Ardis da arte navega nos domínios da antropologia do ritual e da arte, com foco na interação entre pessoas e coisas. O livro se propõe a investigar diferentes mecanismos que dão vida a imagens e objetos em contextos rituais da Amazônia indígena. E faz isso com grande profundidade empírica e teórica. A obra se beneficia de uma pesquisa bibliográfica interdisciplinar e abrangente, o que oferece uma abordagem crítica e precisa em relação aos estudos de história da arte, antropologia, linguística e arqueologia amazônica.
Narrado em primeira pessoa, o livro do antropólogo Carlos Fausto traz etnografias resultantes de sua vivência de campo. Dialoga mais diretamente com dois povos indígenas amazônicos bem diferentes entre si: os Parakanã e os Kuikuro. Os primeiros são um grupo tupi-guarani que vive na densa floresta do interflúvio Xingu-Tocantins, no Pará. Com eles, Fausto conduziu sua pesquisa de doutorado nos anos 1990 que culminou na publicação do livro Inimigos fiéis: História, guerra e xamanismo na Amazônia (2001).
Já o povo Kuikuro, falante de uma língua caribe, habita uma zona de transição entre o Cerrado e a Amazônia, em Mato Grosso. Organizam suas aldeias em formato circular, com as casas dispostas ao redor de uma enorme praça central onde ocorre uma rica vida ritual. Fausto narra, inclusive, o impacto de seu primeiro contato com uma aldeia kuikuro em 1998, após a vivência com os Parakanã. Ele vem, desde então, trabalhando com esse povo.
O livro tem cinco capítulos, cada um dedicado a certo tipo de artefato ritual. Fausto examina as várias camadas do processo de construção de corpos e artefatos, começando pelo corpo humano, seguindo com os aerofones (instrumentos musicais), as máscaras e concluindo com as efígies humanas, que substituem corpos ausentes. O texto trata de presenças espirituais e da capacidade de ação dos artefatos rituais. Amplia com isso a própria noção de pessoa, que no pensamento indígena não é sinônimo apenas de ser humano, mas também de artefatos, de espíritos e de outros seres.
O primeiro capítulo analisa os corpos cantantes-dançantes dos Parakanã, ritualizados durante a cerimônia Opetymo. Em seguida, adota uma abordagem geográfica mais ampla e comparativa para descrever uma outra classe de artefatos corpóreos, conhecidos como cabeças-troféu. Esses troféus consistem em partes de corpos de inimigos capturados em guerra.
Já o segundo capítulo analisa complexos rituais envolvendo flautas sagradas. No noroeste amazônico, elas são associadas a narrativas míticas de Jurupari e são interditas às mulheres. Na Amazônia meridional, as flautas sagradas xinguanas têm relação com rituais femininos.
No capítulo seguinte, Fausto aborda a complexidade de padrões visuais presentes nas máscaras ameríndias, tanto na América do Norte como na América do Sul. E finaliza, uma vez mais, com um caso etnográfico alto-xinguano envolvendo as máscaras dos Kuikuro.
Menos comparativos e mais etnográficos, os capítulos quatro e cinco abordam dois rituais no Alto Xingu envolvendo efígies como elementos centrais. Apresenta o Javari, ritual no qual o artefato é construído de maneira rústica e faz uma representação genérica da figura humana. Já no Quarup, os enormes troncos de madeira paramentados personificam chefes ancestrais. Não exatamente os indivíduos falecidos, mas a condição de chefia, em uma sociedade com formas hierárquicas bem definidas.
Por fim, Fausto recorre à iconografia cristã voltada a representações híbridas e a contrasta com as estéticas ameríndias da transformação. A partir das cerâmicas arqueológicas e pesquisas recentes nesse campo, arrisca-se a tentar compreender a profundidade temporal dessas estéticas amazônicas.
Não é surpresa que o livro contenha uma significativa coleção de imagens que nos convidam, leitores, a interagir com elas. São fotografias realizadas pelo autor durante seus estudos etnográficos na Amazônia, bem como várias imagens e objetos rituais de culturas cristãs e indígenas, encontrados em diferentes museus ao redor do mundo. Gestado ao longo de muitos anos de pesquisa, Ardis da arte emerge como uma obra clássica na antropologia brasileira.
A arqueóloga Helena Pinto Lima é pesquisadora titular da Coordenação de Ciências Humanas do Museu Paraense Emílio Goeldi, em Belém.
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