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Epidemiologia

A origem das doenças

Seis estados integram-se em um grande levantamento para descobrir como doenças cardíacas e diabetes evoluem

EDUARDO CESARLígia Fedeli, chefe de uma equipe de exames: amostras de sangue e de urina preservadas em nitrogênio líquidoEDUARDO CESAR

Todo dia, desde agosto do ano passado, uma equipe de quase 100 especialistas atende de 15 a 20 pessoas saudáveis que comparecem voluntariamente ao Hospital Universitário da Universidade de São Paulo (HU-USP) e passam por uma série de exames ao longo de quatro horas. O ritmo de trabalho deve continuar até março do próximo ano, quando essa equipe espera completar os 5 mil exames da cota paulista de um dos maiores levantamentos epidemiológicos já feitos no Brasil, com foco em doenças cardiovasculares e diabetes. Chamado Estudo Longitudinal da Saúde do Adulto (Elsa), o levantamento mobiliza outras cinco equipes, no Rio de Janeiro, em Minas Gerais, na Bahia, no Rio Grande do Sul e no Espírito Santo, com cotas menores que a de São Paulo, mas igualmente avançadas nos exames das 1 mil ou 2 mil pessoas que têm de fazer.

A equipe do Elsa pretende avaliar e acompanhar durante 20 anos o estado de saúde de um total de 15 mil homens e mulheres com 35 a 74 anos de idade. Os participantes passam por uma entrevista sobre condições gerais de saúde e depois por 35 exames clínicos e laboratoriais. De acordo com o planejado, no ano seguinte serão procurados para que digam se foram internados ou passaram por alguma cirurgia e a cada três anos farão os mesmos exames de sangue, urina e funções cardíacas. “Não queremos saber apenas quem tem doenças cardíacas num momento específico, mas como e por que essas doenças surgem, qual o peso efetivo dos fatores de risco e como a alimentação interfere para agravar ou proteger”, diz Paulo Lotufo, professor da Faculdade de Medicina da USP e coordenador do Elsa em São Paulo.

O Elsa é chamado de levantamento longitudinal, um tipo de estudo trabalhoso, porque implica o acompanhamento de um grupo grande de pessoas por muitos anos. A maioria dos levantamentos epidemiológicos feitos no país são transversais: consistem de um retrato, por vezes amplo, de um problema de saúde em um momento único, sem comparação com outros momentos. Por essa razão é que os coor­denadores do projeto concordaram, já nas primeiras reu­niões, que as pessoas a serem examinadas e acompanhadas seriam os próprios funcionários das instituições responsáveis pela realização da pesquisa. “Se por um lado sacrificamos a representatividade do estudo, por outro asseguramos a continuidade, já que funcionários públicos são estáveis”, diz Lotufo. Isabela Benseñor, professora da Faculdade de Medicina da USP e vice-coordenadora do Elsa em São Paulo, acrescenta: “Daqui a 20 anos alguém vai ligar para a casa dos participantes e eles provavelmente estarão na mesma casa. Se não estiverem, não será difícil descobrir onde estão morando. Em alguns estudos epidemiológicos às vezes as próprias casas, e não só os moradores, desaparecem”.

Até 21 de setembro, trabalhando do mesmo modo para que os resultados possam depois ser comparados, 300 pesquisadores e assistentes haviam atendido 6.680 pessoas, fazendo exames e coletando informações sobre o estado geral de saúde. Nos próximos anos, à medida que os resultados dos exames forem reunidos e analisados, esse trabalho poderá mostrar o que favorece ou detém o surgimento de muitas doenças crônicas, principalmente as cardiovasculares e diabetes, e sugerir formas de prevenção mais adequadas ao país. Outro objetivo é verificar se os valores numéricos adotados para definir se uma pessoa está com pressão arterial realmente alta ou sob o risco de infarto estão mesmo adequados à população brasileira. É possível que não estejam.

