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CÉSAR LATTES, 100

A grande contribuição

A descoberta do píon abriu caminho para entender a coesão do núcleo atômico

Lattes no monte Chacaltaya, na Bolívia, onde foram registrados mésons em emulsões nucleares

CBPF

Bastavam os dedos de uma mão para contar o número de partículas subatômicas conhecidas cerca de 75 anos atrás, quando César Lattes teve papel decisivo na descoberta do píon. Naquela época, os três constituintes básicos do átomo tinham sido identificados: elétrons em 1897, prótons em 1919 e nêutrons em 1932. Mas o conhecimento sobre as entranhas do átomo não ia muito além disso.

No final de 1934, o físico japonês Hideki Yukawa (1907-1981), da Universidade de Osaka, propôs uma teoria para explicar por que o núcleo atômico se mantinha coeso. A integridade dessa estrutura, que concentra 99,9% da massa de um átomo, era um mistério. Formado por nêutrons sem carga elétrica e por prótons positivos, o núcleo atômico, em tese, não deveria se manter intacto em razão da ação da força eletromagnética. Por terem a mesma carga, os prótons deveriam se repelir e, ao se afastarem uns dos outros, despedaçar o núcleo.

Como isso não ocorria, dizia Yukawa, deveria haver uma partícula com massa intermediária entre a do próton e a do elétron que transmitisse uma força (hoje denominada força nuclear forte) capaz de se contrapor à ação do eletromagnetismo e que garantisse a integridade do núcleo. Segundo os cálculos do físico japonês, essa então hipotética partícula, que viria a ser denominada méson, teria massa entre 200 e 300 vezes maior do que a do elétron e entre 6 e 9 vezes menor do que a do próton. “As ideias de Yukawa ficaram meio que esquecidas por uns anos”, conta o filósofo e historiador da ciência Antonio Augusto Passos Videira, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e pesquisador colaborador do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF).

Em 1936, os físicos norte-americanos Carl David Anderson (1905-1991) e Seth Neddermeyer (1907-1988), do Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech), descobriram uma partícula com massa cerca de 200 vezes superior à do elétron ao realizarem medições com raios cósmicos. Foi originalmente chamada de méson mu e hoje é conhecida como múon. Em poucos anos, no entanto, outros experimentos mostraram que o múon não estava ligado à manutenção da coesão do núcleo atômico e não era o méson previsto pelo físico japonês.

A questão só começou a ser desvendada após o fim da Segunda Guerra Mundial com a entrada em cena de um personagem de fora dos grandes centros internacionais da física, o jovem César Lattes, com seus 20 e poucos anos. Entre 1946 e 1948, o brasileiro foi o primeiro físico a observar evidências experimentais dos rastros produzidos por mésons tanto na natureza, em uma chuva de raios cósmicos, como “artificialmente”, no interior de um acelerador de partículas. A partícula identificada de forma pioneira por Lattes recebeu originalmente o nome de méson pi. Posteriormente, passou a ser denominada píon.

A descoberta do píon ocorreu quando o emprego das câmaras de nuvens, também conhecidas como câmaras de Wilson, começou a perder espaço para o uso de emulsões nucleares, uma chapa fotográfica especial, nos experimentos com raios cósmicos que visavam encontrar evidências de partículas subatômicas instáveis. As chapas podiam obter resultados mais refinados do que a técnica anterior. Na Universidade de São Paulo (USP), Lattes tinha aprendido a trabalhar com as câmaras de nuvens, um recipiente fechado que usa um vapor supersaturado para registrar os rastros produzidos por partículas carregadas eletricamente. Quem o treinou foi um de seus mestres, o físico italiano Giuseppe Occhialini (1907-1993), durante os anos em que deu aulas na universidade paulista. A trajetória das partículas aparece na forma de traços na imagem produzida por essa técnica.

