Com a Covid-19, as universidades brasileiras que realmente fazem pesquisa puderam mostrar que é possível dar respostas para necessidades urgentes da sociedade. Em mais de 100 anos não vivíamos uma crise sanitária com impactos tão violentos. Logo que surgiu a pandemia, as três universidades estaduais paulistas reuniram massa crítica para estudar e enfrentar o novo coronavírus, buscando resolver problemas concretos ocasionados pela pandemia. Isso foi importante para demonstrar, mais uma vez, como são revertidos em benefícios para a sociedade os 9,57% da arrecadação do ICMS [Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços] destinados às universidades de São Paulo [USP], de Campinas [Unicamp] e a Estadual Paulista [Unesp].
Na Unesp, montamos um comitê científico sobre a Covid-19, que identificou potencialidades e fez um chamamento para que seus docentes e pesquisadores pudessem contribuir. Não havia nenhum grupo de pesquisa trabalhando diretamente com coronavírus, mas tivemos pronta resposta de nossa comunidade acadêmica. Já temos mais de 100 pesquisas em andamento abordando aspectos diversos da doença – em alguns casos, nem foi preciso solicitar financiamento, pois as pesquisas puderam ser iniciadas com a infraestrutura laboratorial conquistada com os projetos já vigentes.
Mesmo atuando como reitor da Unesp, engajei-me nesse esforço e submeti, juntamente com pesquisadores do grupo que lidero na Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Araraquara, um projeto no edital lançado pelo CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico] para pesquisas de enfrentamento da Covid-19. Essa decisão foi tomada pois o cargo de reitor é transitório e a partir de janeiro de 2021 retornarei às atividades acadêmicas em Araraquara.
Em 1998, quando retornei do pós-doutorado na Universidade Harvard, estruturei com apoio da FAPESP um laboratório que utiliza a levedura Saccharomyces cerevisiae para caracterização funcional de genes e proteínas – esse modelo permite compreender mecanismos moleculares envolvidos em processos conservados nas espécies biológicas, como na proliferação celular e na gênese de processos tumorais.
Há mais de 20 anos, nosso laboratório trabalha com essa levedura, um organismo simples que permite extrapolar resultados para humanos. Como temos esse laboratório muito bem estabelecido em biologia celular e molecular de levedura, nosso grupo de pesquisa achou que poderia contribuir no esforço contra a pandemia. O projeto foi aprovado e estamos iniciando o trabalho agora. Nesse contexto de pandemia, o que a sociedade mais precisa é de uma vacina eficaz e de técnicas de diagnóstico rápidas, sensíveis e baratas para identificar e isolar quem está contaminado. Nosso grupo tem expertise que pode ajudar na seleção de reagentes eficientes para o diagnóstico.
Em síntese, o projeto aprovado busca desenvolver um teste altamente sensível e específico para o novo coronavírus. Vamos construir um banco de leveduras capazes de produzir proteínas (fragmentos de anticorpos) em sua superfície que poderão ser utilizadas para detectar a presença do vírus. O foco é utilizar células de defesa, os linfócitos B, de pacientes convalescentes da Covid-19 que estão produzindo anticorpos contra o vírus Sars-CoV-2. Vamos clonar regiões gênicas específicas de anticorpos desses linfócitos e inserir tais sequências nas leveduras. Essas, por sua vez, irão produzir em sua superfície fragmentos de anticorpos que serão testados quanto à capacidade de detectar uma parte específica da espícula viral do Sars-CoV-2, proteína estrutural do envelope do vírus, diferenciada dos demais coronavírus devido a mutações. Dessa forma, a intenção é encontrar uma levedura capaz de produzir fragmentos de anticorpos que reconheçam somente o Sars-CoV-2 e, assim, utilizar esses fragmentos para gerar um método de diagnóstico simples e sensível: um teste rápido para detectar a presença de partículas virais no sangue e em saliva. É uma proposta original e desafiadora, que teve seu mérito reconhecido pelo CNPq – no edital foram aprovados apenas 90 projetos em um universo de mais de 2 mil propostas de grupos de pesquisa do país inteiro.
