Sempre me considerei uma pessoa com sorte. A começar pelo meu nascimento, quando fui adotada, ainda bebê, pela dona Íris, uma mulher negra, analfabeta. Sua história é como a da maioria das mulheres negras de sua época: uma história de luta. Ela nasceu em 1919 em uma família de trabalhadores que saiu da Paraíba para Curitiba, no Paraná. Proibida de estudar, foi trocada por um cavalo, o que muitos chamariam de “dote”, mas acho que essa é uma palavra fraca para retratar o que ocorreu. Revoltada, fugiu do casamento arranjado e se mudou para o interior de São Paulo, onde trabalhou como empregada doméstica, diarista, governanta. Quando voltou a Curitiba, levava Silvia, minha irmã mais velha, que foi quem me criou depois de sua morte, no início dos anos 1980, quando eu tinha apenas 8 anos.
Tive sorte de estudar em boas escolas públicas, mas, em casa, minha família estranhava o fato de eu gostar de estudar o tempo todo. Naquele momento, eu já pensava em cursar faculdade, mas minha irmã rasgou a ficha de inscrição do meu primeiro vestibular. Ela não admitia esse sonho. E dizia: “Quem você acha que é para querer entrar na universidade?”. A pobreza, o sexismo e o racismo fazem com que as famílias negras não consigam se enxergar em outros lugares.
Foi quando o cinema surgiu como um refúgio. Descobri que podia assistir gratuitamente a filmes nos cinemas da Fundação Cultural de Curitiba e via mostras inteiras de cinema japonês, por exemplo. Ironicamente, foi a pobreza que fez com que eu tivesse acesso ao melhor da cinematografia mundial. Além disso, o cinema era um lugar onde eu me sentia segura. Depois das aulas, eu ia para a biblioteca pública e de lá para o cinema. Eu ficava nesses lugares até fecharem as portas.
Em 1994, comecei a cursar filosofia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Isso mudou não só o rumo da minha vida, mas também o modo como minha família começou a entender que nosso mundo podia ser maior. Foi incrível ter acesso a um ambiente cultural como aquele. Fiz amizades e um amor que duram até hoje. Desfrutei de todas as políticas sociais que a universidade oferecia: moradia, alimentação, bolsas. Não havia ali, naquele momento, cotas nem qualquer programa de ação afirmativa para pessoas negras. Essa discussão não estava posta e o cenário era outro: estudei numa universidade extremamente branca e elitizada. No curso havia uma participação ínfima de estudantes negros e as mulheres eram minoria. As bibliografias se compunham, em sua maioria, por pensadores homens e brancos.
A seguir, abri uma produtora de cinema junto com colegas. No início dos anos 2000, dirigi com Victor Epifanio um filme de animação chamado Roteiros negros. O debate sobre cotas se iniciava. Foi quando comecei a dirigir um documentário, com Rodrigo Braga, chamado Elas são pretas, sobre o cotidiano das estudantes negras na Unicamp. Durante o processo, minha produtora foi assaltada, levaram parte do material gravado, nossas câmeras, computador, tudo.
Como já tinha feito a transcrição do que havia sido gravado, pensei: “Esse pode ser meu projeto de mestrado”. O material foi o ponto de partida da minha dissertação “Elas são pretas: Cotidiano de estudantes negras na Unicamp”, concluída em 2008, na Faculdade de Educação daquela universidade. Fui orientada pela antropóloga Neusa Maria Mendes de Gusmão, uma das principais referências sobre estudos de comunidades quilombolas no Brasil. Um dos capítulos da dissertação me levou à socióloga e psicanalista Virgínia Leone Bicudo (1910‑2003). Isso mudou a trajetória da minha vida acadêmica.
Virgínia Bicudo foi a primeira mulher negra formada em sociologia no Brasil. Ninguém tinha ainda escrito uma tese sobre as contribuições dela para o campo dos estudos raciais, embora seus trabalhos sejam fundamentais para entender a constituição do racismo no Brasil. Sua dissertação “Estudo de atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo”, defendida na Escola Livre de Sociologia e Política (ELSP), em 1945, foi orientada pelo sociólogo norte-americano Donald Pierson (1900-1995). Virgínia Bicudo dialogou com mães de família, intelectuais, trabalhadores negros e negras, que lhe diziam como eram as experiências da racialidade no dia a dia. Temas como o da solidão da mulher negra já estavam presentes. Entender o apagamento de seu trabalho nas bibliografias me ajudou a compreender o duro processo de afirmação e sobrevivência de intelectuais negros nas universidades brasileiras.
Em 2013, concluí minha tese de doutorado “Os segredos de Virgínia: Estudo de atitudes raciais em São Paulo (1945‑1955)”, em antropologia social na Universidade de São Paulo (USP), sob orientação do professor Kabengele Munanga. No ano seguinte, no pós-doutorado em sociologia na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), investiguei arquivos visuais, a fim de entender por que alguns países, como os Estados Unidos, têm um repertório visual muito vasto da luta antirracista. Na época, visitei arquivos na África do Sul, onde um grande número de fotógrafos negros documentou o apartheid, como Peter Magubane, Bob Gosani, Ernest Cole (1940-1990) e Santu Mofokeng (1956-2020). Eu me perguntava: onde estão essas imagens da luta negra no Brasil?
Há oito anos me tornei professora efetiva da Faculdade de Educação da Baixada Fluminense da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Febf-Uerj), em Duque de Caxias. Na mesma época nasceu Omar, meu filho. Ser mãe, professora e pesquisadora num país em que a universidade não é pensada para as mulheres foi e é desafiador. Outro desafio é atuar numa faculdade periférica, cujo corpo discente é constituído majoritariamente por mulheres negras da classe trabalhadora e pessoas que vivem em comunidades. Costumo dizer que nossa faculdade é um aquilombamento.
No Programa de Pós-graduação em Cultura e Territorialidades da Universidade Federal Fluminense (PPCult-UFF), oriento estudantes de mestrado do Grupo de Pesquisas Afrovisualidades: Estéticas e Políticas da Imagem Negra. Participo ainda do Fórum Itinerante de Cinema Negro (Ficine), que ajudei a criar em 2013 e é hoje um dos principais núcleos de discussão sobre o tema no mundo. Ele me levou, por exemplo, ao Journées Cinématographiques de la Femme Africaine de L’image (2014), em Uagadugu, capital de Burkina Faso, evento que envolve exibição de filmes, debates e oficinas. Com a pesquisadora e curadora Janaína Oliveira, parceira no Ficine, falei sobre o cinema brasileiro em uma mesa-redonda e também organizei uma exposição com fotos de mulheres negras que trabalham em nosso audiovisual, como atrizes, roteiristas e diretoras.
Mais tarde, como curadora adjunta, assinei a exposição No verbo do silêncio, a síntese do grito, do fotógrafo carioca Walter Firmo, inaugurada em 2022, no Instituto Moreira Salles, em São Paulo, e que vem circulando por outras cidades brasileiras. Atualmente, está em cartaz em Belo Horizonte. Trabalhar com curadoria é uma chance para desconstruir o discurso colonizado que temos no campo artístico. Não quero perder essa oportunidade. Recentemente, comecei a me envolver com o resgate do trabalho de fotógrafos cuja obra não é conhecida. Entre eles está o fotojornalista carioca Sebastião Marinho, de 85 anos, um homem negro que cobriu seis Copas do Mundo e é autor de uma produção incrível. Fico pensando quantos outros nomes ainda estamos por descobrir.
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