“Os protocolos de prevenção de doen­ças se baseiam em estudos realizados em países com hábitos alimentares e relações sociais diferentes”, diz Maria del Carmen Bisi Molina, professora da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e vice-coordenadora do estudo no estado. “Reproduzimos valores basea­dos em populações diferentes da nossa, pois não temos indicadores que possam refletir a nossa própria situação”, reforça Sandhi Maria Barreto, professora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e coordenadora estadual do Elsa.

O peso da dieta
Há razões para suspeitar também que as doenças cardiovasculares evoluem no Brasil de modo diferente do que se dá em outros países. Uma equipe da Ufes comparou as taxas de mortalidade por infarto no Brasil e em outros países e concluiu que os brasileiros morrem de quatro a cinco anos antes dos moradores dos Estados Unidos ou da Europa. “Ou os fatores de risco como o tabagismo e a hipertensão começam mais cedo ou, quando aparecem, se manifestam de maneira mais agressiva”, cogita José Geraldo Mill, professor da Ufes e coordenador do estudo no Espírito Santo. O peso dos chamados modificadores de efeitos, como a dieta e as relações sociais, capazes de ampliar ou amenizar os fatores de risco de infarto ou de acidente vascular cerebral, ainda é pouco conhecido no Brasil. “Será que o colesterol elevado tem o mesmo efeito que em outros paí­ses? Só um projeto de longa duração pode responder”, diz Mill.

EDUARDO CESARO Elsa é hoje uma linha de produção de exames que correm entre seis estadosEDUARDO CESAR

Este mês uma equipe de entrevistadores vai a campo para perguntar a 300 participantes do estudo (50 de cada um dos seis estados) o que comeram e beberam em um dia específico. Repetirão as perguntas em março e agosto do ano que vem, com o propósito de avaliar o consumo calórico e de nutrientes. “Esperamos entender melhor, analisando os hábitos alimentares, como as doenças aparecem ou como a saúde se mantém”, diz Maria Molina, responsável pelo levantamento dos hábitos alimentares.

Desde já há sinais de que a alimentação no Brasil afora não é das mais saudáveis – e está favorecendo o surgimento de doenças cardíacas e diabetes. Em 1999 e 2000, como parte de um levantamento internacional sobre doença cardiovascular, a equipe do Espírito Santo analisou o estado de saúde e os hábitos de 1.661 moradores de Vitória entre 25 e 64 anos. O sobrepeso era de 52% e o consumo de sal, o dobro do recomendado. Moradores de outros estados podem estar também ganhando peso ou lentamente caminhando rumo a um infarto. A prevalência de sobrepeso ou obesidade na população brasileira passou de 16% para 41% entre os homens e de 29% para 40% entre as mulheres nos últimos 30 anos, segundo uma síntese do Elsa publicada na Revista de Saúde Pública. As doenças cardiovasculares constituem a principal causa de morte, com 32% do total em 2003, e de internações hospitalares, respondendo por 22% do total de R$ 6 bilhões gastos com internações em 2005 no Brasil.

“Estamos coletando dados para as futuras gerações de pesquisadores e despertando vocação dos entrevistadores para a pesquisa científica”, diz Dora Chor, professora da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) da Fundação Oswaldo Cruz e coordenadora do estudo no Rio de Janeiro. Informações mais consistentes sobre como as doenças surgem e o que poderia ser feito para evitar que se agravem devem começar a aparecer apenas daqui a três anos, mas outros ganhos são imediatos. Um deles nasceu da necessidade de administrar muitos exames continuamente: depois de um teste preliminar com 94 pessoas, a equipe capixaba mostrou que a urina pode ser coletada 12 horas antes, em vez das habituais 24, simplificando a vida de quem terá de comparecer na manhã seguinte, em jejum, para outros exames. “Para a avalia­ção de função renal, taxa de filtração e excreção de sódio e de creatinina, o exame de 12 horas apresenta praticamente os mesmos resultados que o de 24 horas”, diz Mill. “Queremos agora que os nefrologistas vejam, opinem, tentem repetir e adotem ou não.” Os manuais da equipe do Elsa, mostrando como organizar um projeto desse tipo, preparar e manter equipes e fazer exames, também podem ser compartilhados por outros grupos.

