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Pesquisa na quarentena

“A pandemia teve um impacto muito grande no trabalho de campo, que é fundamental na geografia”

A geógrafa Larissa Bombardi, professora da USP, prepara atlas sobre o uso de agrotóxicos e equilibra a maternidade com as rotinas acadêmicas

Depois de se mudar em plena pandemia, a cozinha se tornou o local de trabalho

Arquivo pessoal

Estava com as passagens compradas em março de 2020 para passar um período na Europa, com apoio da diretoria do meu departamento e da reitoria da USP [Universidade de São Paulo], mas precisei cancelar quando eclodiu a pandemia. Agora consegui uma bolsa de pós-doutorado na Universidade Livre de Bruxelas, na Bélgica, para estudar criminologia verde [área que estuda crimes contra o meio ambiente] e a Amazônia brasileira, com um olhar para a questão ambiental, mapeando conflitos socioambientais envolvendo o uso de agrotóxicos. Pedi uma licença para o meu departamento e estou aguardando a resposta.

A pandemia alterou o processo dos nossos trabalhos de pesquisa, porque não podemos nos encontrar pessoalmente para discutir muitas coisas. Por outro lado, acabamos fazendo reuniões on-line que talvez não ocorreriam antes. Outro dia, tive uma conversa com um grupo de pesquisadores que reuniu gente da Europa e dos Estados Unidos, além de pessoas aqui do Brasil. Em setembro de 2020 fiz uma fala on-line no Parlamento europeu, quando participei de um debate sobre o duplo padrão adotado pela União Europeia de exportar substâncias que eles proíbem em seu território. Estamos aprendendo a lidar criativamente com a distância.

Uma das coisas que mais mexem comigo é ver o número de crianças intoxicadas por agrotóxicos agrícolas, aqueles usados no campo. De 2010 a 2019, 542 bebês de 0 a 12 meses foram intoxicados no Brasil. Em números gerais, foram 56.870 pessoas intoxicadas e 1.832 morreram no mesmo período. Nos últimos meses, durante a quarentena, tenho me dedicado a fazer esse levantamento, que é parte de um atlas focado no uso de agrotóxicos na relação bilateral entre Mercosul e União Europeia, chamado Geografia das assimetrias. Eu quis trazer esse olhar por causa do acordo comercial entre os dois blocos [anunciado em 2019], que está sendo muito discutido, principalmente por causa da atual situação ambiental no Brasil, que está complicada e é um tema central no mundo. Estou trabalhando com colegas da Bélgica e da Alemanha.

A pandemia teve um impacto muito grande no trabalho de campo, que é fundamental na geografia. Até 2019, acompanhei camponeses que vivem em áreas próximas a locais onde há uso intensivo de agrotóxicos e coletei relatos, histórias de vida e depoimentos daqueles que foram contaminados. Muitos também relatam que não conseguem fazer suas hortas orgânicas e agroecológicas em razão da proximidade a essas plantações. Todo esse trabalho qualitativo se perdeu durante a quarentena, já que tivemos que interromper as visitas e a coleta de informações que comporiam o atlas e outros trabalhos de pesquisa e extensão que coordeno.

Outra dificuldade que enfrentamos é que os dados de outros países do Mercosul são muito ruins, muito irregulares. Um colega meu sempre diz que não temos noção da riqueza de dados que temos no Brasil, e é verdade. As bases de dados do IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística] e do SUS [Sistema Único de Saúde] são riquíssimas e de acesso público. É uma pena que o Censo Agropecuário tenha sofrido alterações. O de 2016, que saiu atrasado em 2017, foi cortado. Antigamente eram muitas perguntas sobre agrotóxicos, e agora o censo se restringe a questionar se o agricultor usa ou não esses pesticidas. Isso reduz nossa capacidade de avaliar e monitorar o que está acontecendo na sociedade quanto a problemas sérios de saúde pública.

Esses dois últimos anos, principalmente durante a pandemia, foram os que mais tivemos aprovação de agrotóxicos na história recente do Brasil. Em 2012, usamos cerca de 420 mil toneladas de agrotóxicos, já em 2019 foram 620 mil toneladas. É um aumento absurdo. Em 2020, foram aprovadas quase 500 formulações, como o dinotefuran, que é proibido na União Europeia desde 2009. Ele está associado à morte de abelhas e polinizadores. No meio de uma pandemia, precisamos lidar com tantas coisas ao mesmo tempo que não conseguimos olhar para essas aprovações. Essas análises deveriam ocorrer quando as coisas estivessem mais ou menos na normalidade, para que a sociedade consiga acompanhar, enxergar o que está acontecendo e se posicionar.

Além desse tema dos agrotóxicos, nesta quarentena também escrevi dois textos, um artigo de discussão e outro para o Le Monde Diplomatique, em colaboração com dois colegas: o alemão Immo Fiebrig, da Escola de Biociências da Universidade de Nottingham, no Reino Unido, e Pablo Nepomuceno, técnico do Laboratório de Sensoriamento Remoto do Departamento de Geografia da USP. Nós trazemos uma hipótese que relaciona a expansão de casos de Covid-19 em algumas localidades com a presença de suinocultura e concentração de frigoríficos. Nas nossas análises de distribuição espacial, feitas com base em dados de municípios de Santa Catarina, encontramos o que parece ser uma correlação, uma triangulação entre essas variáveis. Fizemos um mapeamento amplo, estendemos também para os Estados Unidos e a Alemanha, e o artigo está em processo de avaliação pela revista franco-brasileira Confins.

Estou passando a quarentena isolada com meus dois filhos, de 9 e 11 anos, e minha mãe também veio ficar conosco. Em agosto de 2020 sofremos um assalto na minha casa, em Osasco, e desde então nos mudamos para uma casa em São Paulo. Nesse período tenho dado aulas on-line na graduação e na pós-graduação, além de orientar alguns trabalhos. Penso que a quarentena alterou principalmente a rotina das mulheres. Porque as cobranças continuam, como se não estivesse acontecendo nada. No ano passado, eu estava com um computador e um celular, apenas. Às vezes, um filho assistia aula on-line no computador e o outro no celular, e eu pensava: “E agora, como vou trabalhar?”. A gente lida com a incompreensão da maternidade.

Em 2020 eu ministrava uma disciplina que começava às 21h e estava sozinha com as crianças, minha mãe ainda não estava conosco. Eu vestia o pijama, punha os filhos para dormir e saía do quarto bem quietinha, rezando para que não acordassem. Nas primeiras semanas, funcionou. Depois, meu filho mais velho começou a acordar e não dormia. Um dia, dei uma bronca nele e fui dar aula arrasada, com o coração partido. De repente ele apareceu na cozinha, com um aviãozinho de papel na mão. Pensei: “Meu Deus, ele vai jogar esse aviãozinho na frente dos alunos, no meio da aula”. Quando peguei o aviãozinho, estava escrito assim: “Mamãe, eu não consigo” [dormir]. Quase chorei na frente dos alunos. Desde então, dei aula com ele ao meu lado.

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