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MEMÓRIA

A permanência de um idealista

O nome de José Reis está definitivamente ligado às experiências brasileiras de divulgação científica

Pesquisador no Instituto Biológico nos anos 30: atividades como professor, administrador e jornalista

ARQUIVO NJR-ECA/USPPesquisador no Instituto Biológico nos anos 30: atividades como professor, administrador e jornalistaARQUIVO NJR-ECA/USP

José Reis é o nome do mais importante prêmio de divulgação científica do país, concedido anualmente pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) a instituições, jornalistas e cientistas. É nome do programa de apoio a jornalismo científico instituído pela FAPESP em 2000. É nome também do Núcleo de Estudos de Jornalismo Científico da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de SãoPaulo (USP), que mantém um dos poucos programas de pós-graduação existentes no Brasil para essa área. Ou seja, trata-se de um nome definitivamente colado às idéias e experiências brasileiras de divulgação científica. Com justiça. Porque, conforme a síntese exata feita pelo jornalista Ricardo Bonalume Neto na Folha de São Paulo, em 17 de maio, José Reis “foi sem dúvida alguma o brasileiro que mais fez pela divulgação da ciência no país”.

Mas isso não o esgota. José Reis, falecido em 16 de maio, aos quase 94 anos, foi na verdade um personagem singular da vida nacional ao longo de boa parte do século 20, capaz de desdobrar-se infatigavelmente entre as funções de pesquisador (com reputação internacional), professor, administrador competente e jornalista combativo. Articulando-as todas de forma brilhante, deixou um legado no qual deve-se incluir construções tão concretas quanto a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), que ajudou a criar em 1948, a Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA/USP) e mesmo a FAPESP, fundação pela qual combateu publicamente sem esmorecer desde 1945, embora, ironicamente, como destacou o diretor científico da Fundação, José Fernando Perez, em artigo na mesma Folha de 17 de maio, nunca tenha nela exercido nenhum cargo ou função.

José Reis nasceu no Rio de Janeiro em 1907 e era o antepenúltimo dos 13 filhos de Alfredo de Souza Reis e Maria Paula Soares Reis. Fez o curso secundário no Colégio Pedro II, de 1920 a 1924. Formou-se médico pela Faculdade Nacional de Medicina (1925-30) e a esse curso juntou a especialização em microbiologia e patologia na Fundação Oswaldo Cruz do Rio de Janeiro (1928-29). Foi contratado ainda em 1929 pelo Instituto Biológico de São Paulo, no qual chegou a diretor da Divisão de Ensino e Documentação. Entre 1935 e 1936 especializou-se em virologia no Rockfeller Institute, em Nova York.

Em sua biblioteca, em 1984: disciplina rígida tanto no laboratório quanto no jornalismo

ARQUIVO NJR-ECA/USPEm sua biblioteca, em 1984: disciplina rígida tanto no laboratório quanto no jornalismoARQUIVO NJR-ECA/USP

Num pequeno perfil publicado no encarte especial Experiências em Jornalismo Científico, parte da edição 47 de Pesquisa FAPESP, de outubro de 1999, assinalávamos que Reis “experimentou suas primeiras possibilidades de explicar problemas científicos para um público não especializado escrevendo folhetos e artigos para seções agrícolas de jornais e, principalmente, colaborações sistemáticas para a revista Chácaras e Quintais, a partir de 1932. Ele falava então, para granjeiros, das doenças, das pragas, dos muitos problemas e dos cuidados que deviam ser tomados na criação de galinhas”.

Sua atividade regular no jornalismo científico, contudo, teve início em abril de 1947, quando passou a colaborar com as Folhas (da Manhã, da Tarde e da Noite) e prosseguiu quase até sua morte. As Folhas transformaram- se no jornal Folha de S. Paulo, que criou, muito tempo depois, em 1992, o caderno Mais, e lá encontrava-se a cada domingo, a coluna Periscópio, do doutor José Reis, apesar dos problemas de saúde que já enfrentava. Entre 1962 e 1967 ele ocupou a posição de diretor de redação do jornal.

José Reis foi o primeiro secretário-geral da SBPC em 1948 e ali, em 1949, fundou e tornou-se o primeiro editor da revista Ciência e Cultura. Continuou a editá-la até 1954 e voltou ao posto entre 1972 e 1985.

