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Resenha

A figueira e a USP

A Glette, o palacete e a Universidade de São Paulo | CM-IPUSP | 256 páginas

Uma velha figueira no terreno baldio da alameda Glette, em São Paulo, transformado em estacionamento, entrou no imaginário de toda uma geração de antigos alunos da Universidade de São Paulo (USP) e tornou-se símbolo de seus anos de formação universitária. Está no centro da memória e das lembranças de um grupo de ex-alunos de vários antigos cursos da USP reunidas em livro lançado em 2014: A Glette, o palacete e a Universidade de São Paulo, organizado por César Ades, Aparecida Angélica Zoqui Paulovic Sabadini, Carlos Ribeiro Vilela, Neuza Guerreiro de Carvalho e Viktoria Klara Lakatos Osorio. Foi publicado pelo Centro de Memória do Instituto de Psicologia da USP (CM-IPUSP).

A figueira é o que resta do passado no terreno do antigo palacete, que fora de Jorge Street, médico e industrial famoso, dono da Fábrica Nacional de Tecidos de Juta, no bairro do Belenzinho, onde mandara construir a vila operária conhecida como Vila Maria Zélia. Industrial socialmente progressista, plasmou na vila a que deu o nome de uma das filhas, falecida com 16 anos de idade, seu ponto de vista sobre a relação entre o capital e o trabalho. A vila, inaugurada em 1917, ano da histórica greve geral, é a configuração de sua concepção do que deveriam ser as relações de produção na indústria moderna.

Figueira da Glette em foto de 2014. Desde 1973 funciona no local um estacionamento

Simon PlestenjakFigueira da Glette em foto de 2014. Desde 1973 funciona no local um estacionamentoSimon Plestenjak

Malogrado como empreendedor e endividado, acabaria vendendo a fábrica em 1924, para pagamento de credores. Ele se tornaria funcionário público e, finalmente, funcionário da Fiesp, de que fora um dos fundadores. O palacete do bairro dos Campos Elíseos também foi perdido para uma companhia de seguros e a família de Street teve que deixar a casa. Até móveis ficaram no imóvel, que seria adquirido em 1937 para abrigar diversas seções e cadeiras da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, criada três anos antes para nuclear a Universidade de São Paulo, que assim nascia. Compra de urgência porque a Faculdade de Filosofia fora literalmente expulsa pelos alunos da Faculdade de Medicina, ali provisoriamente alojada no início de sua história.

A faculdade esteve por muitos anos dispersa, em diferentes lugares da cidade, não raro os alunos assistindo a algumas aulas num lugar e outras noutro, sempre em acomodações provisórias e em casa alheia. O palacete da Glette foi a primeira casa “própria” da escola. Talvez por isso os alunos dos cursos nela frequentados tenham guardado cálidas lembranças daqueles tempos iniciais da USP, lembranças do que foi, de fato, a batalha pela universidade. Lembranças de uma casa materna.

Sala localizada no porão do palacete, em 1948, escavado para instalar parte da Biologia Geral

Acervo fotográfico do CM-IPUSP / digitalização de Carlos VilelaSala localizada no porão do palacete, em 1948, escavado para instalar parte da Biologia GeralAcervo fotográfico do CM-IPUSP / digitalização de Carlos Vilela

Raramente lembram alunos e professores de hoje que a USP, em particular a Faculdade de Filosofia, só se tornou possível graças à teimosia e à obstinação de docentes e estudantes de então. O quadro era o do lúcido empenho de governantes que concebiam a universidade e a educação pública, gratuita e laica como instrumentos de democracia e de emancipação social. Hoje a USP está configurada e realizada sobretudo no espaço da Cidade Universitária, em boa parte como a idealizou Júlio de Mesquita Filho num dia dos anos 1930. Foi quando visitou a Fazenda Butantã com seu cunhado Armando de Salles Oliveira, governador do estado, e Paulo Duarte, jornalista. Nas proximidades do portão do Instituto Butantã que dá agora acesso à ladeira que corre ao lado do prédio de História e Geografia e do Instituto de Química, estendeu o olhar por aquilo que viria a ser o campus do Butantã e povoou imaginariamente o descampado com os edifícios que formariam a arquitetura da universidade que estava sendo criada. Era sonho de visionários.

Entrevista: Aparecida Angélica Zoqui Paulovic Sabadini
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A USP vingou porque existiu, previamente, como um todo na imaginação dessas pessoas e também na de professores e alunos. Testemunha dos primeiros tempos da Faculdade de Filosofia dispersa, Claude Lévi-Strauss, que foi nela o segundo professor de sociologia, ao visitá-la na Cidade Universitária, já velhinho, muitos anos depois de ter voltado à França, não resistiu e chorou. Um sentimento parecido com o de outros artífices da obra, o triunfo do espírito republicano e da razão, entre nós, sobre o atraso e o oligarquismo de uma sociedade que tinha raízes profundas na escravidão ainda próxima e no autoritarismo que lhe era próprio.

Em breve, disponível para ser baixado gratuitamente no site do CM-IPUSP: citrus.uspnet.usp.br/centrode memoriaip/

Eduardo CesarEm breve, disponível para ser baixado gratuitamente no site do CM-IPUSPEduardo Cesar

No palacete da Glette fincaram raízes, além da administração da atual Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, em cujos saguão e diretoria ainda há belos móveis procedentes da antiga residência de Jorge Street, também antigas seções da escola, como se dizia, que vieram a ser departamentos e cursos. São hoje o Instituto de Geociências, o Instituto de Biologia, o Instituto de Química, o Instituto de Psicologia. Com o tempo foram se transferindo para outros lugares até serem localizados definitivamente na Cidade Universitária, deixando o antigo palacete, construído no final do século XIX. Em 1973, mediante concorrência pública, o imóvel foi vendido pela USP e demolido pelo comprador. Restou a figueira do antigo jardim da família Street, hoje tombada.

A antiga figueira foi clonada, quatro mudas foram produzidas. Foram plantadas em diferentes pontos da Cidade Universitária, especialmente nos jardins de algumas das unidades que tiveram suas raízes no palacete da Glette, como o Instituto de Psicologia e o Instituto de Geociências. Um original e criativo modo de construir o memorial dos primeiros tempos da Universidade de São Paulo.

O livro é não só rico em detalhes históricos sobre o estabelecimento e sobre docentes e alunos que se destacaram na história de diversos campos do conhecimento. É rico, também, de imagens fotográficas oriundas de arquivos da própria família Street como ainda de arquivos de pessoas ligadas à origem da USP. Uma verdadeira história visual da universidade. Um belo e emocionante documento de uma geração que não se perdeu no tempo nem abriu mão da memória enquanto alimento vital do espírito.

José de Souza Martins é sociólogo e professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Entre outros livros, é autor de A sociologia como aventura (Contexto, 2014) e Linchamentos: a justiça popular no Brasil (Contexto, 2015).

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