Especialistas de diferentes áreas do conhecimento têm procurado evidenciar a importância da primeira infância para o desenvolvimento da vida adulta. Isso porque, quando cresce, a criança que foi bem cuidada e estimulada até os 6 anos de idade tende a ter menos problemas de saúde, conseguir melhores oportunidades profissionais e demandar menos assistência governamental. Considerando esse contexto, um grupo formado por pesquisadores do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP, criou uma metodologia para calcular quanto o governo brasileiro investe nessa faixa etária da população. A principal constatação: em 2021, esse investimento não chegou a 1% do orçamento federal.
“Políticas públicas voltadas aos primeiros anos de vida trazem resultados econômicos positivos para o indivíduo, no futuro. É preciso deixar de enxergá-las como gasto e passar a compreendê-las como investimento”, diz a jurista Liliana Chopitea, do Unicef e coordenadora do Grupo de Trabalho de Orçamento Público pela Primeira Infância da Comissão Interinstitucional da Frente Parlamentar Mista da Primeira Infância. Criado em 2021, o grupo de trabalho é coordenado pelo Unicef e reúne 17 instituições, entre órgãos públicos, de ensino superior e pesquisa, como o CEM, e organizações da sociedade civil. Segundo Chopitea, em 2021 a Lei Orçamentária Anual, que estabelece receitas e despesas do governo federal, destinou apenas R$ 420 milhões exclusivamente para crianças de até 6 anos. O estudo também identificou que, naquele ano, o investimento direcionado à primeira infância correspondeu a 0,41% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro e a 0,92% do Orçamento Geral da União. Ainda de acordo com o levantamento, 94% do total investido na primeira infância concentrou-se nas áreas da saúde, assistência social e educação. “Sem orçamento não há como formular e implementar políticas públicas. Ao criar uma metodologia para identificar o montante destinado à primeira infância, a ideia é estimular o poder público a ampliar os investimentos nessa parcela da população”, enfatiza Chopitea. Ao destacar o pioneirismo da iniciativa, ela esclarece que metodologias anteriores, como o Orçamento da Criança e Adolescente, foram desenvolvidas para orçamentos municipais e consideravam, por exemplo, recursos totais do Bolsa Família, enquanto a ferramenta atual permite identificar especificamente qual montante dos recursos desse programa federal beneficia crianças dessa faixa etária, excluindo da contagem jovens e adultos que também são atendidos pelo programa.
A administradora pública Ursula Dias Peres, da Universidade de São Paulo (USP) e do CEM, explica que para investimentos que envolvem outros públicos, o desafio foi estabelecer indicadores que tornassem viável realizar “a delimitação adequada de gastos com crianças em ações que não as beneficiam de modo exclusivo”. “Investimentos em vacinação infantil são diretos, mas no caso de programas de moradia, por exemplo, foi preciso identificar quantas crianças são impactadas por eles”, detalha. No final de 2022, o Unicef capacitou 50 servidores de ministérios, incluindo os da Educação e Saúde, no funcionamento da nova metodologia.
O Brasil tem 32 milhões de crianças e adolescentes na pobreza, conforme levantamento do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), divulgado em fevereiro. O número corresponde a 63% da parcela da população de até 18 anos e inclui meninas e meninos que experimentam as múltiplas dimensões da pobreza, incluindo viver em famílias sem renda suficiente, não ter acesso à educação, alimentação, água e saneamento, residir em moradias precárias e exercer trabalho infantil. Para reverter esse cenário, o Unicef defende a necessidade de elaboração de políticas públicas voltadas não apenas às crianças e adolescentes, mas também às suas famílias e responsáveis. A pesquisa “As múltiplas dimensões da pobreza na infância e na adolescência no Brasil” foi realizada a partir de bases de dados oficiais, como a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) e a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF).
Chopitea destaca que o Brasil dispõe de marcos legais que protegem crianças e adolescentes e são referências no mundo. A Constituição Federal de 1988 determina, em seu artigo 227, que crianças devem ser priorizadas no momento de formulação de políticas públicas. Além do Estatuto da Criança e do Adolescente (ver Pesquisa FAPESP n° 296), Peres, da USP, menciona o Marco Legal da Primeira Infância, lei aprovada em 2016 que estabelece garantias específicas e diretrizes para políticas públicas voltadas a crianças de até 6 anos. Entre outras ações, o marco legal deu origem à criação da Frente Parlamentar Mista da Primeira Infância. “Por meio dos esforços da frente parlamentar, a primeira infância foi priorizada nos Planos Plurianuais [PPA] de 2020 a 2023”, comenta, citando que os PPA estabelecem objetivos que devem ser seguidos pelos governos federal, estaduais e municipais no prazo de quatro anos. Partindo desses planos, um decreto presidencial estabeleceu a Agenda Transversal e Multissetorial da Primeira Infância, que envolve um conjunto de ações governamentais implementadas por meio de políticas públicas articuladas. Além disso, desde 2014 o país conta com metas específicas à educação infantil no Plano Nacional de Educação (PNE). Apesar dos marcos legais, nem todas as garantias e diretrizes são cumpridas. De acordo com o relatório “Pobreza na infância e na adolescência”, elaborado pelo Unicef em 2018, 39,7% das crianças de até 5 anos têm seus direitos violados no Brasil.
