Ainda são comuns as falhas, o abandono e a interrupção do uso de métodos contraceptivos, muitas vezes resultando em gravidez não intencional, de acordo com estudos recentes. Um deles, da Universidade de São Paulo (USP), indicou que quase um terço das 2.051 mulheres entrevistadas nas cidades de São Paulo, Aracaju e Cuiabá abandonou o método em até 12 meses após começar a usá-lo. As razões foram bem variadas: por querer engravidar, por desejar um método mais eficaz ou por causa dos efeitos colaterais dos anticoncepcionais hormonais.
“Muitas mulheres que entrevistei estavam angustiadas, com dúvidas e receios”, comenta a enfermeira Ana Luiza Vilela Borges, da Escola de Enfermagem da USP, coordenadora do estudo apoiado pela FAPESP e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), publicado em fevereiro de 2021 no Cadernos de Saúde Pública. “As mulheres passam em média 35 anos de suas vidas se preocupando em evitar uma gravidez.”
Uma em cada quatro mulheres engravidou enquanto o parceiro usava preservativo masculino (camisinha); 18% delas enquanto tomavam pílula anticoncepcional, o método mais utilizado no país; e 8,4% usando anticoncepcional hormonal injetável, aplicado por um profissional da saúde em intervalos entre um ou três meses. Os índices são mais altos que os observados pela Organização Mundial da Saúde (OMS), de 18% para camisinha e 9% para a pílula.
Como os efeitos colaterais indesejados de alguns dos métodos utilizados foram a principal razão de abandono, Borges concluiu que as mulheres podem não ter sido devidamente informadas pelos profissionais da saúde sobre o que esperar de cada um. Por exemplo, o contraceptivo hormonal injetável, que apresentou a maior taxa de abandono por causas ligadas ao próprio método (11,4%) ou por seus efeitos, como alterações no ciclo menstrual ou ganho de peso.
De acordo com essa pesquisa, muitas mulheres incomodadas com os efeitos colaterais dos injetáveis migraram para métodos menos eficazes. Um estudo em andamento do grupo de Borges indicou que o preservativo masculino é o método mais adotado nesses períodos de transição, mas essa troca pode aumentar o risco de gravidez não intencional.
“O uso da camisinha envolve uma negociação, nem sempre fácil, com o parceiro”, diz a pesquisadora. “Um erro comum entre os casais é usar o preservativo de forma inconsistente e inadequada, o que acarreta mais chance de falhas.”
Léo Ramos ChavesPreservativos: falhas de uso fazem com que uma em cada quatro mulheres entrevistadas tenham engravidadoLéo Ramos Chaves
Gravidez não intencional
“O tempo para encontrar uma alternativa ou para se adaptar a um novo método aumenta o risco de gravidez não intencional”, comenta a médica sanitarista Tania Di Giacomo Do Lago, do Instituto de Saúde (IS) da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, que não participou do estudo.
A gravidez não intencional ainda é considerada alta no Brasil. Mais da metade (55%) de 23.894 mulheres entrevistadas em 2011 e 2012, logo após o parto, relatou se tratar de uma gravidez não intencional, segundo o projeto Nascer no Brasil, cujos resultados foram publicados na revista científica Reproductive Health em 2016.
Novamente, os resultados ficaram acima do índice global: 48% das gestações do mundo foram não intencionais entre 2015 e 2019, como detalhado em um artigo de 2020 na Lancet Global Health. Nesse levantamento, a comparação entre dois quinquênios, de 1990 a 1994 e de 2015 a 2019, mostrou que a gravidez não intencional caiu de 60% para 46% na Europa e na América do Norte e aumentou de 59% para 63% na América Latina.
Por outro lado, 81,6% das brasileiras sexualmente ativas com idade entre 15 e 44 anos relataram usar algum método contraceptivo em 2006, segundo a versão mais recente da Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde (PNDS) da Criança e da Mulher.
“O paradoxo entre o uso de métodos e o alto índice de gestações não intencionais revela um constante vaivém nas práticas contraceptivas”, diz Borges. “As trocas, abandonos e falhas no uso dos métodos são mais frequentes entre usuárias de métodos de curta ação, como pílula e preservativo, dois entre os mais usados no país, e mais incomum entre usuárias dos métodos reversíveis de longa duração, como os dispositivos intrauterinos e o implante.”
