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Saúde mental

A insustentável leveza

Interpretação da anorexia como parte da identidade amplia possibilidades de tratamento

MARCOS GARUTIElas passam horas em frente a confeitarias e se orgulham em mostrar para si mesmas e para os outros que resistem ao desejo de comer e até mesmo à fome. Quando emagrecem a ponto de perder a capacidade de se mover, vão à revelia para o pronto-socorro, mas não abdicam do direito de não comer. Se aceitam meia pera por insistência da equipe do hospital, podem depois passar horas pulando no quarto para queimar as calorias indesejadas e mostrar que elas é que mandam.

Não é fácil tratar quem tem anorexia, distúrbio alimentar caracterizado pela obsessão em perder peso e pela aversão ao alimento. O ganho de peso obtido depois de semanas de internação se esvai rapidamente. Um psiquiatra e uma psicóloga da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) encontraram uma das razões que explicam por que as pessoas com esse problema resistem tanto à possibilidade de serem cuidadas: a anorexia pode fazer parte da identidade dessas pessoas, na maioria adolescentes e mulheres adultas jovens. No Brasil, cerca de 1,1 milhão de mulheres e 120 mil homens com mais de 15 anos pesam bem menos do que o mínimo recomendado para a idade e altura e jejuam para emagrecer ainda mais.

“Alimentar-se, que poderia ser a solução para a perda excessiva de peso, pode soar para essas pessoas como uma ameaça à própria identidade”, diz Sérgio Blay, professor da Unifesp. Blay e Cybele Espíndola verificaram que quem teve anorexia reconhece que deixar de comer é prejudicial e conduz à solidão e ao isolamento social, mas também oferece controle sobre o corpo, poder, beleza e um sentimento de ser diferente, até mesmo superior às outras pessoas. Com base nesses achados, eles criaram uma proposta de tratamento, em fase de amadurecimento, que considera a anorexia como um dos pilares da identidade e, a partir daí, procura ampliar os interesses dos pacientes para além da alimentação e fazer com que esse problema seja assumido por quem o tem. Normalmente os portadores de anorexia se recusam a admitir que emagreceram demais e pensam muito apenas em como fugir da fome. “Diferentemente de outros transtornos psíquicos, esse é um universo singular, em que a doença possui um caráter simbólico marcante”, comenta Cybele.

MARCOS GARUTICom o mesmo propósito de entender a dimensão simbólica da anorexia, Rúbia Carla Giordani acompanhou durante quase todo o ano de 2003 oito adolescentes e mulheres de 16 a 25 anos com esse problema que estavam ou estiveram em tratamento em hospitais de Curitiba – o tratamento consiste essencialmente de dietas de ganho de peso, acompanhamento psicológico e uso de medicamentos psicotrópicos, geralmente antidepressivos. As entrevistas, cujas transcrições ocuparam quase 400 páginas, as observações do dia a dia dessas pessoas e as conversas com médicos, psicólogas e enfermeiras que as tratavam levaram a conclusões semelhantes.

“Essas mulheres se orgulhavam de sentir fome e não se alimentar”, diz Rúbia, que leciona nutrição e integra o grupo de pesquisa em sociologia da saúde na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Ela descobriu que essas portadoras de anorexia passavam horas em supermercados lendo rótulos de alimentos para memorizar quantas calorias têm um copo de leite ou um biscoito. “As meninas com anorexia têm um medo mórbido de engordar e se dedicam de forma obsessiva ao controle da imagem corporal”, diz. “O corpo ocupa uma posição central na vida de quem tem anorexia e funciona como um alicerce para qualquer tipo de experiência social.”

Por meio desse estudo, publicado em 2006 na revista Psicologia & Sociedade e detalhado em um dos capítulos do livro Olhares e questões sobre a saúde, a doença e a morte (José Rasia e Rúbia Carla Giordani, Editora da UFPR, 2007), Rúbia verificou que a anorexia era um problema que pode se estender para além das classes sociais mais altas e acometer também os mais pobres: a renda das famílias de suas entrevistadas variava de 1 a 33 salários mínimos.