CBPFEquipamentos encaixotados na frente da sede do CBPF para serem despachados em expedição aos Andes bolivianos no início dos anos 1950CBPF

Em meados da década de 1940, Lattes tomou contato com emulsões nucleares enviadas ao Brasil por Occhialini, que, a essa altura, trabalhava no laboratório H. H. Wills, da Universidade de Bristol, no Reino Unido, sob a chefia de Cecil Powell (1903-1969). O brasileiro ficou espantado com as possibilidades das novas chapas fotográficas, que tinham maior sensibilidade por conterem cerca de dez vezes mais sais de prata (brometo de prata). Ele foi convidado a trabalhar do outro lado do Atlântico. Aceitou o convite e partiu em 1946 para Bristol.

Nesse ponto da história, ocorreu o que seria o momento-chave da identificação do píon. Já em Bristol, Lattes pediu ao laboratório Ilford, que, ao lado da Kodak, fabricava as emulsões nucleares, para produzir chapas fotográficas com um elemento adicional na composição de sua gelatina: o boro. A introdução do boro aumentava o tempo de retenção das imagens nas emulsões e estendia o período de sensibilidade das chapas. A modificação tornou possível ver partículas subatômicas extremamente rápidas e de vida fugaz, como os mésons pi. Quando uma partícula ionizada passa por uma emulsão, a prata e o bromo são separados. “Isso produz os traços que vemos na chapa revelada”, comenta a física Carola Dobrigkeit Chinellato, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que foi aluna de doutorado de Lattes e pesquisa raios cósmicos.

Ainda em 1946, Occhialini foi ao Pic du Midi, uma montanha dos Pirineus franceses, com altitude de cerca de 2.800 metros, e tentou registrar partículas provenientes de raios cósmicos por meio de emulsões nucleares, com e sem boro. A ideia do teste é atribuída a Lattes. Na volta, em Bristol, o italiano e o brasileiro encontraram evidências de dois tipos de partículas instáveis nas chapas com boro: o méson pi, que assim foi denominado por ser a partícula primária, cujo decaimento dá origem ao méson mu (múon). Este, por sua vez, era considerado, na época, um méson, uma partícula nuclear com massa intermediária. Entretanto, descobriu-se depois que o múon é um lépton, um parente pesado do elétron. Para checar a descoberta no Pic du Midi, Lattes propôs repetir o experimento em lugar muito mais alto, em um monte dos Andes bolivianos. “O número de partículas cósmicas em Chacaltaya, com 5,5 mil metros, é 100 mil vezes maior [do que no Pic du Midi]”, relembrou Lattes, em entrevista de 1995 publicada na revista Ciência Hoje.

A expedição para o monte andino foi organizada a partir do Brasil, de onde Lattes levou as emulsões para o país vizinho. Seu objetivo foi alcançado. Uma série de artigos na revista Nature, com os resultados do Pic du Midi e de Chacaltaya, confirmou a descoberta do méson pi a partir da observação de raios cósmicos. Em 1947, Lattes foi para a Universidade da Califórnia em Berkeley.

Ali, no acelerador de partículas conhecido como cíclotron de 184 polegadas, Lattes conseguiu enxergar os rastros dos mésons apenas 10 dias depois de sua chegada, algo que seus anfitriões não tinham conseguido fazer. Os chamados mésons artificiais, produzidos no interior do acelerador, e não por raios cósmicos, também se tornaram uma realidade. A descoberta foi atribuída a Lattes e ao físico norte-americano Eugene Gardner (1913-1950), um dos pupilos do físico nuclear norte-americano Ernest Lawrence (1901-1958).

O Nobel que não veio
Uma questão que sempre reaparece quando se conta a trajetória de Lattes é se o brasileiro não merecia ter ganhado o Prêmio Nobel de Física de 1950 por seu papel central na descoberta do píon. O britânico Powell, o chefe do grupo de Bristol, recebeu sozinho a honraria. A Academia Real de Ciências da Suécia conferiu-lhe o Nobel “por seu desenvolvimento do método fotográfico para estudo de processos nucleares e suas descobertas concernentes a mésons produzidos por esse método”. O Nobel de Física do ano anterior, de 1949, já tinha sido dado a um pesquisador também ligado ao estudo dessas partículas, o teórico japonês Yukawa, que propôs a existência dos mésons.