Quando se aposentou do Instituto Biológico,em 1958,fundou com outros dois sócios a editora Ibrasa- Instituição Brasileira de Difusão Cultural S/A, para lançar livros-fermentas que trouxessem idéias novas e provocassem debate. Sua atuação na editora estendeu-se até 1978. José Reis foi também professor catedrático e diretor da FEA/USP.Conquistou vários prêmios (Prêmio Governador do Estado de Jornalismo Científico, em 1962; Prêmio John R. Reitemeyer de Jornalismo Científico, da Sociedade Pan-Americana de Imprensa e União Pan-Ame ricana de Imprensa, em 1964; Prêmio Kalinga, da Unesco, em 1975).

Aqueles que conheceram José Reis mais de perto o descrevem como um homem que era extremamente discreto e suave, apesar de sua atividade fervilhante. O geneticista Crodowaldo Pavan, atualmente presidindo a Associação Brasileira de Divulgação Científica (Abradic), lembra em artigo publicado no Mais, no dia 26 de maio (em colaboração com Glória Kreinz, coordenadora do Núcleo José Reis de Divulgação Científica), que Reis “tinha uma disciplina rígida tanto na prática do laboratório quanto no jornalismo. Deixava transparecer suas inquietações e perplexidade apenas no convívio com os amigos mais íntimos”. É sempre um risco esse tipo de ilações, mas talvez o sentimento de José Reis sobre sua própria e impressionante trajetória em parte se traduzisse pelas palavras com que ele qualificou, em agosto de 1988, num de seus artigos no Mais, cientistas e jornalistas que há anos vinham trabalhando na divulgação da ciência e da tecnologia no Brasil: idealistas isolados.

Uma concepção atual formulada nos anos 40

Reis (3º da dir. para esq.) com Maurício Rocha e Silva (3º da esq. para dir.) e Rocha Lima (4º da esq. para dir.): força para ajudar a criar sociedades e fundações científicas

ARQUIVO INSTITUTO BIOLÓGICOReis (3º da dir. para esq.) com Maurício Rocha e Silva (3º da esq. para dir.) e Rocha Lima (4º da esq. para dir.): força para ajudar a criar sociedades e fundações científicasARQUIVO INSTITUTO BIOLÓGICO

Dentre os muitos textos escritos por José Reis, desde 1945, em defesa da constituição da FAPESP, a leitura de um deles, em particular – originalmente, um relatório apresentado à VI Reunião Anual da SBPC, em 13 de novembro de 1954 e, no ano seguinte, artigo publicado na revista Anhembi, volume XVIII, número 50, sob o título Fundação de Amparo à Pesquisa –, revela uma atualidade de fato impressionante das concepções do autor a respeito de como o Estado deveria apoiar a pesquisa científica em São Paulo. Muito do que a FAPESP efetivamente é hoje já está claramente antevisto nas palavras proféticas desse trabalho, em que José Reis, a par de definir o que considera princípios fundamentais para nortear o funcionamento da Fundação, historia criticamente seu processo de constituição, então ainda em curso, e pinta em cores vivas, por vezes ácidas, o ambiente da pesquisa em São Paulo, na época. Nesses tempos extremamente velozes em que vivemos, pensar que um texto elaborado há 47 anos esboça já uma face com as linhas mais marcantes que ela mostra no presente, espanta, no melhor sentido. E nada melhor para compartilhar esse espanto do que apresentar ao leitor alguns trechos do artigo publicado na revista Anhembi, ainda que com isso se perca um pouco da sua lógica integral. A eles, portanto:

“(…) Quando em 1947 a Assembléia Constituinte de São Paulo lançava as bases da atual Constituição e, lamentavelmente, alguns legisladores afundavam numa série de medidas de caráter pessoal, a que depois quiseram dar explicação airosa, surgiu, contrastando com elas, um dispositivo que mandava criar um conselho de Pesquisas Científicas, autônomo e com verbas próprias, que teria algumas das funções previstas no órgão a que aludíamos em 1945. A história dessa medida era simples.Nascera do esforço de alguns pesquisadores e professores junto dos constituintes. Aqueles sinceros pesquisadores chegaram até a organizar um volume em que defendiam a idéia do amparo à pesquisa, tomando como lema a conhecida frase de Rutherford, segundo a qual os povos que não desenvolvem seu potencial científico condenam-se à situação de cortadores de lenha e carregadores de água para os mais adiantados.

