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Pesquisa na quarentena

“A pandemia gerou uma rede de colaboração entre cientistas brasileiros sem precedentes”

O farmacologista Luiz Leiria, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP, avalia se a escassez de lipídeos anti-inflamatórios no sangue compromete a resposta do organismo à infecção do Sars-CoV-2

Luiz Leiria, trabalhando em sua casa

Arquivo Pessoal

Desde 2018 estudo novas alternativas de tratamento para doenças metabólicas, como a obesidade, o diabetes e a doença hepática gordurosa não alcoólica, em um projeto no programa Jovens Pesquisadores da FAPESP, e utilizo como alvo terapêutico o tecido adiposo marrom. Ativado pelo frio, esse tecido produz substâncias que ajudam a regular o metabolismo energético e promovem uma melhora da sensibilidade à insulina e da utilização da glicose no fígado e nos músculos. Um dos focos do trabalho é avaliar como o tecido adiposo marrom sintetiza e secreta lipídeos que ajudam a controlar inflamações, os chamados mediadores lipídicos pró-resolução [MLPRs]. 

Assim que surgiram os primeiros artigos mostrando a fisiopatologia da Covid-19, ficou claro que a doença se caracteriza por uma hiperinflamação do tecido pulmonar, sugerindo uma baixa capacidade de resolução desse processo inflamatório. Diabéticos e obesos têm tendência maior a desenvolver as formas mais graves da doença. Sabe-se que, no organismo desses indivíduos, há menor abundância dos MLPRs e também dificuldade em ‘resolver’ processos inflamatórios. Me ocorreu a hipótese de que a escassez desses lipídeos poderia estar comprometendo a capacidade de combater a inflamação nos pacientes com o novo coronavírus. O vírus tem um componente metabólico forte e vi uma oportunidade para trabalhar nisso. Em março, a FAPESP convocou pesquisadores a apresentarem projetos. O Centro de Pesquisa em Doenças Inflamatórias [Crid], um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão [Cepid] da FAPESP, que é sediado aqui na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto [FMRP] da USP e do qual sou integrante, começou a se mobilizar e eu decidi apresentar uma proposta para estudar o papel desses lipídeos na tolerância à infecção pelo vírus Sars-CoV-2, que foi aprovada em abril. 

O objetivo é coletar amostras de plasma de pacientes acometidos pela Covid-19 internados no Hospital das Clínicas [HC] da FMRP e medir a gama de lipídeos existentes e abundantes no plasma sanguíneo. É provável que a gente também consiga medir os lipídeos diretamente no tecido pulmonar de pacientes que morrem em decorrência da doença. A ideia é avaliar o sangue de indivíduos com diabetes que desenvolveram as formas grave e leve da doença para poder inferir se os lipídeos ‒ ou a ausência deles ‒ têm um papel na evolução do quadro. Se a hipótese se confirmar, talvez possamos identificar um marcador relacionado aos MLPRs capaz de indicar como será a progressão da doença. Depois de reunir um bom número de amostras, vamos conduzir as primeiras análises em breve e a ideia é começar em agosto experimentos in vitro para identificar quais lipídeos poderiam realmente reverter ou amenizar o quadro inflamatório causado pela doença. Como a sociedade precisa de respostas imediatas, a intenção é publicar os resultados até outubro.

Eu nunca tinha trabalhado com vírus antes, meu campo de interesse é farmacologia e metabolismo. Vários virologistas se incorporaram aos esforços de pesquisa do Crid na pandemia e estão ajudando muito, aliás a pandemia gerou uma rede de colaboração entre cientistas brasileiros sem precedentes. Temos encontros semanais para discutir os projetos sobre a Covid-19. A pandemia está proporcionando uma fase de grande aprendizado. Tenho aprofundado contatos com parceiros internacionais e mantenho uma interação forte com grupos de pesquisadores do Hospital das Clínicas da USP em Ribeirão Preto e em São Paulo [HC-FMUSP], além do Instituto de Biologia da Unicamp [Universidade Estadual de Campinas], que também estão auxiliando nos nossos projetos sobre a Covid-19.

Eu estava vinculado à Unicamp até o ano passado e me mudei recentemente para Ribeirão Preto depois de passar em um concurso no Departamento de Farmacologia da FMRP. Havia acabado de montar minha equipe – composta por enquanto por um aluno de mestrado e outro de doutorado – quando veio a pandemia. Eu quase não vou à universidade, que interrompeu as atividades presenciais, mas os dois alunos estão frequentando o laboratório para conduzir esse projeto sobre a Covid-19. Os projetos deles tiveram uma pausa enquanto as atividades na USP estão restritas.

A vida da minha família foi bastante afetada. Eu me mudei para Ribeirão Preto em janeiro e estava trabalhando havia apenas dois meses quando a universidade entrou em quarentena. Em casa, a pandemia chegou em um momento em que estávamos construindo uma nova rotina. Minha esposa acabara de começar em um emprego novo e nossos três filhos, de 12, 9 e 7 anos, mal tinham conseguido conhecer os colegas na escola nova quando as aulas foram interrompidas. O fato de as aulas seguirem virtualmente ajuda a mantê-los ocupados, mas a adaptação ficou incompleta e eu preciso acompanhá-los de perto. É mais comum que eles brinquem e se comuniquem on-line com os amigos que tinham em Campinas do que com amigos novos de Ribeirão Preto. Mas tenho tentado aproveitar. Há mais tempo para coordenar as pesquisas relacionadas à Covid-19, escrever artigos e novos projetos, e também tenho me ocupado com a formação da nossa equipe, pois em algum momento retornaremos às nossas pesquisas e pretendo recomeçar com a equipe ampliada e forte.

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