À primeira vista, nada menos propício aos vôos literários do que o ambiente pachorrento de uma repartição pública. Curiosamente, todo aquele tédio fez milagres com alguns de nossos escritores, entre eles Drummond, Graciliano, Guimarães Rosa e, descobrimos agora, o bruxo do Cosme Velho, tema do recém-lançado Machado de Assis historiador (Companhia das Letras, 345 págs., R$ 41,00), de Sidney Chalhoub, que contou com o apoio da FAPESP em seu pós-doutorado na Universidade de Michigan, EUA, onde concluiu a pesquisa sobre como os anos como chefe da modorrenta segunda seção da Diretoria da Agricultura, do Ministério da Agricultura (entre 1870 e 1880), contribuíram para a feitura de obras-primas como Memórias póstumas de Brás Cubas. “O Machado romancista e o Machado funcionário público compartilhavam a mesma ideologia: ambos aprenderam a não esperar nada de bom da classe senhorial escravista brasileira do século 19”, diz Chalhoub.
O período em que esteve à frente do departamento coincide com todo o debate social e político feito pelos políticos do Império que acabaram culminando na lei de 28 de setembro de 1871, depois chamada de Lei do Ventre Livre. Ambos os “Machados” foram envolvidos pela polêmica. “O romancista esmerou-se em mostrar em seus escritos que a polidez e a aparente civilidade de senhores e proprietários assentavam-se na violência e no arbítrio, ainda que sugerisse também a capacidade dos dependentes em penetrar tal ideologia e torcê-la na busca de objetivos próprios”, explica. “O funcionário trabalhava para submeter o poder privado dos senhores ao domínio da lei. Acreditava na importância do poder público para disciplinar a barbárie senhorial.” Afinal, a política dessa elite assentava-se justamente sobre a inviolabilidade da vontade dos senhores que, ao lado da ideologia dos dependentes (para os quais era melhor concordar e lutar na surdina do que enfrentar a ira dos mestres), deu às inusitadas relações sociais brasileiras um sentido natural e perene.
“Tento mostrar no livro que um dos objetivos de Machado é analisar os modos de atuação política cotidiana dos dependentes, homens e mulheres, livres ou escravos”, fala o pesquisador. Nesse contexto, observa Chalhoub, “Machado foi capaz de ‘traduzir’ a complexidade de seu tempo histórico, de interpretar o nexo entre as coisas e de mostrar a indeterminação inerente à experiência histórica”. Eis que a literatura consegue fazer história, em especial por meio dos afamados “diálogos machadianos”. “Os diálogos são parte importante desse exercício analítico, pois mostram dependentes buscando atingir objetivos próprios por dentro da ideologia senhorial, de modo a não se expor à retaliação, caracteristicamente incivilizada, de que eram capazes proprietários e senhores de escravos.”
Para tanto, não é preciso nem sequer esperar as grandes obras da maturidade. “Um romance como Helena é muito mais complexo do que se pode suspeitar à primeira vista. Ela, por exemplo, quando quer conseguir algo de Estácio, trabalha a situação de maneira a tornar desejo dele, Estácio, fazer precisamente aquilo que ela, Helena, espera que seja feito. Enfim, tudo muito sutil, indireto, dissimulado, como a própria literatura machadiana”, nota o pesquisador. Uma literatura para olhos atentos, pois, diz Chalhoub, “sua percepção exige do leitor que decodifique por si mesmo a maior parte dos trejeitos e gracejos que constituem a arte da resistência na rapariga e qualquer leitor do século 19 saberia observar essa aparência a contrapelo, e o bruxo certamente contava com esse olhar.”
De certa forma, o historiador era o pai do romancista. “A história de Estácio e de Helena, antes que o drama choroso de um amor impossível, é a descrição do período de hegemonia inconteste da classe senhorial-escravista, cuja crise profunda o romancista vivenciara entre 1866 e 1871, e cujo desmanchar ele assistia com olhar investigativo na década de 1870”, diz o autor, para quem, Machado de Assis, ao escrever Helena, não tinha mais ilusões sobre a continuidade do status quo do poder. Para Chalhoub, o escritor deixa então a mocinha falar por ele. Mas os tempos ainda não davam uma luz ao fim do túnel. “Se não tem mais ilusões, Machado sofre com o impasse e não vê alternativa e, assim, a ambigüidade da protagonista traduzia a experiência histórica de um sem-número de dependentes desse tempo: seduzidos pela ideologia senhorial, Helena e seus semelhantes podiam mostrar-se gratos aos senhores e relutar em sacudir as estruturas tradicionais.”