EDUARDO CESARO Elsa é hoje uma linha de produção de exames que correm entre seis estadosEDUARDO CESAR

Sem atrasos
As conversas do grupo tomaram a forma de um plano de trabalho, aprovado em 2005 pelo Ministério da Saúde e Ministério de Ciên­cia e Tecnologia, que liberaram R$ 22 milhões para essa pesquisa. “Formamos um consórcio de pessoas e de instituições, com um comitê diretivo, com todos os participantes, que tomam as decisões em conjunto”, conta Isabela. Agora, tão importante quanto a capacidade de produzir informação com qualidade, para que os dados colhidos em Porto Alegre possam ser comparados com os de Salvador, é a habilidade de manter o ritmo de trabalho: até que comece a gerar informações epidemiológicas, o Elsa é uma rigorosa linha de produção contínua de exames e de informações.

“Não posso acumular exames”, diz Lígia Fedeli, chefe da equipe dos exames de sangue e urina. “Todo o material do dia tem de estar identificado e organizado até as 19 horas do mesmo dia.” Lígia e seus 10 assistentes distribuem o sangue de cada uma das 15 a 20 pessoas atendidas por dia em sete tubos plásticos flexíveis chamados palhetas, cada uma com uma etiqueta de código de barras.

A logística impressiona. Uma vez por mês, Lígia recebe mil exames feitos nos outros estados, produz 20 mil palhetas e as envia para os tanques de nitrogênio líquido. Uma vez por mês os tubos são descongelados e o sangue examinado nos laboratórios do hospital da USP. Esse material poderá também mostrar quem, como e por que teve doen­ças mentais como demência ou Alzheimer, já que uma parte dos questionários procura avaliar eventuais perdas de memória. O HU armazena também as amostras de urina, que passam pelos mesmos cuidados e procedimentos, e os exames de ultrassonografia do diâmetro da artéria carótida e da artéria do fígado, usados para avaliar problemas cardíacos. Por sua vez, a equipe de Minas recebe 55 eletrocardiogramas feitos no mesmo dia nos outros cinco centros e a de Porto Alegre um número equivalente de exames da retina, que ajudam a identificar lesões produzidas no olho pelo diabetes.

“Se tivéssemos de parar o trabalho agora, este já seria o levantamento epidemiológico com maior número de participantes adultos já feito no Brasil”, diz Lotufo. Um estudo sobre transtornos psiquiátricos na Região Metropolitana de São Paulo chegou a 2007 com 5.037 entrevistas realizadas. Um levantamento mais parecido com o Elsa consistiu na avaliação de 15 mil crianças nascidas em 1982, 1993 e 2005 em Pelotas, Rio Grande do Sul.

Empreitadas de fôlego como essa costumam ir além do previsto. Um dos levantamentos pioneiros sobre doenças cardíacas, realizado em 1948 com 5.209 homens e mulheres de Framingham, cidade próxima a Boston, nos Estados Unidos, revelou o que hoje parece óbvio: a associação do hábito de fumar, até então ligado apenas a câncer de pulmão, com o maior risco de infarto. Essa relação se tornou clara após alguns anos de acompanhamento da saúde dos participantes do estudo. “Foi uma surpresa, porque nessa época fumar aparecia com frequência em filmes como algo que aliviava o estresse e, portanto, poderia ser benéfico para o coração”, diz Mill.

Mas não é sempre que conclusões de estudos como esse se convertem rapidamente em políticas públicas. “Há muito tempo sabemos que refrigerante e salgadinhos fritos não fazem bem para crianças, mas só agora uma lei nacional proíbe a venda desses alimentos na escola”, observa Maria Molina. Por enquanto os avanços têm sido graduais e contínuos. “Algo difícil, que estamos conseguindo”, diz Lotufo, “é convencer os outros que um hospital universitário tem de fazer pesquisa original e relevante, com espaço e equipe próprios, e não só tirar informações dos prontuá­rios dos pacientes”.

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