Preconceitos sobre o DIU
Em 2015, Lago e colegas do IS e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) entrevistaram 2.885 moradoras da cidade de São Paulo. Como detalhado em um artigo publicado em outubro de 2020 no Cadernos de Saúde Pública, 84,8% delas usavam algum método contraceptivo. Entre as entrevistadas, 15% não usavam nenhum método porque queriam engravidar, faziam sexo apenas ocasionalmente, não sabiam qual método adotar ou temiam os efeitos colaterais.
“Vimos um índice de laqueadura menor do que esperávamos, porque era um dos métodos mais adotados em levantamentos anteriores, e uma prevalência maior de vasectomia nos parceiros de mulheres com mais escolaridade”, observa Lago. “Mas ainda é cedo para dizer que a desigualdade de gênero na contracepção está diminuindo. Historicamente, a responsabilidade contraceptiva recai mais sobre as mulheres.”
Apenas 2,5% das entrevistadas usavam o dispositivo intrauterino (DIU) de cobre, único método de longa duração oferecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS), que pode permanecer de 5 a 10 anos no corpo da mulher. Os centros públicos de saúde deveriam oferecer oito métodos contraceptivos, além do DIU: o anticoncepcional injetável mensal e trimestral, a pílula combinada, minipílula, pílula de emergência, o diafragma e os preservativos feminino e masculino.
“O DIU ainda é muito estigmatizado e subutilizado, embora seja um dos métodos reversíveis mais eficazes”, diz Borges. Entre as mulheres que entrevistou em São Paulo, Aracaju e Cuiabá, apenas 1,7% o usava. Como detalhado em um artigo publicado em fevereiro de 2020 na Revista Latino-Americana de Enfermagem, 53,7% delas não sabiam se o homem sentiria o DIU durante a relação sexual (em casos muito raros, o parceiro pode sentir os fios do dispositivo, que devem ser examinados por um profissional da saúde); 41,4% temiam que o dispositivo aumentasse o risco de câncer de útero, embora não exista evidência disso; 39,8% desconheciam os efeitos colaterais, como o aumento das cólicas e do fluxo menstrual; e 32,3% achavam que o DIU fosse abortivo.
“Já vi municípios devolverem os DIU de cobre porque a Câmara de Vereadores da cidade decidiu que ele era abortivo. Algo absurdo”, lembra Lago, que coordenou a área técnica da Saúde da Mulher no Ministério da Saúde e na Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo.
Em 2017, o Ministério da Saúde aprovou uma portaria para aumentar o uso do DIU de cobre e incentivar seu uso após o parto. Em março de 2022, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei nº 7.364/14 que retira a necessidade de consentimento do cônjuge para a laqueadura de trompas ou vasectomia – métodos de esterilização definitivos oferecidos pelo SUS – e reduz a idade mínima para os procedimentos de 25 para 21 anos. O texto final, que seguiu para o Senado, mantém a recomendação de que é preciso ter 21 anos ou pelo menos dois filhos vivos.
Métodos de longa duração
“Não há dúvida de que os métodos de longa duração, como o DIU, são mais eficazes, principalmente porque dependem menos das adversidades do dia a dia”, observa o médico Anibal Faúndes, da Unicamp, especialista em reprodução humana e sexualidade feminina. “Infelizmente, eles ainda não são muito usados no Brasil e não entendo o porquê dessa resistência. O DIU de cobre é barato e costuma causar menos efeitos colaterais do que os métodos hormonais.” Métodos de longa duração, como já verificado em outros estudos, propiciam menores taxas de descontinuidade, de gravidez não intencional, de abortos inseguros e de mortalidade materna.
UnsplashDIU: método subutilizado, mas um dos mais eficazesUnsplash
Em abril de 2021, o Ministério da Saúde publicou uma portaria que incorpora ao SUS o implante subdérmico (um bastão de silicone, que libera hormônios, implantado no braço), um método de longa duração, para mulheres de 18 a 49 anos em situação de rua ou com HIV/Aids que usem o medicamento antirretroviral dolutegravir, as privadas de liberdade, trabalhadoras do sexo, entre outras. Especialistas em saúde pública e a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) criticaram a decisão de limitar a oferta apenas a esse grupo de mulheres.
“Direcionar as medidas para grupos vulneráveis pode estigmatizar a contracepção, condicionar a autonomia reprodutiva dessas mulheres e impedir que esse método seja incorporado por todas as mulheres que desejem usá-lo”, critica Elaine Brandão, do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), cuja pesquisa contou com apoio do CNPq.
