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Ficção

A lâmpada

MARCOS GARUTI Se perguntada por Cido Curiango (que fazia questão de chamar pelo verdadeiro nome: Aparecido Claudino), dona Raulina, mãe adotiva, mais dois filhos naturais, balançava a cabeça e dizia: “Sei lá, no meio do mundo, sumido…” – e a seguir contava que fora assim, de repente, nada de ir mais à escola, o ano abandonado, pé na rua, umas poucas reaparições em casa e, por fim, invisível.

Não suspeitava que, de vez em quando, os olhos do moleque paravam ali, à sua janela, e olhavam para dentro, ansiosos, avaliadores. Numa noite ele até chegara a entrar e apanhar, silencioso, um pouco de comida na cozinha. Subira no telhado e ali ficara comendo, lambendo os dedos com o arroz e abobrinha que só ela fazia tão bem. Depois, era voltar para a busca de vala, bueiro, sucata de carro, para dormir. Aplicava toda a sua perícia em não fazer ruído para descer. Não podia arriscar-se a ser ouvido e chamado de volta – precisava de outra vida, assanhado pela noite desde pequenino – dona Raulina o salvara, uma vez, de jogar-se, extasiado, contra os faróis de um carro.

Aos treze anos se fizera adepto das ruas, da cidade ilimitada, que gostava de percorrer sozinho – sua associação aos grupos era fugaz, não se deixava seduzir por rotinas, esquivando-se sempre para mais para frente, para os horizontes de néon e grandes prédios escuros além dos quais reinava um horizonte ainda mais escuro. Morrer? Caíra de uma altura de três metros ao não encontrar uma escada no fim de uma laje molhada, na fuga de uns tiros, e não quebrara nada; roubara <em>pedra</em> para vender a preço seu e não fora eliminado, resistira em ziguezague a balas que lhe zuniam no pé da orelha, a cortes de canivete, curados com mertiolate e band-aids pegos em passagens velozes por farmácias; fazia parceiros ocasionais para entrar em casas, postos, restaurantes e, na hora de dormir, sempre um ninho imprevisto, não revelado a ninguém.

Ria ao parar diante de algum bar onde, em televisão, rolassem as aventuras do Pica-Pau: sim, com ele ninguém podia, do nada surgia a banana de dinamite, o charuto explosivo, o canhão, vôo incontrolável, bico ativo, travessura, punição, revide. Coçava os bagos, contente, e aplaudia.

Mas achava que andava sendo muito notado, que ultimamente dera para cruzar com mais viaturas em marcha lenta, que as esquinas lhe davam, de abrupto, tipos para os quais precisava baixar a cabeça. Por isso encompridara a sua fuga, se embrenhara em distâncias novas e inóspitas, bairros cujos nomes só Deus sabia, ruas após ruas de bares, supermercados, salões de forró, de bilhar, terrenos baldios com fundações surgindo. A suspeita de que o acertariam, de que um cano de revólver ou um porrete o acordaria numa dessas manhãs o fazia dormir pouco, mal, pensando muito, engolindo bebida roubada para se aturdir. Estivera numa fila de putos que, pelo desempenho, receberiam duzentos reais, no salão de um cabeleireiro que, possuído por três, com o quarto brigara, e este – grandão de pouco rir – não gostara e o estrangulara com o fio do secador, jurando caixão para quem contasse. No dia seguinte, nos jornais, ele vira a fotografia do assassinado, tipo conhecido, lera as manchetes, cabisbaixo. Assim, de esconderijo a esconderijo, fora parar num terreno com um barracão sobre brite para o qual só voltava à noite. E havia ali uma espécie de cabine da qual podia ver tudo ao redor. Vigiava, dormia. Parecia seguro, ao menos por uns tempos.

