Imprimir PDF Republicar

RESENHAS

A pluralidade da fé no Brasil

Religiosidade no Brasil | João Baptista Borges Pereira (org.) | Edusp 400 páginas | R$ 68,00

Religiosidade no Brasil João Baptista Borges Pereira (org.), Edusp 400 páginas, R$ 68,00

É impossível compreender sociologicamente o Brasil se não se leva em conta que, entre nós, há uma religiosidade mesmo dos brasileiros que não têm religião. Na própria universidade, não é raro vermos casos de ateus confessos serem espiritualmente amparados, após a morte, pela missa de sétimo dia a que comparecem colegas igualmente ateus. Na dúvida, é melhor seguir as regras do costume. Aliás, o grupo religioso que mais cresce no país é o dos que têm fé, mas não têm religião.

Uma anomalia, sem dúvida, em relação aos numerosos países que se caracterizam por religiões estabelecidas e identitárias. Países como a Itália e o Portugal católicos têm como marco o templo e a identidade religiosa indiscutível. As igrejas ficam cheias nas várias missas de domingo e nas cerimônias de preceito. A Inglaterra anglicana só é diferente pela filiação doutrinária e a rainha no lugar do papa como soberana da religião oficial. Mesmo numa universidade como a de Cambridge, cada college tem sua capela e nas capelas, como a do King’s College, há celebrações diárias. Nos Estados Unidos protestantes, mas pluralistas, mais de 80% dos americanos vão a uma igreja no domingo. São países em que a religião formal e organizada é parte constitutiva da estrutura social. Aqui, somos pluralistas, embora intolerantes. A sociedade brasileira pode ser explicada sem o templo, mas não pode ser explicada sem a religiosidade, não raro expressão de variadas formas de sincretismo religioso, difuso e incoerente. Temos, além do mais, uma história de movimentos messiânicos e milenaristas, nascidos aqui mesmo, de certo modo, o povo reinventando suas devoções.

Não é incomum certo turismo religioso, pessoas oficialmente de um credo, porque nele batizadas ou iniciadas, que, não obstante, vão, eventualmente, a um culto evangélico ou a uma sessão num terreiro de umbanda. Os censos têm apontado, nas últimas décadas, um acentuado declínio no número de católicos no Brasil, supostamente em favor das seitas e igrejas pentecostais. Análises mais detidas dos dados sugerem algo mais complicado: os católicos que abandonam a igreja são, sobretudo, católicos nominais, não são propriamente católicos praticantes. Tanto que há um movimento de “conversão” de católicos ao catolicismo. Paralelamente, evangélicos têm abandonado umas igrejas evangélicas para se passarem a outras, de denominação e credo diferente, mas de mesma linha ritual. A indefinição religiosa do brasileiro nesse cenário confuso de crenças e descrenças há tempos pedia uma espécie de vade-mecum dos credos que se difundem entre nós, um mapa interpretativo e denso da nossa religiosidade.

Este livro, organizado pelo conhecido antropólogo João Baptista Borges Pereira, da Universidade de São Paulo e da Universidade Presbiteriana Mackenzie, atende em boa parte essa demanda. Reúne contribuições de 20 pesquisadores sobre as religiões que no Brasil têm adeptos e confessantes, organizadas e ativas. Do catolicismo, que por tantas transformações passou, tornando-se quase desconhecido dos próprios católicos, até a rica e complicada diversidade de confissões, tendo no entremeio as religiões não cristãs, o livro expõe com erudição e competência o quadro de nossas referências religiosas. Um cenário muito esclarecedor do que tem sido o advento da modernidade religiosa entre nós, nos últimos pouco mais que 100 anos. Não só das crenças professadas, mas também da complexa organização dos credos, sua diversidade ritual e os significados dos procedimentos que nas celebrações religiosas dão sentido à peculiaridade de cada crer. Diferente do que acontece na vida civil e nos outros modos de expressão de mentalidades e modos de ser, detalhes aparentemente irrelevantes podem, nas religiões, provocar cismas e rupturas. Como o que aconteceu há mil anos, quando a Igreja Ortodoxa se separou da Igreja Romana em decorrência de um desacordo quanto a se o Espírito Santo deriva do Pai ou deriva do Pai e do Filho. Ou, aqui no Brasil, o desacordo dos presbiterianos quanto à maçonaria, que levou ao cisma que separou a Igreja Presbiteriana Independente da Igreja Presbiteriana Unida. Nos últimos anos, a maior igreja pentecostal do país sofreu uma ruptura que levou ao surgimento de duas grandes igrejas, derivadas de uma só.

José de Souza Martins é sociólogo. Professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Dentre outros livros, é autor de A sociabilidade do homem simples (Contexto).

Republicar