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Música

A novíssima música brasileira

Dois mecanismos de incentivo fiscal viabilizam a gravação e circulação dos sons do nosso tempo

Divulgação Partitura de Leonardo Martinelli – AyahuascaDivulgação

Em geral, os mecanismos de incentivos fiscais induzem à proposição de projetos grandiosos, nos quais as empresas patrocinadoras estão mais de olho na mídia do que propriamente na qualidade artística do que viabilizam. E fazem questão de escolher seus projetos porque, segundo seu raciocínio pragmático, deslocar suas verbas de isenção fiscal para o fundo do Ministério da Cultura é abrir mão de qualquer dividendo institucional. É assim aqui, mas é assim também no mundo inteiro, onde mecenas despejam milhões de dólares em bibliotecas e centros culturais… desde que levem seus nomes e sobrenomes.

Mas de vez em quando o Estado acerta. Em ao menos dois casos específicos, a ideia de abrir inscrições para projetos de pequena monta, avaliados por comitês especializados (traduza-se: profissionais), está provocando um fato inimaginável: a música novíssima contemporânea brasileira encontrou aí seus canais de divulgação. Sim, é aquela música atual que, por hermetismo, experimentação e completa refração às leis de mercado, acaba permanecendo ou nos limites do mundo acadêmico, ou então nas estantes dos criadores.

O milagre aconteceu basicamente por causa de dois mecanismos de incentivos inovadores: o Proac, sistema de incentivos do governo do estado via Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo que funciona mos moldes da Lei Rouanet federal: abate do ICMS devido das empresas – só que, como os valores são baixos, amplia-se o leque das empresas e torna-se mais fácil a caça ao patrocinador, normalmente feita pelo próprio compositor e/ou músicos. De outro lado, uma fórmula ainda melhor é praticada pelo sistema profissionalíssimo da Petrobras, onde  o rigor de seleção é maior e os projetos viabilizam-se financeiramente no momento de sua aprovação. Em ambos os casos, os projetos dificilmente ultrapassam a casa dos R$ 200.000,00. Por isso têm endereço certo: os próprios artistas/produtores, que enxugam ao máximo seus orçamentos porque querem mais que tudo viabilizá-los.

Os otimistas andam falando em avalanche de CDs com músicas novíssimas de jovens compositores paulistas e/ou aqui radicados, de todo o Brasil. Os realistas aplaudem porque finalmente temos acesso a gravações dignas de obras dos compositores jovens, na faixa dos 30, 40 anos. Melhor raio X da música experimental brasileira atual não poderia existir.

Dois notáveis exemplos
Dois exemplos notáveis dessa safra de lançamentos deste início de 2012 destacam-se porque são gravações de intérpretes e utilizam o mesmo mecanismo de incentivo fiscal, o do Proac. É um sinal claro de que os músicos de cabeça mais aberta – infelizmente ainda raridade no meio musical brasileiro – assumem uma postura de vanguarda e dedicam-se com talento e afinco à música novíssima. É o caso da excelente pianista Lidia Bazarian, que começou na música contemporânea ainda em Belo Horizonte, no grupo Novo Horizonte, e agora atua na Camerata Aberta, único grupo permanente dedicado às músicas de hoje no país. Pois ela acaba de lançar o CD Imaginário, em que interpreta obras para piano-solo de Silvio Ferraz, Marisa Rezende, Rogério Costa, Marcos Branda Lacerda, Gustavo Penha, Valéria Bonafé e Tatiana Catanzaro. Os três últimos, entre os 20 e 35 anos, são novíssimos compositores, que ou estudaram, ou foram influenciados pelos quatro primeiros, hoje na casa dos 50, 60 anos. E que música é essa? Certamente muito longe das tendências pós-modernas norte-americanas, está bem mais próxima da experimentação mais radical à europeia, numa pesquisa original de timbres, texturas, gestos e sonoridades.