Teatro perigoso
Nada mais natural: como lutar contra séculos de dominação e contra uma classe cujo paternalismo se configurava num mundo idealizado pelos senhores, uma “sociedade imaginária que eles sonhavam realizar no cotidiano”, em que tudo acontecia em função do seu desejo. Contra isso, apenas era possível a “esperteza” dos dependentes em torcer a vontade senhorial em prol da sua própria sobrevivência. Daí, nas palavras do pesquisador, “o desafio de Helena, Luís Garcia, Capitu, José Dias e tantos outros de afirmar a diferença no centro mesmo dos rituais da dominação senhorial”. Um teatro perigoso em que se devia saber o limite de viver em meio à violência apenas pelo poder das palavras.
Assim, o Brasil machadiano era bem mais do que apenas a dicotomia casa grande-senzala. “Havia condições intermediárias entre a escravidão e a liberdade que, ao mesmo tempo que matizam a visão tradicional de uma sociedade dividida entre senhores e escravos, sugerem o tanto de precariedade inerente à condição desses dependentes.” A grande “sacada” do bruxo surgiu justamente no bojo das discussões que presenciava (e das quais participava) como funcionário público: “A crise da sociedade senhorial escravista originava-se basicamente no processo histórico de emancipação dos escravos”. A mágica do bruxo foi justamente ir além da dicotomia e perceber os interstícios, usando esse conhecimento como matéria-prima de seus romances. Daí, os romances vão aos poucos mudando sutilmente de tom, cada um deles, diz Chalhoub, “com uma lógica social própria, sendo importante ver o modo como surgem na história de seu tempo e o modo como se insurgem contra ela, tentando entendê-la e transformá-la”.
Dessa forma, após Helena, em Iaiá Garcia, de 1878, a narrativa agora espelha a crise decisiva do paternalismo. “A novidade é que os dependentes se confrontam com uma vontade senhorial mais consciente de si, ciente da resistência a seus desígnios e decidida a fazer valer sua autoridade por meio da astúcia e mesmo da fraude, não hesitando em violentar os subordinados”, nota o autor. Em Memórias póstumas de Brás Cubas tudo se consolida. “Há o solo comum da crítica ao mundo senhorial, agora de forma quase brutal, na exposição do arbítrio e da violência dos senhores, mas também na sugestão de que havia situações em que os dependentes faziam gato-sapato do todo-poderoso Brás Cubas. Em Memórias, Machado reescreveu Helena e, se o menino é o pai do homem, Brás é filho de Estácio.” Aos poucos, a luta para corroer a elite torna-se mais intensa, quase aberta e os podres poderes mostram-se em sua inteireza. Brás decide o destino da borboleta negra como decide a vida de seus subalternos sociais e dona Plácida, a alcoviteira, só viera à existência porque foi necessidade dele que ela viesse. Abusando da liberdade da morte, Cubas é um senhor boquirroto, cujas confidências de arrogância nos assombram pela sinceridade.
Após a crueza de Memórias, Machado faz a “crítica cerebral de Dom Casmurro, romance tão sereno quanto cirúrgico no relato dos horrores senhoriais. Talvez uma autópsia do mundo dos senhores de escravos, pois que esse se fora, em grande medida, no momento da escrita do livro”, observa o pesquisador. O “xadrez político dos dependentes” agora incomoda os senhores, que vêem traição e dissimulação em todos os cantos e olhos. “Capitu conhecia a arte do diálogo político. Em Dom Casmurro, a menina é mãe da mulher. Sempre que sujeitos da história, os dependentes traem os senhores. Se é esta a única clave possível, podemos respirar aliviados: Capitu traiu Bentinho.”
O projeto
Machado de Assis e a emancipação dos escravos (nº 99/01971-0); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Bolsista Sidney Chalhoub – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas/ Unicamp