Olhando para o contexto latino-americano, Chopitea, do Unicef, explica que a composição de orçamentos destinados à infância é complexa. “O Peru, por exemplo, afirma gastar 0,23% de seu orçamento público federal com a primeira infância, enquanto o México, 10%. Porém cada um faz a apuração dos valores considerando itens específicos”, observa. Além das dificuldades para se comparar o orçamento brasileiro com o de outros países, existem discrepâncias internas, envolvendo os investimentos estaduais e municipais, porque no Brasil cada tribunal de contas utiliza metodologia específica para esses cálculos. “Temos a expectativa de que a nova metodologia abra caminho para a criação de ferramentas que permitam a estados e cidades um cálculo mais preciso e sistemático”, diz Peres, da USP. Ela conta que o CEM integra um grupo de trabalho constituído para elaborar metodologias e orçamentos com foco em gênero e raça. “A ideia é poder acompanhar a evolução do orçamento voltado a diferentes públicos, incluindo mulheres, indígenas, negros, entre outros”, diz.
A psicóloga Maria Beatriz Martins Linhares, da USP, explica que os primeiros 3 anos de vida são especialmente sensíveis para o desenvolvimento humano. Por isso, defende que os governos priorizem a alocação de recursos para essa faixa etária da população. “Situações de pobreza, violência e privação de afeto na infância vão impactar o indivíduo durante a vida toda, incluindo a sua integridade neurológica e a capacidade de aprendizagem”, informa.
Com vistas a acompanhar o desenvolvimento infantil, uma pesquisa de coorte para avaliar indicadores psicológicos, comportamentais, biológicos, epigenéticos, entre outros, de crianças de até 6 anos será um dos primeiros estudos a serem realizados pelo Centro Brasileiro de Pesquisa Aplicada à Primeira Infância (Cpapi). Criado em 2021 pelo Insper (Instituto de Ensino e Pesquisa) com o apoio da FAPESP, o centro agrega outras sete organizações e 18 pesquisadores, a maioria da USP. “Com os resultados das pesquisas desenvolvidas no Cpapi queremos incentivar a formulação de políticas públicas baseadas em evidências científicas”, explica o economista Naércio Menezes, do Insper e coordenador do centro. Ele observa que o país não sabe se as crianças brasileiras estão se desenvolvendo adequadamente, apesar da existência de avaliações como o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), que mede o aprendizado e o fluxo escolar, e indicadores de mortalidade infantil e incidência de doenças na área da saúde. De acordo com Menezes, o Brasil também desconhece o percentual de crianças com atraso no desenvolvimento.
A psicóloga Maria Beatriz Martins Linhares, da USP, também pesquisadora do Cpapi, comenta que outro estudo do centro envolve a Caderneta da Criança, documento do governo federal criado em 2005 que registra todas as informações sobre o atendimento à criança em serviços de saúde até os 9 anos. “A caderneta é subutilizada. Estamos desenvolvendo uma metodologia e um programa de treinamento para auxiliar profissionais da saúde a otimizar o seu uso, especialmente na parte de vigilância do desenvolvimento infantil”, diz. Ela destaca que um dos desafios da formulação de políticas públicas para essa faixa etária é que elas precisam envolver diferentes áreas e devem ter início antes do nascimento das crianças, incluindo atenção a gestantes, puericultura, vacinação, assistência social, em uma agenda integrada, transversal e multissetorial.
“É urgente que o país desenvolva políticas que assegurem menos desigualdade no começo da vida e ofereçam ações efetivas para reduzir o impacto de experiências negativas na infância”, sustenta a psicóloga. Desde 2020, a pesquisadora coordena, em parceria com a psicóloga Elisa Rachel Pisani Altafim, também da USP, a implementação de um programa de prevenção de violência contra crianças, elaborado pela American Psychological Association, em serviços públicos de 24 municípios do Ceará.