Em um artigo de setembro de 2021 na revista Horizontes Antropológicos, Brandão empregou o conceito de “coerção contraceptiva” para definir esse tipo de segmentação. “É uma coerção sutil, em que os profissionais da saúde não obrigam, mas recomendam fortemente o uso de um ou de outro método para determinado grupo social, sobrepondo-se ao direito de autonomia da mulher sobre o próprio corpo”, ela explica.
Outro estudo do grupo da USP, também publicado no Cadernos de Saúde Pública, indicou que a maioria das mulheres, quando não usava nenhum outro método para evitar a gravidez, utilizou a contracepção de emergência, principalmente a chamada pílula do dia seguinte, que deve ser tomada até 120 horas depois da relação sexual. Por essa razão, segundo Borges, o uso das abordagens de emergência ajuda a dimensionar o abandono ou alternância de métodos regulares.
O uso da pílula do dia seguinte tem crescido. Metade das 3.249 moradoras da capital paulista entrevistadas em um projeto de que Lago participou já tinha usado a pílula do dia seguinte pelo menos uma vez, como relatado em outubro de 2021 na revista Contraception. É um percentual acima dos 12% das mulheres em idade reprodutiva que disseram ter usado esse método na PNDS de 2006.
Lago, Borges e Brandão oferecem recomendações semelhantes: melhorar, diversificar e disseminar a oferta dos métodos contraceptivos, incluindo os de longa duração, e ampliar o acesso a mais informação sobre as vantagens e desvantagens de cada um deles. “Não se trata de dizer qual método é melhor, mas de dar a possibilidade para que a mulher escolha o que é o mais adequado para ela em cada momento da vida”, enfatiza Borges.
“Enfrentamos ainda muitas dificuldades no Brasil para falar abertamente com a população sobre anticoncepção”, diz Lago. “O receio de governantes em falar de sexo não atrelado à função reprodutiva, um assunto sensível para os setores conservadores, impede que façamos campanhas de comunicação social sobre o atendimento e de contraceptivos no SUS.” Segundo ela, a maioria das mulheres entrevistadas não sabia que poderia procurar o SUS com essa finalidade. “A maioria paga pela anticoncepção.”
Projetos
1. Padrões e determinantes das descontinuidades contraceptivas e o papel da anticoncepção de emergência (14/02447-5); Modalidade Auxílio à Pesquisa ‒ Regular; Pesquisadora responsável Ana Luiza Vilela Borges (USP); Investimento: R$ 125.467,73.
2. Práticas contraceptivas na cidade de São Paulo: Prevalência, necessidades não atendidas e atuação do SUS (14/50115-1); Modalidade Auxílio à Pesquisa ‒ Pesquisa em Políticas Públicas para o SUS; Pesquisadora responsável Tania Di Giacomo Do Lago (IS- São Paulo); Investimento: R$ 453.448,25.
Artigos científicos
BARBOSA, R. M. et al. The emergency contraceptive pill in Brazil: High usage rates but schooling differences persist. Contraception. v. 104, n. 4, p. 401-5. out. 2021.
BEARAK, J. et al. Unintended pregnancy and abortion by income, region, and the legal status of abortion: Estimates from a comprehensive model for 1990–2019. The Lancet Global Health. v. 8, n. 9. set. 2020.
BORGES et al. Knowledge about the intrauterine device and interest in using it among women users of primary care services. Revista Latino-Americana de Enfermagem. n. 28, e3232. 2020.
BORGES, A. L. V. et al. Descontinuidades contraceptivas no uso do contraceptivo hormonal oral, injetável e do preservativo masculino. Cadernos de Saúde Pública. v. 37, n. 2. 2021.
BRANDÃO, E. R. e CABRAL, C. S. Vidas precárias: Tecnologias de governo e modos de gestão da fecundidade de mulheres “vulneráveis”. Horizontes Antropológicos. v. 61, n. 27. set 2021.
CHOFAKIAN, C. B. do N. et al. Dinâmica contraceptiva antes e após o uso da anticoncepção de emergência: Descontinuidades contraceptivas e bridging. Cadernos de Saúde Pública. v. 37, n. 12. 10 dez. 2021.
LAGO, T. G et. al. Diferenciais da prática contraceptiva no município de São Paulo, Brasil: Resultados do inquérito populacional Ouvindo Mulheres. Cadernos de Saúde Pública, v. 36, n. 10. 2020.
THEME-FILHA, M. M. et al. Factors associated with unintended pregnancy in Brazil: Cross-sectional results from the Birth in Brazil National Survey, 2011/2012. Reproductive Health. v. 118, n. 13. out. 2016
Republicar