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Comportamento animal

A hora de brigar ou desistir

Combinação de três modelos teóricos explica as estratégias de luta entre machos da mesma espécie

Fêmea de camarão tamburutaca (Neogonodactylus oerstedii) enfrenta outra em defesa de seu território, em um aquário na Universidade da Califórnia em Berkeley, Estados Unidos

Roy L. Caldwell / UC Berkeley

Quando brigam, machos da mesma espécie não adotam uma única estratégia que define o momento de parar ou continuar, como se pensava, mas podem ir de uma para outra, de acordo com o desgaste que sofrerem, o interesse na recompensa ou a força do oponente. Biólogos de Minas Gerais, São Paulo e da Bahia chegaram a essa conclusão depois de examinar centenas de estudos científicos e de observar lagartos, caranguejos, besouros e anêmonas se atracando em laboratório ou sapos e grilos se digladiando em matas à noite. 

As motivações já eram conhecidas: com o coração batendo mais rápido, os machos se pegam principalmente por causa de fêmeas com as quais poderiam se acasalar, por abrigo, por comida ou por território. O problema persistente era que nenhuma das três teorias mais usadas explicava completamente como os animais agiam durante as contendas e por que paravam, tendo ou não vencido. 

A primeira teoria, chamada modelo de guerra de desgaste (WOA), defende que um valentão decide desistir com base apenas na energia que teria de gastar, sem avaliar o oponente. “O WOA é um modelo de avaliação própria”, diz o biólogo Paulo Enrique Cardoso Peixoto, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). É o caso, ele exemplifica, dos machos da borboleta Hermeuptychia fallax. Eles se enfrentam sem se tocar, voando em círculos um próximo ao outro, e param quando se cansam.

A segunda abordagem teórica sobre estratégias de lutas entre animais, conhecida como modelo de avaliação sequencial (SAM), pressupõe que um macho entra em uma luta depois de avaliar o tamanho e a força do rival. “Mesmo sem ter sofrido nenhum dano, um dos participantes pode desistir se perceber rapidamente que é mais fraco que o oponente”, explica Peixoto. É como fazem os camarões-mantis ou tamburutacas (Neogonodactylus bredini).

Alexandre Palaoro Dois caranguejos chama-maré (Leptuca uruguayensis) machos brigam por uma toca em manguezal de Peruíbe, litoral paulistaAlexandre Palaoro

No modelo de avaliação cumulativa (CAM), a terceira abordagem, um combatente sai de uma refrega também por decisão própria, mas com base na interação com o outro. “A decisão de sair depende dos danos que sofre”, diz Alexandre Palaoro, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) em Diadema, na Grande São Paulo. É assim entre os caranguejos chama-maré (Austruca mjoebergi), por exemplo.

Em 2014, com Nelson Pinto, atualmente professor no Centro Universitário UniAraguaia, em Goiânia, Peixoto e Palaoro começaram a avaliar se os três modelos teóricos realmente explicavam as lutas entre machos de 36 espécies, incluindo insetos, aracnídeos, caranguejos, moluscos, anfíbios, répteis, peixes e mamíferos. 

Eles concluíram que nenhuma das três teorias explicava completamente os conflitos entre os machos da mesma espécie, que pareciam mudar de estratégia enquanto se pegavam. Então, propuseram que mais de uma abordagem conceitual poderia ser usada para indicar quando os animais decidiam sair da briga ou enfrentar o oponente. 

A combinação entre os modelos teóricos funcionava melhor do que cada um deles separadamente para explicar os conflitos que cada um, isoladamente, não explicava bem, como argumentado em um artigo publicado em agosto de 2019 na revista científica Biological Reviews. As escaramuças entre animais ficaram mais claras sob esse novo olhar. 

Melanotes ornata, um grilo de hábitos noturnos, por exemplo, é uma das espécies cujo comportamento não era bem explicado por nenhuma teoria isoladamente, porque muda de estratégia durante a luta. De setembro a novembro de 2015, coincidindo com a época reprodutiva dessa espécie, os biólogos Gabriel Lobregat, da Universidade Federal de Viçosa, e Thiago Kloss, da Universidade do Estado de Minas Gerais, passaram noites a observar esses grilos se digladiando em meio às árvores de duas áreas de conservação do Espírito Santo. 

Primeiramente, esse inseto mede o rival, colocando uma antena sobre sua cabeça e outra sobre o fim do abdômen. “Se nesse momento o grilo percebe que o outro é muito grande, ele sai da briga”, diz Peixoto, que participou desse estudo, publicado em novembro de 2019 na Behavioral Ecology. “Ser capaz de avaliar se o rival é maior ou menor e desistir antes de entrar numa fase mais agressiva indica que eles fazem avaliação mútua, como previsto pelo SAM”, comenta.

Se não desistem, os grilos se posicionam em sentidos opostos, aproximando o final do abdômen, e, com as duas pernas maiores do que as outras, empurram-se ou se chutam, dentro da estratégia CAM. As observações realizadas com os grilos em um laboratório perto da mata (vídeo abaixo) reiteraram essas conclusões. Dos 39 encontros entre os machos, 20 resultaram em ataques efetivos, dos quais seis terminaram antes que começasse a troca de chutes, com a desistência de um dos grilos. 

