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Sociologia

A São Paulo do meio do século 20

Estudo explora a relação entre sociedade e cultura na metrópole

Centro de São Paulo nos anos 50: encarando a cultura paulistana como uma questão urbana

A partir da segunda metade do século 20, a cidade de São Paulo passou a ser o pólo da modernidade cultural brasileira. A industrialização, a imigração massiva, a institucionalização da vida universitária, a criação de museus, companhias de teatro e cinema criaram uma atmosfera cosmopolita, propícia ao debate e à proliferação de linguagens. Em vez de estudar esse período confrontando visões diferentes de uma mesma atividade cultural, a socióloga Maria Arminda do Nascimento Arruda escolheu o exame de experiências culturais inovadoras, aparentemente desvinculadas entre si, procurando estabelecer correspondências entre elas que permitissem mostrar como a sociedade está presente na cultura.

Essa abordagem original faz de Metrópole e Cultura – São Paulo no Meio Século XX (São Paulo, Edusc, 2001, 482 páginas) um estudo sem precedentes na sociologia da cultura feita no Brasil. A pesquisa foi apresentada originalmente como tese de livre-docência no Departamento de Sociologia da FFLCH-USP. Habituada a pensar as relações entre cultura e sociedade sob um viés regional, Maria Arminda é autora de Mitologia da Mineiridade. O Imaginário Mineiro na Vida Política e Cultural do Brasil (São Paulo, Brasiliense, 1990), estudo em que trabalhou com material muito diverso – escritores como Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Guimarães Rosa, autores intérpretes de Minas e discursos políticos.

“Consegui mostrar que havia uma relação muito mais próxima do que se imaginava entre, por exemplo, a poesia de Drummond e o discurso de Tancredo Neves, explicitando assim a presença da noção genérica de sistema cultural”, explica a autora. No caso de Metrópole e Cultura, Maria Arminda teve problemas para lidar com o conceito de sistema. “A cultura em São Paulo é mais fragmentada, menos orgânica do que em Minas. Tive dificuldades para entendê-la como sistema”, afirma. Durante o andamento da pesquisa, a noção de linguagem revelou-se mais produtiva, pois deu conta da pluralidade cultural paulista. “A cultura do Modernismo se caracteriza por linguagens fragmentadas, referidas a seus próprios termos. O que procuro demonstrar no livro é como essas linguagens estavam ligadas a um contexto particular, a cidade de São Paulo, no momento que sua vida cultural se transformava profundamente.”

A partir do pós-guerra, certos artistas e intelectuais emergem, construindo novas identidades. A aproximação do problema da cultura na metrópole pela via da linguagem permitiu à autora articular os três focos que compõem sua reflexão, que surgem nessa época: o teatro de Jorge Andrade, a sociologia de Florestan Fernandes e a renovação poética empreendida pelas vanguardas concretistas, organizadas em torno de Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari. Esses três focos desenvolvem algumas questões levantadas pelos intelectuais do Modernismo, que foram os primeiros a encarar a cultura como uma questão urbana, dando expressão estética à modernização da vida da cidade e estabelecendo uma nova ordem de percepções que abriu espaço para uma consciência moderna. Os três focos engendram formas peculiares de apreensão dessa nova realidade.

“A linguagem do Florestan é árdua, cheia de conceitos, mas à medida que fui trabalhando com a obra dele, percebi que as interpretações existentes não davam conta do objeto. Ora ele aparecia como o grande revolucionário socialista, ora ele era visto como um funcionalista que mais tarde se torna marxista. Essas interpretações são esquemáticas, não me satisfizeram. Quando li seus primeiros escritos sobre a cidade de São Paulo, percebi que ele apostava no que chamou de ‘sociedade moderna nos trópicos’, e São Paulo estava no centro disso”, afirma. Por outro lado, o sociólogo estava preocupado em construir uma linguagem científica, teórica, que conferisse legitimidade acadêmica à disciplina. O tema da pesquisa foi sendo ampliado a partir da leitura da obra de Florestan. “Aos poucos fui percebendo que havia uma relação entre a linguagem da ciência do Florestan e a poética não conteudística dos concretos: uma idéia de universalidade da linguagem, independente dos contextos”, afirma o pesquisador.

Em sua empresa de renovação da linguagem poética, os concretos recusaram o legado estetizante da geração anterior. Sua sintaxe se baseava em premissas visuais, espaciais, desprezando o verso. O poema era encarado como objeto de linguagem, como técnica. Exprimia a sua própria estrutura como objeto “em si e por si mesmo”, refletindo os novos traços da sociabilidade urbana, numa metrópole que se moderniza com a indústria, a sociedade de consumo, a propaganda. “Perseguiram uma poesia de anulação do tempo, de exclusão da história, de afirmação do presente”, escreve Maria Arminda. Nas artes plásticas, o concretismo se insurgiu contra o figurativismo, concebendo formas e cores como dados eminentemente visuais, universais, em detrimento da expressão de conteúdos. A imagem se torna autônoma, auto-referente, ando assim o tempo presente, o próprio modo de viver contemporâneo. A representação se apaga, para que a presença se imponha.

