A essa altura da pandemia, o vírus Sars-CoV-2 é notório. Seis meses depois de registrados os primeiros casos de Covid-19 em Wuhan, capital da província de Hubei, na China, sabe-se como é transmitido e não há dúvidas de que é o causador de doença cuja manifestação clínica mais típica – mas não a única – são danos severos aos pulmões, em pacientes graves. Ainda não se sabe, no entanto, como o corpo humano pode mobilizar anticorpos para se tornar imune a ele. O desenvolvimento de vacinas e de tratamentos específicos para a doença segue desafiando cientistas de todo o mundo. Como é improvável que algum imunizante seja aprovado em menos de 18 meses, as únicas maneiras de evitar a contaminação continuam envolvendo hábitos de higiene, como o lavar constante das mãos, o uso de máscaras de proteção em espaços públicos e o distanciamento físico. Sabe-se também, a partir da experiência de outros países, que todo e qualquer dado sobre a pandemia pode fazer a diferença em seu combate. Como Pesquisa FAPESP mostra nesta edição, conhecer a dinâmica e a dimensão da doença tornou-se questão de vida ou morte.
No caso da Covid-19, o ponto de partida para qualquer inferência e modelagem matemática reside no número de indivíduos contaminados. No Brasil, programas de testagem em massa foram adotados três meses depois de notificado o primeiro caso e em um universo reduzido, se considerarmos as dimensões continentais do país. Por isso, só agora resultados de estudos epidemiológicos começam a contribuir para a compreensão da dinâmica de disseminação do vírus no país. Para combater seu espraiamento, mundo afora a testagem em larga escala tem se revelado, pelas informações que gera, um instrumento poderoso no desenvolvimento de políticas de saúde pública na medida em que permite identificar os infectados, rastrear seus contatos e isolá-los.
À demora da aplicação de testes em massa segue-se outra dificuldade: a lentidão no processamento dos exames. No final de maio, mais de 2 milhões de testes RT-PCR aguardavam verificação na rede pública. Algo parecido tem ocorrido com os sistemas de notificação da Covid-19, alimentados com os resultados desses testes ou, na ausência deles, com informações resultantes do diagnóstico clínico da doença. Os registros no e-SUS Vigilância Epidemiológica (e-SUS VE) e no Sistema de Informação da Vigilância Epidemiológica da Gripe (Sivep-Gripe) podem apresentar atrasos de até dois meses. Dito de outra forma, há um descolamento entre a gravidade do quadro que os números mostram e a ainda mais grave realidade observada em postos de saúde, hospitais de campanha e Unidades de Terapia Intensiva (UTIs).
Por essa razão, neste momento não é possível afirmar com segurança qual o potencial exato de disseminação do vírus no Brasil, tampouco sua taxa de letalidade. Sem o apoio de dados precisos, torna-se praticamente impossível definir a medida mais adequada para cada região do país lidar com o chamado número reprodutivo efetivo da doença, ou seja, o índice de contágio entre as pessoas. Não há, portanto, como prever com segurança quando será o pico da pandemia. Na ausência dessas informações, também se revela extremamente árduo modular as regras de isolamento social e definir o momento adequado para a retomada das atividades escolares ou a reabertura do comércio.
A dificuldade na obtenção dos dados tem obrigado os cientistas a utilizar a criatividade no esforço de prever o impacto econômico da crise desencadeada com a pandemia. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) adiou o Censo para o próximo ano e cancelou as visitas domiciliares que subsidiam a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), publicada mensalmente com números referentes ao trimestre anterior. Além das incertezas inerentes à própria pandemia, como seu tempo de duração, pesquisadores veem-se às voltas com questões sobre como mensurar quanto trabalho continua sendo feito enquanto as pessoas são mantidas em casa ou qual o volume de recursos tem sido direcionado para equipamentos médicos. O sociólogo Ian Prates, por exemplo, conta que está utilizando dados que, em situações normais, não usaria. São informações sobre consumo e circulação coletadas com o apoio de instituições como Google e Cielo, e sobre a situação das empresas, obtidas com o auxílio do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae).
O desenvolvimento da pandemia, que até o final de maio já tinha custado a vida de pelo menos 32.602 pessoas em todo o país, evidencia que a obtenção de dados exige esforço e demanda tempo. Economizar um ou desperdiçar outro não apenas leva ao desconhecimento do universo de infectados e de onde estão localizados os principais focos da doença como inviabiliza a acurácia de análises e projeções. Fundamentais na prevenção, indispensáveis para se avançar em tratamentos, os dados são essenciais para a ciência informar políticas públicas e mudar essa realidade.
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