Gabriel Lobregat

Aprofundando as análises, Peixoto e pesquisadores do Reino Unido e dos Estados Unidos concluíram que, na primeira fase, a do reconhecimento mútuo com as antenas, a evolução da briga depende em cerca de 50% do reconhecimento dos limites físicos de um dos participantes e 50% do porte do oponente. Na segunda, quando partem para os chutes, a continuidade da pugna depende 58% de decisão própria e 42% de avaliação do oponente, como detalhado em um artigo aceito para publicação na Animal Behaviour. “Em briga com muitos danos, como na fase de chute entre os grilos, o quanto o rival bate é que pode definir o principal estímulo para permanecer ou sair da luta”, comenta Peixoto.

Quem ganha
Os estudos nessa área mostram que nem sempre o mais forte é que vence. “Quem ganha tende a ser mais forte, mas o resultado depende essencialmente da motivação e da perspectiva de recompensa”, diz o biólogo da UFMG, que contou com apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). “O mais fraco pode vencer se estiver mais motivado.”

A agressividade depende da capacidade de brigar. Em um artigo publicado em novembro de 2017 na Biology Letters, pesquisadores da Universidade de Newcastle, Reino Unido, e do Instituto de Tecnologia Galway-Mayo, da Irlanda, mostraram que cervos machos ajustam a sua agressividade e a força dos golpes de acordo com os danos que sofrem, também adotando mais de uma estratégia durante a luta. “Se estão com a galhada quebrada, são menos agressivos e seus golpes têm menos impacto”, comenta Palaoro, que não participou desse estudo.

Em 2016, Palaoro levou 140 anêmonas do mar Actinia equina para um dos laboratórios da Universidade de Plymouth, no Reino Unido, onde fez parte de seu doutorado, e dividiu-as em dois grupos. Em um deles simulou a oscilação da maré, e as deixou se pegarem à vontade. “As anêmonas brigavam mais entre elas quando eram criadas em um ambiente com maré, que pode trazer alimento, filtrado por esses animais”, concluiu. Como descrito em um artigo de maio de 2017 na Biology Letters, eram embates violentos: esses invertebrados têm tentáculos que inflam na hora da luta e, quando encostam sobre o oponente, podem puxar e rasgar a pele. “Por causa do veneno dos tentáculos, a pele do oponente pode necrosar”, diz. Segundo ele, as anêmonas adotam duas estratégias, a WOA e a CAM.

Aline Candaten Durante o acasalamento, os espinhos das mãos do sapo gladiador (Boana curupi) macho ajudam a segurar a fêmea (maior, embaixo)Aline Candaten

Abraços dolorosos
“Os animais dificilmente se machucam muito ou morrem nas lutas”, diz Palaoro. Uma exceção, ele verificou, é o caso do sapo gladiador (Boana curupi), encontrado no Brasil, no Paraguai e na Argentina. Uma de suas peculiaridades é o pré-polex, uma protuberância óssea afiada, como um espinho encurvado, na frente do primeiro dedo de cada mão. Sob orientação de Palaoro em trabalho de graduação, a bióloga Aline Candaten, da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, da cidade gaúcha de Frederico Westphalen, e outros biólogos encontraram 32 machos dessa espécie em uma área de conservação biológica no Rio Grande do Sul. 

Desses, 29 tinham cicatrizes nas costas, como resultado das agressões recíprocas, vistas pelos pesquisadores como uma forma de evitar que o concorrente chegasse à área de desova de uma fêmea. A luta começa com um sapo coaxando para outro. Depois, um pula sobre o outro e os dois se abraçam, de olhos fechados, sobre um galho. Em seguida, como descrito em um trabalho publicado em janeiro na Acta Ethologica, os dois sapos cravam os espinhos várias vezes um no outro, “o quanto conseguirem”, observa Palaoro. Ficam assim até um deles perder, sair da briga e da vizinhança. O vencedor permanece no território, em geral próximo da área de desova, e, portanto, terá mais chance que o outro de deixar descendentes.

Projeto
Precursores comportamentais e a origem do cuidado parental em artrópodes (nº 16/22679-3); Modalidade Bolsa no Brasil ‒ Pós-doutorado; Pesquisador responsável Glauco Machado (USP); Bolsista Alexandre Varaschin Palaoro; Investimento R$ 195.031,98.

Artigos científicos
PINTO, N. S. et al. All by myself? Meta-analysis of animal contests shows stronger support for self than for mutual assessment models. Biological Reviews. v. 94, n. 4, p. 1430-42. ago. 2019.
LOBREGAT, G. et al. Fighting in rounds: Males of a neotropical cricket switch assessment strategies during contests. Behavioral Ecology. v. 30, n. 3, p. 688-96. nov. 2019.
PALAORO, A. P. et al. How does environment influence fighting? The effects of tidal flow on resource value and fighting costs in sea anemones. Biology Letters. v. 13, 20170011. 24 mai. 2017.
CANDATEN, A. et al. Fighting scars: heavier gladiator frogs bear more injuries than lighter frogs. Acta Ethologica. v. 23, p. 39-44. 29 Jan. 2020.
JENNINGS, D. J., BOYS, R. J., GAMMELL, M. P. Weapon damage is associated with contest dynamics but not mating success in fallow deer (Dama dama). Biology Letters. v. 13, 20170565. 9 nov. 2017.

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