Pioneiros nessa linha de trabalho, os estudos do economista norte-americano James Heckman, feitos em parceria com psicólogos, estatísticos e neurocientistas, têm demonstrado que, para cada dólar investido na primeira infância, o retorno estimado é de US$ 7, quando essa criança completar 20 anos de idade. “Vencedor do prêmio Nobel no ano 2000, as constatações de Heckman abriram caminho para outras pesquisas que procuram mensurar os impactos que experiências na infância causam na vida adulta”, detalha Linhares.
Como parte dessas novas abordagens, a psicóloga Carolina Ziebold, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), participou de uma pesquisa coordenada por David McDaid, da London School of Economics and Political Science, que identificou uma associação entre problemas de saúde mental na infância e maior probabilidade de repetência escolar. “Usamos dados de análise contínua de uma coorte brasileira de jovens desfavorecidos para modelar os custos, para o sistema educacional, de problemas de saúde mental não tratados”, explica. Estudo de coorte compara um grupo de pessoas exposto à determinada situação com outro não exposto ao longo de vários anos. Considerando o valor do dólar em 2019, ano da pesquisa desenvolvida para o Fórum Econômico Mundial por Ziebold e outros pesquisadores, o custo estimado para o Estado para um ano de repetência entre jovens sem problemas de saúde mental era de US$ 3,5 mil. Para jovens que vivenciaram situações crônicas de medo, angústia ou transtornos mentais durante a infância esse valor variava entre US$ 4,4 mil e US$ 6,3 mil.
Outro estudo, coordenado por uma equipe da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e publicado na revista The Lancet, analisou as consequências da pobreza na infância, na saúde e no desenvolvimento do indivíduo, partindo de estudos realizados em 95 países de baixa e média rendas, seguindo uma classificação do Banco Mundial. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), pobres são as pessoas que vivem com menos de US$ 1,25 por dia. A pesquisa identificou que crianças nessa condição correm de duas a três vezes mais risco de morrer até os 5 anos. “Constatamos que os efeitos da pobreza no início da vida são, na maioria dos países, persistentes e geram grandes problemas de saúde e desenvolvimento humano, no decorrer da vida”, explica o epidemiologista Fernando Hartwig, da UFPel e um dos autores da pesquisa. Além disso, os resultados mostram que crianças nascidas em famílias de baixa renda têm maior risco de desnutrição crônica, atrasos no desenvolvimento, baixa escolaridade e gravidez na adolescência, em comparação com crianças de famílias mais bem situadas economicamente.
Os pesquisadores também avaliaram os efeitos de longo prazo da pobreza na infância em coortes de cinco países de baixa e média renda. Nesses estudos, os indivíduos foram acompanhados desde o nascimento até a fase adulta. “A situação de pobreza na infância segue causando reflexos nos indicadores de saúde e desenvolvimento três décadas depois de experimentada”, reforça Hartwig. Ele explica que, para fazer as análises comparativas, o Centro Internacional de Equidade em Saúde da UFPel elaborou uma metodologia que permitiu a padronização dos dados dos distintos países envolvidos no estudo. “Esse processo de harmonização é um grande desafio, tendo em vista o grande volume de dados e as especificidades de cada país. Isso é especialmente desafiador em nações de baixa renda, onde as informações, muitas vezes, são precárias. O centro de equidade realiza a tarefa de forma contínua, produzindo um banco de dados comparável que pode ser usado para análises como essa”, finaliza.
Projetos
1. Centro de Estudos da Metrópole (CEM) (nº 13/07616-7); Modalidade Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid); Pesquisador responsável Eduardo Cesar Leão Marques; Investimento R$ 21.036.191,28.
2. Centro Brasileiro para o Desenvolvimento da Primeira Infância (nº 19/12553-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa ‒ Programa Centros de Pesquisa em Engenharia; Pesquisador responsável Naercio Aquino Menezes Filho; Investimento R$ 3.820.170,21.
Artigo científico
VICTORA, C. G. et al. Effects of early-life poverty on health and human capital in children and adolescents: Analyses of national surveys and birth cohort studies in LMICs. Optimising child and adolescent health and development – The Lancet. v. 399, n. 10336. abr. 2022.
Relatórios
Medição do Gasto Social com Primeira Infância para 2021. Grupo de Trabalho de Orçamento Público pela Primeira Infância. Comissão Interinstitucional da Frente Parlamentar Mista da Primeira Infância, 2022.
MCDAID, D. et al. An investment framework to build mental capital in young people. World Economic Forum. 2020.