A autora destaca o papel desempenhado pela leitura do livro Viena Fin-de-Siècle, de Carl Schorske, uma importante fonte de sugestões. “Notei duas possíveis aproximações entre a Viena do fim do século 19 e a São Paulo de meados do século 20: havia uma dinâmica cultural muito viva, em dois contextos periféricos. Eram duas propostas culturais universalistas e a-históricas, contra a cultura do passado, mesmo que tivessem motivações diferentes – em Viena, ela estava ligada à crise do liberalismo, e em São Paulo ela se articulava com a idéia de cultura universal, embutida na noção de progresso”, comenta. Nos dois casos, a recusa da história se fez pela multiplicação de experiências sociais, que instauram a fragmentação, a descontinuidade das linguagens.

Jorge Andrade faz parte desse processo, pois sua obra sintetiza as tensões características da cultura paulistana, os dilemas de uma sociedade em transformação, numa postura cética diante das visões otimistas identificadas com o progresso. Sua dramaturgia é um teatro da memória, que não busca atualizar o passado para apropriar-se dele nos termos propostos por Walter Benjamin, mas procura reconstituir o passado para esquecê-lo e assim libertar-se dele. Andrade quer acertar contas com o passado e assim poder olhar para o futuro. A urbanidade está muito presente em sua obra, pois a cidade pressupõe uma dinâmica que ataca a velha ordem agrária.

Sob o ponto de vista da linguagem, a dramaturgia de Jorge Andrade é essencialmente moderna, pois digere um amplo espectro de referências, que vão do teatro grego a Brecht. Andrade deu expressão universal a questões locais, ligadas ao ambiente cultural de São Paulo, sempre com preocupações sociais, presentes no exame da condição dos deserdados da modernidade. A universalidade de sua linguagem foi demonstrada pela tradução das peças em línguas estrangeiras e pelas montagens no exterior.

Fio condutor da análise, a linguagem fornece a lógica que determina a ordem dos capítulos. O estudo aborda Andrade primeiro, pois é, entre os três, o menos inovador no uso da linguagem. Em seguida aparece Florestan – os concretos vêm depois, já que a linguagem ocupa lugar decisivo na problemática que levantaram. A perspectiva crítica em relação à modernidade é mais presente em Florestan e Andrade do que nos concretos, que tinham um olhar otimista, uma concepção positiva da modernidade.

Crítico e pessimista
Florestan sempre foi crítico, mas ficou pessimista a partir de A Integração do Negro na Sociedade de Classes, tese de cátedra defendida poucos dias antes do golpe militar de 1964. “Florestan constata que o projeto de modernidade vigente, no qual ele acreditava, não integrava o negro. Ele termina o texto dizendo que, se não resolvermos essa questão, não conseguiremos construir um suporte de civilização moderna. A partir daí, o projeto de Florestan entra em crise. Com sua expulsão da universidade, em 1969, é todo o seu projeto de vida que vem abaixo”, afirma.

O movimento concreto também entrou em crise antes de 1964. A dissidência neoconcreta – surgida em 1959, no Rio de Janeiro, em torno de Ferreira Gullar e Mário Pedrosa – ataca o mecanicismo e a ortodoxia idealista dos concretistas paulistas, que se situavam fora da história, desprezando a participação política e social. No período imediatamente posterior, a questão da participação se acirrou, e o concretismo sofreu novas cisões. Assim como aconteceu na trajetória de Florestan, as vanguardas perdem força e chegam aos anos 60 num profundo desencanto com a modernidade brasileira. A crise do teatro de Jorge Andrade também é desta época. “Como Florestan, Andrade quis construir um projeto profissional, estabelecer-se como dramaturgo, viver disso.

O projeto fracassa, e Andrade vai sofrendo críticas de todos os lados: os setores ligados à cultura de participação diziam que seu teatro era passadista, pois falava da memória. Quando ele tentou entrar no debate e escreveu peças claramente políticas, caiu no esquematismo, perdeu substância. Por outro lado, seu teatro também não se adaptava ao gosto burguês, pois Vereda da Salvação selou a crise do TBC”, analisa. “Andrade é a síntese de um tempo, pois colocou em cena a tensão entre necessidade e impossibilidade da exclusão do passado.”

Com o golpe de 1964, os limites dessa modernidade cultural se explicitaram. Diante da indústria cultural, que se torna o sistema dominante, as linguagens não conseguem responder adequadamente. A história derrapa, o projeto de pensar uma modernidade cultural é atropelado pelas condições políticas. “Como escreveu Florestan, não há revolução burguesa no Brasil, pois a burguesia não se autonomizou para implantar seu projeto moderno, mas se aliou com a oligarquia rural, escravista. A face mais moderna dessa burguesia é a que se refere ao mercado. Em relação ao projeto cultural, ela é problemática”, conclui.

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