Laboratório Nacional Lawrence BerkeleyO cíclotron de Berkeley na década de 1940, onde foram observados mésons artificiaisLaboratório Nacional Lawrence Berkeley

Lattes recebeu sete indicações ao prêmio. Nenhuma delas no ano de 1950, segundo os arquivos divulgados no site oficial do Nobel. Em 1949 e 1952, foi indicado duas vezes, ou seja, por duas pessoas. Em 1951, 1953 e 1954, foi recomendado uma vez.

Mestre de Lattes na USP e seu parceiro em Bristol, Occhialini também costuma ser mencionado como outro nome esquecido pelo Nobel de 1950. No caso do italiano, há um agravante: ele já tinha sido preterido no Nobel de Física de 1948, dado apenas ao britânico Patrick Blackett, da Universidade de Cambridge, por seu desenvolvimento do método da câmara de nuvens e descobertas em física nuclear e radiação cósmica. Entre 1936 e 1969, Occhialini foi nomeado 32 vezes ao Nobel, sempre sem sucesso.

“O Nobel é um prêmio que reforça as desigualdades na pesquisa”, avalia o historiador da ciência Climério Paulo da Silva Neto, da Universidade Federal da Bahia (UFBA). “A honraria tende a ser dada a pesquisadores de instituições de renome ou que já têm grande reconhecimento público.” A preferência por nomes de peso amplifica a repercussão do prêmio e alimenta um ciclo que promove a notoriedade científica, para o Nobel e seu agraciado. Silva Neto consultou documentos da academia sueca, como as cartas de recomendação do nome de Lattes, e prepara um trabalho sobre o físico brasileiro e o Nobel.

Por décadas, circulou um boato de que haveria uma carta do físico dinamarquês Niels Bohr (1885-1962) – prêmio Nobel de Física de 1922 por seus estudos sobre a estrutura do átomo e a radiação dele emanada – endereçada à academia sueca com críticas duríssimas em razão da não escolha de Lattes. A hipotética missiva seria divulgada em 2012, meio século após a morte de Bohr. Se existe, a carta nunca veio à tona.

Logo após a observação dos píons pelo grupo de Bristol, o grande físico dinamarquês, de fato, convidou o brasileiro a dar palestras em Copenhague sobre esse trabalho. Os dois aparentemente sempre se deram bem. No entanto, Bohr nunca nem mesmo indicou Lattes ao Nobel, segundo os registros públicos do prêmio. Quem recomendou o nome do brasileiro por três anos seguidos (1952, 1953 e 1954) foi o químico suíço-croata Leopold Ružička (1887-1976), vencedor do Nobel de Química em 1939.

É interessante notar que nos primeiros 50 anos de concessão do Nobel, entre 1901 e 1950, o prêmio de física foi dado 35 vezes a apenas um pesquisador, oito vezes a dois e apenas uma vez a três. Em seis ocasiões, a honraria não foi dada, basicamente em razão das duas guerras mundiais. Em diversas ocasiões, Lattes disse que foi bom não ter ganhado o Nobel, pois passaria o resto da vida escrevendo cartas de recomendação a pesquisadores. Em outras, teve posturas diferentes. Em um depoimento publicado no Jornal da Unicamp em 2004, disse que foi “tungado duas vezes”, referência ao fato de não ter recebido o Nobel pelos trabalhos em Bristol e em Berkeley. Em uma entrevista à revista Superinteressante, publicada em março de 2005, por ocasião de sua morte, Lattes disse que o Nobel deveria ter ido para Occhialini e desdenhou da honraria: “Esses prêmios grandiosos não ajudam a ciência”.

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