou-se no magistério na Escola Normal Caetano de Campos, em São Paulo, em 1930. Em 1931 ingressou no curso de educadores sanitários da Escola de Higiene e Saúde Pública do Instituto de Higiene de São Paulo — atual Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP). Por ser negra, desde cedo Virgínia sofreu preconceito racial, o que lhe causou traumas durante a infância. “A necessidade de entender o conflito que sentia existir dentro de si a fez despertar para a sociologia e, mais tarde, para a psicanálise”, explica a psicanalista Maria Ângela Moretzsohn, da Divisão de Documentação e Pesquisa da História da Psicanálise da SBPSP.
Virgínia ingressou no curso de sociologia na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo (atual Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo) em 1936, aos 26 anos. Em 1945, sob orientação do sociólogo norte-americano Donald Pierson, tornou-se mestre pela mesma instituição. Sua dissertação, intitulada Estudo de atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo, foi uma das primeiras sobre a questão racial no Brasil, de acordo com a antropóloga Janaína Damaceno Gomes, da Faculdade de Educação da Baixada Fluminense da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). O trabalho permaneceu inédito por 65 anos e foi publicado na íntegra apenas em 2010 por ocasião do centenário de nascimento da psicanalista.
Virgínia entrou em contato com as ideias de Freud por meio de Noemi Silveira, então professora de psicologia social na Escola Livre de Sociologia. Foi Noemi quem lhe sugeriu que procurasse o médico Durval Marcondes e pedisse para participar de seu grupo de estudos sobre psicanálise. “Seu interesse pela psicanálise se deu a partir das limitações da sociologia para compreender as origens do racismo no Brasil”, explica Janaína. “Utilizando a psicanálise, Virgínia analisou a questão racial sob o prisma da infância para melhor compreender os mecanismos relacionados à formação de uma sociedade racista.”
Marcondes havia sido apresentado à psicanálise em 1919, em aula inaugural do médico Francisco Franco da Rocha (1864-1933) na cátedra de psiquiatria da Faculdade de Medicina de São Paulo (hoje uma das unidades da USP), dedicando-se desde então ao estudo da especialidade. Franco da Rocha é considerado um dos primeiros a introduzir o pensamento psicanalítico em São Paulo, muito embora não tenha praticado a psicanálise, conta o psicólogo Jorge Abrão, da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Assis.
À época em que conheceu Virgínia, Marcondes articulava-se para promover a formação de analistas em São Paulo. Para isso, precisava trazer ao país um psicanalista didata credenciado pela Associação Psicanalítica Internacional (IPA, em inglês), fundada por Freud. Com a ajuda da instituição, Marcondes trouxe a São Paulo a psicanalista alemã de origem judaica Adelheid Koch (1896-1980), que aceitou vir para o Brasil também por conta do sentimento antissemita que crescia na Alemanha. Em 1944 o grupo obteve reconhecimento da IPA, passando a se chamar Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
Virgínia participou intensamente das atividades promovidas pela entidade, assumindo cargos de direção, tesouraria, supervisão, entre outros.“A psicanálise sempre foi um campo favorável às mulheres, oferecendo mais igualdade de condições de formação e trabalho em comparação a outras áreas”, diz Abrão.
Extrovertida, Virgínia expressava-se com clareza, tornando-se uma divulgadora entusiasmada das ideias psicanalíticas. Um de seus trabalhos se deu no rádio, que à época vivia sua era de ouro no Brasil. Na Rádio Excelsior, Virgínia comandou o programa Nosso mundo mental. Em formato de radionovela, os episódios tratavam de temas do cotidiano das famílias, que eram apresentadas a conceitos como inconsciente, inveja, ciúme, culpa, amor e ódio. Os casos discutidos no programa foram transformados em livro homônimo, em 1955. Virgínia também foi uma das autoras do livro Relações raciais entre negros e brancos em São Paulo, organizado por Florestan Fernandes e Roger Bastide, publicado em 1955 como resultado de pesquisa financiada pela Unesco.
Também no Rio de Janeiro circulavam alguns trabalhos com exposições conceituais ou reflexões teóricas sobre a obra de Freud desde o início dos anos 1920. No entanto, a dificuldade em conseguir trazer um psicanalista didata para o Rio fez com que muitos embarcassem para São Paulo e Buenos Aires, Argentina, então um centro de excelência na formação psicanalítica na América Latina. Entre os que foram para a capital portenha para obter treinamento na Associação Psicanalítica Argentina estava Marialzira Perestrello, primeira mulher a se habilitar psicanalista no Rio.
Marialzira Perestrello (1916-2015) formou-se pela Faculdade de Medicina da Universidade do Brasil — atual Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) —, em 1939. Abrão atualmente trabalha no resgate da trajetória pessoal e profissional de Marialzira usando entrevistas que fez com a psicanalista entre 1997 e 2012. “Marialzira entrou em contato com a psicanálise por meio do pai, o jurista Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda, que lhe deu de presente um livro de Freud chamado Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, ele conta. Em 1940 a família se mudou para Bogotá, Colômbia, por conta do pai, nomeado embaixador naquele país. Ela voltou ao Brasil em 1941. Em 1946 embarcou para a Argentina com outros profissionais aspirantes a psicanalista.
A formação de Marialzira na Argentina estendeu-se até 1948. Durante esse período, começou a fazer análise com Enrique Pichon Rivière (1907-1977), importante psicanalista suíço nacionalizado argentino. Em 1947 começou a trabalhar como assistente estrangeira no Serviço de Psiquiatria de la Edad Juvenil no Hospício de Las Mercedes, em Buenos Aires. “Marialzira passou a integrar oficialmente a Associação Psicanalítica Argentina como membro associado em 1952”, afirma o psicólogo.
De volta ao Rio, em 1953, a psicanalista participou da fundação da Clínica de Orientação Infantil do Instituto de Psiquiatria da Universidade do Brasil, onde trabalhou até 1955. Paralelamente, iniciou suas atividades profissionais em clínica particular. Em 1957 Marialzira participou da fundação da Sociedade Brasileira de Psiquiatria do Rio de Janeiro, instituição da qual fez parte ao longo de toda a sua vida.
A intelectual carioca morreu em 2015, aos 99 anos, deixando uma vasta obra sobre psicanálise e cultura e história da psicanálise. Entre seus principais trabalhos estão o artigo “Primeiros encontros com a psicanálise: Os precursores no Brasil (1899-1937)”, sobre a atuação dos que se valeram do autodidatismo para difundir a psicanálise no Brasil nas primeiras décadas do século XX, e o livro Encontros: Psicanálise &, em que trata da aproximação da psicanálise com a arte.
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