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Música

A música do futuro

Projeto coordenado por Fernando Iazzetta viabiliza concertos interativos on-line

Guilherme Tosetto

A performer Lilian Campesato usa sistema interativo de som e imagem no espetáculo "Por trás das coisas", em outubro de 2010, realizado no teatro do Instituto de Artes da Unesp, em São PauloGuilherme Tosetto

Imagine um mundo musical sem as noções de virtuoses nem compositores geniais. Salas de concerto com palco e plateia serão apenas conceitos de um dourado passado romântico, onde as pessoas se reuniam para, respeitosamente e em silêncio, aplaudindo apenas nos momentos permitidos, assistirem reverencialmente a uma espetacular exibição de destreza manual e artística de um virtuose num Steinway de concerto ou então empunhando um Stradivarius de US$ 2 milhões.

Ainda não chegamos lá, mas sem dúvida estamos caminhando para isso. Hoje já é possível realizar concertos interativos on-line, com músicos espalhados nos quatro cantos do planeta (com direito a serem ouvidos em streaming também em todo o planeta). Quem acaba de realizar um concerto desses é um grupo de integrantes do “Móbile – processos musicais interativos”, um projeto temático coordenado por Fernando Iaz-zetta, da ECA-USP, com apoio da FAPESP.

“Em junho de 2011, realizamos um Net Concert, em colaboração com o Sonic Arts Research Centre (Sarc), da Queen’s University, em Belfast, Irlanda do Norte. Foi um concerto colaborativo com dois grupos de músicos, um deles em nosso estúdio na USP (o Lami – Laboratório de Acústica Musical e Informática) e outro no auditório do Sarc”, diz Iazzetta. Conectados por um sistema multicanal de áudio e vídeo, tocaram juntos cinco peças compostas especialmente para esse tipo de evento. Duas questões estão envolvidas no projeto. A primeira é testar e desenvolver sistemas para conexão remota em tempo real e que músicos possam tocar juntos, mesmo estando em lugares diferentes. A segunda é explorar criativamente esse sistema. “Ou seja, nossa ideia não é simplesmente ter uma peça tradicional tocada por músicos em cidades ou até países diferentes (embora esta seja uma possibilidade), mas criar obras que tirem proveito do ambiente da internet 2.0 e explorar novas possibilidades desse ambiente.”

Após este primeiro teste bem-sucedido, o Móbile fará em 22 de março de 2012 seu segundo concerto por internet rápida, integrando o Festival Sonorities de Belfast. Novamente, dois grupos, um em São Paulo e outro em Belfast, apresentarão um concerto com conexão de alta resolução de áudio e vídeo em tempo real, com obras escritas especialmente para o evento. O público poderá assistir ao concerto em São Paulo, em Belfast ou em qualquer parte do mundo, haverá acesso por streaming pela internet. As informações sobre o concerto e o endereço para acessar o streaming estarão acessíveis em breve no site www.eca.usp.br/mobile.

Música de (e para) todos
Móbile, iniciado em 2009 e com conclusão prevista para 2013, promove, segundo Iazzetta, “o cruzamento entre uma produção teórica e artística, possibilitando que trabalhos de criação sejam desenvolvidos dentro desta proposta. Há ainda interesse na exploração de ações que possam promover o intercâmbio entre diversas áreas de conhecimento (artes, ciência da computação, engenharia), bem como entre a música e outras artes midiáticas. Os trabalhos agrupam-se em quatro linhas de pesquisa: sonologia; desenvolvimento de sistemas interativos; produção artística com sistemas interativos; e acústica musical, psicoacústica e auralização”.

Fernando Iazzetta

Orquestra de câmara toca na cena final do mesmo concerto em meio a uma projeção de imagensFernando Iazzetta

Trocando em miúdos, metas que levam em conta o naufrágio das noções de intérprete genial e obra de arte. Este talvez seja o maior mérito do projeto Móbile: pensar a música em outros termos, mais conectados com a realidade urbana, comportamental, científica e tecnológica que nos rodeia. O projeto tem uma equipe flutuante de 30 a 40 colaboradores – entre pós-graduandos, alunos de graduação e professores de outros departamentos e universidades, como Unesp e Unicamp. Tem também dois subcoordenadores, os professores Fabio Kon e Marcelo Gomes de Queiroz, ambos da USP. A meta é juntar a produção artística com a científica, estimular a interdisciplinaridade e os processos coletivos de criação.

Móbile já produziu duas apresentações coletivas nos dois últimos anos, seus colaboradores produziram cerca de 70 artigos em seminários brasileiros e internacionais. Além disso, subgrupos como duos, trios e formações até maiores concentram-se em aspectos específicos da prática musical experimental. Não há postura estética determinada, embora, afirma Iazzetta, “pelo próprio perfil dos envolvidos, ele acabe se direcionando para a música experimental”.

O Projeto
Móbile: processos musicais interativos – nº 2008/08632-8
Modalidade
Projeto Temático
Co­or­de­na­dor
Fernando Iazzetta – ECA/USP
Investimento
R$ 414.806,66 (FAPESP)

Sem dúvida, Móbile olha para o futuro com consistência e arrojo, sem despregar os pés do nosso chão. De certo modo, antecipa em suas -realizações algumas das conclusões do sociólogo Pierre-Michel Mender no artigo “Um passo para a utopia”, incluído no volume coletivo Artistes 2020 – Variations prospectives, publicado em 2010 na França. Menger faz um exercício de futurologia superinteressante. Sua afiada “bola de cristal” decreta para 2020 o fim do filtro seletivo na música e na dança: as barreiras entre os gêneros musicais se enfraquecerão. Prevê a “desespecialização” nas artes visuais e a multiplicação dos híbridos entre as disciplinas artísticas (vídeo, cinema, pintura, escultura, teatro, ópera, dança). Prega a “democracia do gênio” (ou o fim do adestramento prolongado e torturado, tanto na criação quanto na interpretação). E a “desagregação da noção de obra”. A utopia do “todo mundo artista”, diz Menger, será sustentada por uma transformação da prática artística: autoformação em contexto de troca e aprendizagem mútua em rede, valorização das práticas híbridas, insistência sobre a atividade coletiva e a mutualização da noção de invenções criadoras, enfraquecimento do direito de propriedade em benefício da livre recombinação de ideias e de soluções acessíveis a todos. Tudo isso – provam as apresentações, os artigos e a prática interdisciplinar rigorosa do Móbile – já é realidade por aqui.

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