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Fernanda Pompeu

A redatora que perdeu as letras

Tatiana NardiEla não recorda mais quando tudo começou. Se foi ontem ou há oito mil dias. Retém uma impressão difusa de que o início foi com o esquecimento dos nomes. Primeiro, seu cérebro deletou os nomes dos ligeiramente conhecidos. Depois, como as luzes de um salão se apagando gradativamente, esqueceu os nomes dos primos, cães e amigos antigos. Mas o choque para valer veio quando se deu conta de que ia perdendo os nomes das pessoas próximas. Ela olhava nos olhos daquela amiga de todas as horas e não vinha nada. “Heloísa, Abgail, Ercília?” O exercício de puxar pela memória, além de exaustivo, era inútil. Começaram os constrangimentos. Encontrava com as pessoas, conversava, ria, se compadecia. Mas e o nome?

Seus amigos mais queridos tentavam minimizar a situa­ção. Creditavam sua desmemória ao inevitável envelhecimento: “O HD vai ficando cheio”. “É que vivemos tantas coisas que as novidades já nascem antigas.” “A gente esquece, porque vamos ficando seletivos.” Eram frases de consolo. Não ajudavam nada. Mas ela percebia o carinho nas entrelinhas. Até tentava ler alguns artigos científicos sobre como nosso cérebro processa a memória. Alguns, impiedosos, afirmavam que com o envelhecimento as sinapses diminuem, pois o cérebro murcha. E a alma? Ela se perguntava: “A alma também murcha?”. Depois, ela foi se esquecendo de ler artigos científicos.

Seguiu tocando a vidinha. Até o terrível dia em que começou a perder informações do seu próprio saber. Por toda a vida, fora redatora de textos encomendados. Não uma escritora que escolhe seus temas, obsessões, estilos. Mas uma redatora de temas, obsessões e estilos alheios. Uma pena de aluguel. Com essa pena, ela conseguiu pagar as contas do pequeno apê, da água, da luz, da internet. Mas, por exemplo, nunca alcançou para pagar um plano de saúde. Uma mulher pobre, isso ela nunca esqueceria.

O fato é que escrever se tornou muito lento. Sentava, mandava ver no primeiro, no segundo parágrafo. Mas e o terceiro? Não vinha nada. Um apagão de conteúdo. Um processo doloroso teve início. Ela sentia que as palavras – até então suas amantes apaixonadas – fugiam. Aninhavam-se nas dobras ocultas de sua memória. Seu texto se tornou enfadonho. O verbo ficar se repetia até a náusea. É claro, ela correu à livraria e comprou um dicionário de sinônimos. Pagou caro por um da grife Houaiss. Foi duro, porque ela era especialmente boa no vocabulário. Era capaz de encontrar um sinônimo em milésimos de segundo. O vernáculo, antes frondoso e viçoso, foi virando agreste e opaco.

Seus clientes tinham muita pressa. Bons brasileiros queriam para agora o que era para anteontem da semana passada. O gol nos quarenta cinco minutos do segundo tempo. Consequência: eles se chatearam e foram embora. Ela chorou. Perder o ofício era perder a si mesma. Mais uma vez, os amigos queridos deram socorro. Uma amiga editora a contratou para ser parecerista. Encorajou-a: “Você passou a vida produzindo textos, será completamente eficiente para julgar se um original presta ou não presta. Se tem potencial ou não”. A ex-redatora embarcou com esperança para o outro lado do balcão.

Durou pouco. Ela lia o original de ponta a ponta, com o marcador de texto em punho. Usava o de cor abóbora, seu preferido. Mas quando terminava, vinha a certeza de que não o havia lido. Ela não se lembrava da trama, das personagens, do tom. Tornava a ler, tornava a esquecer e assim sucessivamente. Naturalmente, os pareceres ficaram paupérrimos, com lacônicos bom, ruim, regular. A amiga editora, com muito dó, dispensou-a da tarefa. Nessa altura do tormento, a ex-parecerista já tinha mudado para um quarto e sala, com aluguel mais barato, num prédio sem elevador. Também cortou o gasto com a banda larga. “Acho que estou abandonando o mundo”, pensou.

Então, a depressão tomou conta dela. O cotidiano perdeu cor e sabor. Saíram os amigos e entraram os parentes. Os irmãos fizeram uma vaquinha mensal para ela pagar as contas e caminhar no fio da navalha sem se ferir. Até que ela não ligou para mais nada. Nem para a acachapante desmemória. Aprendeu a arte de perder. Aprendeu a olhar as coisas como se fossem todas nascidas há cinco minutos. Sem marcas, sem passado. Sem futuro também. As coisas simplesmente eram. Instantâneas.

Nessa não razão, passou a andar de metrô. Primeiro, pelas manhãs. Depois, pelo dia inteiro. Pegava o trem às oito horas, voltava para o quarto e sala à noitinha. Sua missão diária era observar as pessoas nas linhas Verde, Azul, Vermelha. Levava na bolsa um sanduíche, uma fruta, uma barra de chocolate e uma garrafinha d’água. Ração suficiente para uma jornada completa. Quando sentia necessidade de ir ao banheiro, uma voz off, a voz de Deus, ordenava: “Pare na estação terminal Jabaquara”. Ela passava a catraca, usava o banheiro. Voltava para o túnel, sem pagar o bilhete. Era seu direito de terceira idade.

Foi conquistando uma celebridade torta. Alguns condutores e seguranças a olhavam fixamente. Mas era só. Nunca dirigiram a ela uma palavra. Às vezes, num lampejo de lembrança, ela sorria ao recordar que na condição de redatora nunca ficara famosa. E olhe que ela havia se esforçado. Havia trabalhado de acordo com o cânone. Seus textos eram densos e enxutos ao mesmo tempo. Eram corretos e elegantes. Ela entregava a encomenda na data acertada. Também cobrava barato. Agora, no papel de maníaca do metropolitano, era notada.

A linha que ela mais gostava, onde passava a maior parte do tempo, era a Linha 2 – Verde. Talvez porque essa linha provocasse algumas migalhas de memória. Na estação Vila Madalena, vinha uma música de adolescência, cujo comecinho ela lembrava: “Oh, Madalena / o meu peito percebeu / que o mar é uma gota / comparado ao pranto meu”. Na Sumaré, ela associava as pessoas retratadas nos vidros aos procurados pela ditadura militar. Estação Clínicas era fácil! Ela sentia o cheiro da amônia, do éter, das feridas. Na Consolação, as lágrimas vinham, mas iam embora antes de chegar na Masp-Trianon, que a levava ao museu de sua infância — o MAM do Rio de Janeiro. Certamente ela não recordava de quadro ou instalação nenhuma. Mas da vista para a baía de Guanabara sim.

A estação Brigadeiro era o docinho que derretia em delícias na sua boca, e a Paraíso era mesmo seu paraíso. Porque então ela descia e trocava de trem para o trajeto de volta. Daí, todas as evocações se reprisavam: o doce, a baía de Guanabara, as feridas, as lágrimas, a música. Nessas idas e vindas, que somaram centenas, vez ou outra, voltava uma ideia fixa: “Um dia vou escrever minha experiência para uma revista científica. Talvez eles considerem que uma pessoa é muito maior do que seu cérebro”. Ria com essa ideia. E logo a esquecia.

Fernanda Pompeu é redatora e editora de textos encomendados. Também é autora do livro de microcontos 64, editado pela Brasiliense

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