Ouvindo essas mulheres, a pesquisadora da UFPR conheceu os três estágios de desenvolvimento desse transtorno alimentar. O primeiro é marcado pela discrição e nem os familiares percebem que alguém na família está cultivando a anorexia. Segundo Rúbia, esse distúrbio alimentar pode começar com uma dieta que elimina doces, gorduras e alimentos mais calóricos em geral. Pode depois evoluir para comportamentos bizarros e ritualísticos, expressos por meio de opção por cores, formas geométricas e combinação de alimentos – tudo ainda muito discreto.

Nesse início, essas pessoas fazem o possível para exibir uma vida normal, mesmo que já estejam emagrecendo bastante, como resultado do jejum e do excesso de exercícios. “Os pais e amigos ainda não detectam qualquer comportamento anormal”, diz a pesquisadora da UFPR. A etapa seguinte consiste de uma seleção e restrição ainda maior de alimentos: as pessoas com anorexia podem induzir o vômito ou tomar laxantes ou diuréticos. Trancam-se no banheiro para se livrarem em segredo do que tiveram de comer, mas com o tempo acabam descobertas.

A terceira etapa é a da hostilidade. “Meninas educadas e bem-comportadas, até então com boas notas na escola, começam a mostrar rebeldia e a enfrentar a equipe médica e os nutricionistas”, diz Rúbia. “Um aspecto central da anorexia é a negação da própria doença, por mais grave que esteja.”

Em dois artigos recém-publicados, um na revista Psychopathology e outro na Annals of Clinical Psychiatry, Blay e Cybelle argumentam que o reconhecimento da doença, a reconciliação do portador de anorexia consigo mesmo e a reconstrução da identidade poderiam contribuir no tratamento. “A reconstrução das relações familiares e o contato com amigos tornam-se agora muito importantes como parte do tratamento”, diz Cybele. Blay acrescenta “Até mesmo a espiritualidade ou os cuidados com animais domésticos podem ampliar o universo de atividades e criar situações que não estejam mais centradas no alimento.”

Os estudos de São Paulo e de Curitiba conferem um perfil particular à anorexia nervosa entre os distúrbios mentais e ampliam as possibilidades de tratamento de um problema que não é atual nem restrito a adolescentes, modelos e bailarinas. Freud escreveu em 1893 sobre uma mulher que desenvolvera anorexia depois do nascimento do primeiro filho e dois anos depois sobre outra, a quem insistiu para tomar água (ela tomava só leite) e parar de jogar a comida pela janela. Ela antecipou-lhe o fracasso da recomendação ao responder: “Eu o farei porque o senhor está mandando, mas eu posso desde já lhe dizer que isso vai acabar mal, porque é contrário à minha natureza e meu pai era como eu”. Para Freud e outros psicanalistas, a ausência de menstruação por três meses seguidos, um dos sinais da anorexia, pode representar a negação da feminilidade e a fome constante, uma forma de sentir prazer com o corpo.

Sedução e mentiras
“O principal inimigo do tratamento contra a anorexia é o próprio paciente, que se vale de todos os meios possíveis para burlar o tratamento”, diz o psiquiatra Táki Cordás, coordenador do Ambulatório de Bulimia e Transtornos Alimentares (Ambulim) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP). Ele ainda se lembra de uma carta que recebeu anos atrás de uma mulher com anorexia que ele tratara e deixava o hospital. “Ela tinha escrito algo assim: ‘Não caia na nossa sedução, não acredite no que dizemos. Nós estamos mentindo. Você precisa aprender a ser rígido’”, ele rememorou. “Ela se suicidou meses depois e eu aprendi que não podemos ser flexíveis e atender a solicitações de pacientes que não estão preparados para se cuidarem, embora se sintam onipotentes.”

Casos mais graves de anorexia podem ser fatais, como o de uma modelo de 21 anos, 1,74 metro de altura e 40 quilos que morreu em novembro de 2006 por causa de complicações renais causadas pela anorexia. A necessidade de serem magras para destacar as roupas com que desfilam faz com que as modelos tenham de 10% a 15% de gordura no corpo; o nível considerado saudável varia de 22% a 26%.