(…) Analisamos minuciosamente os dois projetos [ele faz referência aos projetos de regulamentação do artigo 123 da Constituição que prevê a criação da fundação, um de Caio Prado Júnior e outro de Lincoln Feliciano] e de um modo geral condenamos em ambos a extrema complexidade da estrutura administrativa que propunham e especialmente do Conselho Deliberativo, que seria verdadeira assembléia. Além disso, padeciam do vício de constituir o Conselho, em grande parte, com membros natos, que deveriam ocupá-los por força do cargo que exercem. Todos sabemos que em tais circunstâncias o que vale são os homens e não os cargos.Havia ainda no projeto de Feliciano um ponto que nos parecia perigoso: era a faculdade que expressamente dava à fundação, de criar novos institutos, que por ela seriam mantidos. Num país em que existe tanta paixão pela criação de novidades, com abandono das coisas já existentes, seria isso um mal.

(…) Para a fundação, o momento mais crítico seria o de sua instituição, pois o trabalho dos legisladores tanto poderia prejudicá-la pelo excesso quanto pela omissão de preceitos legislativos. Ideal seria que uma curta lei estabelecesse a forma geral de administrar o órgão, e especialmente a maneira de constituir o seu conselho deliberativo, ao qual entregaria a prática dos atos futuros, necessários à estruturação administrativa e ao modo de funcionamento da fundação. Além disso, deveriam estar na lei medidas acauteladoras contra o desvirtuamento da instituição, entre elas a limitação dos gastos com a própria administração.

Desenho de Reis: extremo didatismo ao escrever folhetos e artigos para o público não especializado

ARQUIVO INSTITUTO BIOLÓGICODesenho de Reis: extremo didatismo ao escrever folhetos e artigos para o público não especializadoARQUIVO INSTITUTO BIOLÓGICO

Constituído adequadamente o primeiro Conselho, a fundação em pouco adquiriria a desejada tradição de trabalho desinteressado e profícuo. E nada de Conselho numeroso, com membros que obrigatoriamente o integrem em função dos brilhantes cargos que ocupam. Seria isso aumentar o número de pontos fracos, expostos à pressão dos grupos de interesse. Todo o segredo está em reunir um punhado de homens sinceros, de dentro e de fora da ciência. Não há motivo pelo qual instituições que jamais transformaram em ciências as verbas que recebem dos poderes públicos, ou as escolas em que jamais se praticou a pesquisa, mas apenas funcionam como empresas comerciais, devam representar-se no Conselho da fundação.

(…) Entre nós esquece-se freqüentemente que os centros de pesquisa crescem orgânica, biologicamente, por um processo natural de diferenciação e não pela simples aposição de camadas. Mal andaria a Fundação se, como admitido em um de seus projetos, tivesse por função criar institutos novos.

(…) Quero porém salientar outro ponto, que é o da necessidade de a Fundação, ela mesma, estabelecer como norma rígida a prestação de contas daqueles a quem beneficia, de modo que os programas por ela apoiados não fiquem na fase de programação, mas realmente se efetuem.Mais ainda. É preciso que a Fundação faça ponto de honra da necessidade de apresentar relatórios sinceros ao público, pelos quais o crítico possa apreciar a realização de seus fins.

(…) Uma fundação de amparo à pesquisa teria de ocupar plano superior a todos esses interesses rasteiros, não poderia ser presa de nenhum grupo profissional e de nenhuma instituição em particular, como também não poderia caracterizar o predomínio de nenhuma ciência ou técnica.

(…) A seleção de pesquisadores novos não pode ser estranha a uma fundação de amparo à pesquisa. Não imaginamos que ela venha a criar escolas ou cursos, mas que apóie com particular carinho iniciativas desse gênero (…). E (…que a escolha se faça) com oferta de possibilidades de trabalho sério e difícil junto de bons pesquisadores, ou de apoio a cursos de aperfeiçoamento que não oferecem nenhuma vantagem ulterior, exceto a boa formação que propiciam.

(…) Conclusão: pela idéia que representa e pela natureza jurídica que a Constituição lhe deu, a Fundação de Amparo à Pesquisa poderá contribuir apreciavelmente para o desenvolvimento da ciência em São Paulo. Mas é preciso protegê-la contra possíveis vícios, capazes de a desvirtuar. Além disso, a Fundação não representa nenhuma solução mágica, capaz de por si só assegurar o progresso da ciência. Esta há de amparar-se naturalmente na compreensão do público e dos governos e na sinceridade dos próprios cientistas.

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