Divulgação Livreto do álbum duplo Música plural. Intérprete: Percorso Ensemble, regido por Ricardo BolognaDivulgação

O mesmo halo se sente no maravilhoso CD de violino-solo da italiana Simona Cavuoto, aqui radicada há sete anos. Simona integra a Osesp e também a Camerata Aberta. Um violino na metrópole combina obras para violino-solo de Willy Corrêa de Oliveira, hoje com 73 anos, e uma espécie de decano da música nova, e de compositores hoje na casa dos 40 anos, como Marcus Siqueira, Marcus Alessi Bittencourt, Rodrigo Lima e Maurício de Bonis.

Se não há uma afinidade estética declarada entre eles, ao menos todos se deixaram influenciar pela magnífica escrita de Willy, certamente tão talentoso do ponto de vista verbal quanto compondo. “O violino mais canta – quanto mais esteja só” é uma frase-chave que Willy dispara poeticamente na abertura de seu texto. E, de certo modo, é o mote das obras díspares do CD, porque a aura romântica e virtuosa está tão emprenhada no DNA do violino que é praticamente impossível fugir de seus encantos históricos ao compor.

Surpreende, por exemplo, Simona confessar que “os brasileiros são muito abertos à produção musical contemporânea. Sinto-me mais lúcida e conectada com a atualidade do mundo estando aqui”. Ou seja, nós, brasileiros, que consideramos duríssima a luta pela afirmação e divulgação da música nova, deveríamos dar uma olhadela nos quintais alheios, lamentar menos – e trabalhar mais.

Olhem as idades dos compositores deste CD: Marcus Siqueira e Marcus Alessi Bittencout têm 37 anos; Rodrigo Lima, 35, e Mauricio de Bonis também ainda não chegou aos 40. Todos lidam com técnicas expandidas. E criam obras que Gilberto Mendes chama, com razão, de pós-neue musik (o neue musik refere-se à ortodoxia vanguardista europeia do pós-guerra, liderada por Stockhausen, Pousseur, Boulez e Berio, nos cursos de Darmstadt, Alemanha).

Além dos CDs, há também apoios a projetos mais distendidos ao longo do tempo. Como o “Móbile: processos musicais interativos” (ver Pesquisa FAPESP nº 190), projeto temático apoiado pela FAPESP que começou em 2009 e terminará em 2013. Idealizado por Fernando Iazzetta, da USP, em 22 de março foi realizado seu segundo concerto por internet rápida, integrando o Festival Sonorities de Belfast, na Irlanda do Norte, onde o concerto foi o evento de abertura de um festival internacional de música contemporânea – e também de qualquer lugar do planeta, via streaming pela internet no site www.eca.usp.br/mobile.

A amostragem mais abrangente
O panorama mais diversificado e representativo da novíssima música contemporânea brasileira, entretanto, está no álbum duplo Música plural. Ele foi produzido em 2009 por um grupo de jovens compositores, todos na casa dos 30 anos: Felipe Lara, Bruno Ruviaro, Tatiana Catanzaro, Thiago Cury, Fernando Rederer, Alexandre Schubert, José Orlando Alves, Januibe Tejera, Marcus Siqueira, Leonardo Martinelli, Arthur Rinaldi, Matheus Bitondi, Guilherme Nascimento, Sérgio Roberto de Oliveira e Neder Nassaro. Eles utilizaram o mecanismo de incentivo fiscal da Petrobras.

Sua riqueza advém justamente do fato de que não há consenso estético hoje em dia. Daí o acertado adjetivo “plural” do título. Lá estão desde Felipe Lara, por exemplo, compositor que já venceu nos EUA e Europa, e também Leonardo Martinelli, um compositor ativista, que também exerce o jornalismo e dá aulas na universidade. Tatiana Catanzaro estudou com bolsas da FAPESP e Capes no Brasil e na França, e trabalha hoje em Paris com um dos mais qualificados grupos europeus dedicados à música contemporânea, o Ensemble Itinéraire. Ao todo, 15 obras, todas compostas na primeira década do século XXI. Juntas, compõem um significativo caleidoscópio da diversidade da criação contemporânea brasileira.

Nota: Os três CDs citados podem ser comprados na Loja Clássicos. O álbum duplo Música plural é gratuitamente distribuído pela loja. Cobra-se apenas o frete.

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