Situações extremas, alerta Blay, exigem medidas enérgicas como internação hospitalar, ênfase na recuperação de peso e acompanhamento de uma equipe multidisciplar, com médicos, enfermeiros, psicólogos e assistentes sociais. Muitas vezes o tratamento é bastante difícil porque com frequência a anorexia está associada a outros problemas como depressão, transtorno obsessivo-compulsivo, transtorno bipolar do humor, estados paranoides e fobias sociais.

Sob a orientação de Blay, durante os dois primeiros anos do doutorado Cybele examinou 3.415 artigos científicos sobre anorexia publicados de 1990 a 2005. Ela organizou o conhecimento nessa área e selecionou os estudos que davam voz às portadoras de anorexia por meio de uma técnica chamada metassíntese, que reúne dados qualitativos como depoimentos de entrevistados, diferentemente da abordagem mais adotada, a meta-análise, empregada para agrupar dados quantitativos como a eficácia dos tratamentos. Seu trabalho prossegue agora com um levantamento em ambulatórios de hospitais, consultórios privados e academias de ginástica de Fortaleza, sua cidade natal, e de São Paulo. Ela pretende entrevistar 30 pessoas que apresentaram anorexia, foram tratadas e não exibem mais sintomas desse distúrbio alimentar há pelo menos cinco anos. Não teve de procurar muito. Em janeiro deste ano, Cybele perguntou a uma professora de educação física em uma academia se ela conhecia alguém que tinha tido anorexia e espantou-se com a resposta: “Eu já tive”.

As 14 entrevistas feitas até agora indicaram que os sintomas podem ter desaparecido, mas a preocupação em ter um corpo idealizado e geralmente esquálido persiste, muitas vezes temperada com ansiedade e depressão. “Parece ser bem difícil desprender-se totalmente da dependência dos lados positivos da doença, como poder e segurança”, diz ela. Uma das mulheres que entrevistou contou que fazia exercícios físicos todo dia para manter o peso e ainda se pesava todo dia. Outra reconheceu que a anorexia pela qual tinha passado resultava de sérios problemas pessoais: “Não tem como sua vida ir bem e você ter esse problema, precisa algo não estar certo”.

Esses trabalhos elucidam os significados, mas não as causas dessa doen­ça, que podem ter origem genética ou orgânica, além, claro, de conflitos pes­soais. Cordás inquieta-se ao ver mais pessoas – principalmente entre os grupos antes isentos de riscos, como crianças, homens e mulheres com mais de 40 anos – com o que chama de “cabeça de anoréxicos”, preocupados em perder peso a ponto de exagerarem na dieta ou nos laxantes. Programas de televisão e revistas, especialmente as dirigidas para adolecentes, reforçam a pressão pela busca de corpos mais finos que os da Barbie. “Para quem tem anorexia”, observa Blay, “a TV traz de volta as piores sensações possíveis, porque lembra que elas ainda não chegaram aonde queriam chegar”.

O projeto
Revisão sistemática e metassíntese dos estudos qualitativos em transtornos alimentares (nº 07/50739-1); Modalidade Bolsa de Doutorado Direto – Fapesp; Coordenadores Cybele Ribeiro Espíndola e Sergio Luis Blay – Unifesp; Investimento R$ 74.998,17

Artigos científicos
ESPÍNDOLA, C. R. e BLAY, S.L. Anorexia nervosa treatment from the patient perspective: a metasynthesis of qualitative studiesAnn Clin Psychiatry. 2009 21(1), p. 38-48
ESPÍNDOLA, C. R. e BLAY, S. L. Anorexia nervosa’s meaning to patients: a qualitative synthesisPsychopathology. 2009; 42(2), p. 69-80.
GIORDANI, R. C. F. A autoimagem corporal na anorexia nervosa: uma abordagem sociológicaPsicologia & Sociedade, 2006, 18 (2): p. 81-88.

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