No dia 30 de abril passado, Massuo Jorge Kato foi interpelado por fiscais do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) no aeroporto de Belém pouco antes de embarcar para São Paulo. O pesquisador do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP) carregava uma caixa de papelão, daquelas usadas para transportar monitores de computador, com cerca de 30 amostras semiprocessadas de folhas e ramos finos de várias espécies de piperáceas, família de plantas aromáticas que inclui a famosa pimenta-do-reino. Embora os espécimes tivessem sido coletados de forma legal na Floresta Nacional de Caxiuanã por pesquisadores da Universidade Federal do Pará (UFPA), que colaboram com o cientista paulista, Kato não possuía uma autorização para transportar o material da floresta para a capital paulista. À luz da lei, para os funcionários do Ibama, o especialista em plantas incorreu numa prática que beira a biopirataria. Por isso o material foi apreendido e o cientista notificado a dar explicações de seu procedimento. “Conheço as normas, há muitas exigências, algumas inviáveis”, afirma o especialista da USP. “Estamos numa situação de conflito entre o Ibama e os pesquisadores, que querem apenas dar sua contribuição para o conhecimento da biodiversidade”.
Kato é um cientista respeitado, com endereço e linha de pesquisa conhecidos, que pode ter incorrido numa falha burocrática, mas nem de longe promove o tráfico ilegal de espécies. O episódio vivido por ele é apenas mais um que ilustra a situação de paralisia e semimarginalidade em que foi colocada a pesquisa biológica de campo realizada em território nacional desde a edição, em agosto de 2001, da Medida Provisória nº 2.186-16. Formulado para preservar a biodiversidade nacional, esse marco legal, editado pelo governo federal, regula o acesso ao patrimônio genético do país e tenta criar um regime de partição de eventuais ganhos econômicos decorrentes da exploração comercial do chamado conhecimento tradicional dos indígenas sobre propriedades terapêuticas das plantas ou da obtenção de extratos ou moléculas derivadas e espécies da flora e da fauna brasileira. Mirando na biopirataria, a legislação atingiu o trabalho dos biólogos brasileiros, que passaram a enfrentar uma burocracia, às vezes irracional, segundo eles, a fim de obter autorizações do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN), órgão criado pela própria MP, para coletar amostras.
Há pelo menos três anos os pesquisadores pleiteiam, em vão, reformas na lei. “Esperávamos que o governo federal anunciasse a flexibilização das normas em março, durante a COP 8 (a Oitava Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica, patrocinada pela Organização das Nações Unidas)”, afirma Carlos Alfredo Joly, biólogo da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ex-coordenador do programa Biota-FAPESP. As boas novas não vieram, mas o Ibama e o CGEN acenam com reformas na MP para os próximos meses. Até porque, depois de embates entre cientistas e a área ambiental do governo federal, parece finalmente haver um consenso de que a atual medida provisória inibe, ao invés de fomentar, a pesquisa sobre a biodiversidade nacional. “De fato, a legislação é inadequada e jogou na ilegalidade os pesquisadores”, admite Eduardo Velez, secretário-executivo do CGEN, que concede as autorizações para coletas de campo com fins econômicos (trabalhos de bioprospecção ou baseados no conhecimento tradicional). “Queremos simplificar todo esse processo”.
Coleta ilegal
A concessão de uma licença desse tipo pode ser um martírio para quem trabalha na academia. “Estamos há mais de um ano tentando uma autorização”, reclama Vanderlan da Silva Bolzani, do Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Araraquara, uma das coordenadoras da BIOpropescTA, a Rede Biota de Prospecção e Ensaios, que pesquisa plantas da Mata Atlântica e Cerrado paulista em busca de vegetais com potencial para gerar produtos na área médica. Enquanto o aval de Brasília não vem, as viagens a parques e reservas para obter amostras para estudo estão suspensas. Segundo Vanderlan, apenas os laboratórios e empresas da área farmacêutica que contam com advogados para driblar a burocracia e assessorar os pedidos de autorização de coleta de amostras biológicas conseguem o sinal verde do CGEN. “Não é o nosso caso, mas, diante das dificuldades, há pesquisadores que preferem trabalhar na ilegalidade”, comenta a cientista. Até agora o CGEN concedeu menos de 20 autorizações de coleta com finalidade econômica.
Mesmo a obtenção de amostras da fauna e da flora para trabalhos de caráter acadêmico, que visam gerar basicamente mais conhecimento científico sobre as espécies, sem implicações comerciais, esbarra na atual legislação. A autorização para esse tipo de coleta é dada pelo próprio Ibama. Os pesquisadores reclamam da morosidade e falta de critérios para expedir as licenças, embora reconheçam que hoje o Ibama se mostra mais atento aos pleitos da comunidade acadêmica. “Uma autorização demora pelo menos seis meses para sair”, comenta o biólogo Carlos Roberto Brandão, do Museu de Zoologia da USP. “E se, por acaso, coletarmos uma espécie diferente da que consta em nosso pedido encaminhado ao Ibama, podemos ser acusados de biopirataria”.
Rômulo Melo, diretor de fauna e recursos pesqueiros do Ibama, admite que a medida provisória é um desestímulo à pesquisa e também promete mudanças urgentes, no final de julho ou em agosto, para desengessar a legislação atual. “O pesquisador deve prestar contas à sociedade de seu trabalho, mas tem de ser visto como um parceiro da área ambiental, e não como um potencial biopirata”, diz Melo. Entre as medidas flexibilizadoras propostas pela área ambiental federal, está a concessão de autorizações permanentes de coleta (e não caso a caso) para cientistas de instituições acadêmicas por meio de um ágil sistema on-line. “Apenas os casos mais delicados, como um pedido para retirar amostras de uma espécie ameaçada de extinção dentro de uma unidade de conservação, demandariam análise mais detalhada”, afirma Melo.
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