O que o atraía era uma janela bem em frente, num pequeno prédio baixo e pichado em todas as direções. Era uma escola, o que fora uma escola, a julgar pela ruína de um <em>playground</em> com um brinquedo giratório de patos de madeira quebrados. Do letreiro no muro só haviam sobrado algumas letras que nada formavam, sujas de excrementos. Todo começo de noite, uma mulher aparecia – baixinha, de óculos, pasta sob o braço, chegando da rua devagar,  abria um portão quebrado, com um rangido nada discreto, olhando para todos os lados; depois entrava e acendia uma lâmpada. A sala não era muito espaçosa e, pela janela de pequenos retângulos de vidro só uns poucos intactos, ele a via com a nitidez permitida pelos sessenta watts. Ela erguia-se um pouco para acendê-la, girando com suavidade o pino do soquete, fazendo a luz, animando-se a arrumar carteiras. A seguir, risos e vozes, e um grupo, jovens, adultos, mesmo três idosos, passava devagar pelo portão aberto. Via todos juntos, talvez oito pessoas, com a parcialidade que seus olhos não iam vencer, movendo-se lá dentro, na sala, e a mulher diante de um quadro-negro, explicando pontos iniciais do alfabeto. A voz, que no início lhe parecera muito aguda, acalmava-o, ele estendia as pernas, punha as mãos sobre a barriga, descansava, ouvia. A música daquelas sílabas, a lição repetida, coisas que já sabia, mas era delicioso de novo saber, lhe dava vontade de anotar. No dia seguinte, ao passar por uma papelaria com promoção de cadernos, não teve dificuldade em apanhar um deles e duas canetas e enfiar sob a camisa, com um assovio. Esperou pela noite. A lembrança do fio do secador dando voltas naquele pescoço e fazendo emergir uma língua daquela boca que gritava, da advertência do grandão, das notícias do jornal – que tiveram continuidade com a captura de dois dos três da fila – o deixavam lépido e alarmado, ninguém na rua ia surpreendê-lo, um vão de fuga em cada palmo do visível.

Noites, noites a fio anotando, gostando de sua letra, de sabê-la ainda bonita, arredondada, e assim, devagar, a expectativa da chegada da mulher, de sua entrada cautelosa, a lâmpada acesa, os alunos se acomodando, deixava-o orgulhoso, como se vivesse uma situação de luxo, de prazer, sem ser visto. Era tudo quanto precisava. Achava o bairro particularmente escuro, mas a janela iluminada como que o sorvia, não podia olhar senão para lá. Sentia o gesto da lâmpada segura por aquela mão delicada, o pino do soquete girado, como algo voluptuoso e feliz. Era o que lhe permitia desfrutar, à distância, de um mundo tranqüilo, embalado por uma voz que tecia com vogais e consoantes objetos, alusões, rostos, nenhum lhe parecendo hostil. E, numa noite em que dormira depois de ter ocupado muitas páginas do caderno, despertou com a tranqüilidade toda varada por zunidos, sirenes, gritos, sons de coisas se espatifando. Olhou para a janela e pensou, não sem gratidão a algo obscuro, que ao menos a mulher e seus alunos não estavam na escola, na hora morta, em meio ao tumulto.

Na manhã seguinte, foi simples entrar – o ermo era completo – e ver o que restara do que já eram restos de janelas e portas – cacos sobre um tanque, um banheiro em cujo chão era impensável pisar. Entrou na sala, viu a lâmpada quebrada, estilhaços pendurados no soquete. Lembrou-se de imediato de um supermercado, por onde passava diariamente, e do ponto não distante do caixa onde se testavam lâmpadas compradas. Rumou para lá e, quando a mulher retornou à noite, prostrada, balançando a cabeça, ao entrar, acendeu-a, com ele sorrindo do outro lado, caderno em punho, olhos atentos.

Deteve-se nesse bairro, não pretende continuar na fuga para o horizonte de breu e pedrarias, acha que encontrou algo vagamente semelhante a uma casa.  Todos os dias, não há mais nada a esperar senão pela hora em que, depois que se acomodou no observatório, a mulher chega, abre o portão rangente, olha para os lados, ciente dos perigos e espreitas e, caminhando entre escombros, abre a sala e acende a lâmpada. Ele incumbiu-se de trocá-la a cada vez que for quebrada, para que a luz e a calma o inundem, para que aquela voz lhe cante o que terá que anotar. Nunca o verão talvez, ela e o grupo que a ouve, mas ele estará lá, a postos, sua nuca sob a mira de algo, mas seus olhos presos à janela, à claridade que, mesmo entre ruínas, se difunde.

Chico Lopes é jornalista e escritor, autor dos livros “Nós de sombras” e “Dobras da noite”.

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