Juntamente com a equipe, estamos escrevendo um livro sobre a nossa gestão na Unesp, a ser publicado até o final do ano, em que relatamos os vários desafios enfrentados ao longo da gestão. Quando assumi como reitor, em janeiro de 2017, as despesas da Unesp eram R$ 330 milhões superiores às receitas, no acumulado de 12 meses, e não tínhamos previsão orçamentária para o pagamento do 13º salário aos docentes e funcionários. Trabalhamos com medidas bastante severas. Ao longo de três anos, as curvas de receitas e despesas se inverteram, sem envolver recursos novos para a Unesp. No ano passado, tratativas de sucesso com o atual governo do estado possibilitaram antecipar para o início do ano o repasse de parte dos recursos que só receberíamos mais tarde e obter o ressarcimento de valores da folha de pagamento dos servidores da Unesp afastados para trabalhar no Hospital das Clínicas de Botucatu. Apesar de a gestão do hospital ter sido passada à Secretaria de Estado da Saúde em 2010, a Unesp seguia pagando os salários dos funcionários. Essas tratativas permitiram pagar dois 13º salários em 2019, incluindo aquele que vínhamos postergando desde o início da gestão para o exercício posterior, sem comprometer as reservas financeiras, pois os seus valores foram os mesmos no final de 2018 e de 2019. Isso evidenciou que estávamos finalmente superando a crise econômica desencadeada com a queda de arrecadação de 2014 a 2016. Dessa forma, o equilíbrio orçamentário e financeiro foi alcançado com o orçamento aprovado para 2020, que já contemplava a contratação de 100 professores e 70 funcionários, substituindo parte dos aposentados.
Mas então veio a pandemia da Covid-19. Com a queda na arrecadação estadual de ICMS, a Unesp deixará de receber aproximadamente R$ 280 milhões. Cancelamos as contratações, que custariam R$ 14 milhões, e conseguimos cortar outros R$ 59 milhões de despesas correntes. Isso resolveu uma parte do problema. Como a casa tinha acabado de ser arrumada e a Unesp não teve tempo suficiente para reconstruir reserva financeira adequada, certamente será necessária ajuda orçamentária e financeira do governo estadual para honrar o pagamento de salários em 2020. Compreendo que a crise econômica é generalizada e sou sensível ao fato de que o governo estadual perdeu R$ 13 bilhões de arrecadação. Acredito na competência da sua equipe técnica e espero que ajudem a Unesp no fechamento do exercício de 2020 para que eu possa entregar a universidade em situação melhor do que aquela que recebi em 2017.
Mesmo antes da pandemia, a Unesp já vinha trabalhando com a transformação digital do ensino. Sempre defendi que deveríamos oferecer mais opções de práticas pedagógicas e autonomia para os alunos participarem mais ativamente do seu processo de formação profissional. Por exemplo, o plano dessa gestão já previa a disponibilização de conteúdos gravados para que o aluno tivesse mais flexibilidade para estudar, utilizando os momentos presenciais como um catalisador (aula invertida ou flipped classroom). Passamos dois anos da gestão tentando romper a dicotomia entre tecnologia e pedagogia.
Confesso que é bem difícil para um reitor de uma universidade pública, que atende a sociedade com 136 cursos de graduação e 152 programas de pós-graduação na modalidade presencial, ouvir e aceitar, em tempos de isolamento social, que docentes acreditam ‒ e induzem estudantes e funcionários a acreditar ‒ que a instalação do ensino remoto emergencial é um plano antigo da universidade para implantar cursos em EaD, precarizar o ensino e não repor quadro de docentes.
Como reitor e docente dessa universidade tenho a convicção de que as ações e práticas pedagógicas de um professor em interação com os estudantes sejam de modo presencial ou remoto (síncrono ou assíncrono), exigem dedicação e novas aprendizagens no planejamento, na utilização de metodologias de ensino e na avaliação. Garantida a inclusão digital, meu pressuposto é de que um professor competente e bem preparado vai fazer tanto o ensino presencial quanto o remoto com qualidade. O ensino remoto e o presencial podem ser bons ou ruins – o que vai definir isso é a qualidade do corpo docente, a utilização de plataformas digitais adequadas e a participação ativa dos estudantes nas diversas atividades pedagógicas.
Já temos no IEP3 [Instituto de Educação e Pesquisa em Práticas Pedagógicas], estruturado na atual gestão, um grupo de professores que busca associar as práticas da sala de aula com tecnologias digitais de informação e comunicação. Para colocar em prática também o objetivo de revitalização e reconceituação das bibliotecas, estão sendo criados 30 estúdios de produção de materiais pedagógicos e de divulgação científica. A maior parte dos estúdios estará instalada nas bibliotecas e os materiais produzidos serão editados pela TV Unesp. O objetivo é construir um repositório de aulas e fazer a curadoria periódica de todo esse material, de modo que um docente possa consultar esse banco e identificar conteúdos que possam contribuir para suas atividades pedagógicas.
A Covid-19 acelerou o processo de transformação digital de forma dramática e a quantidade de aulas, videoconferências e teletrabalho cresceu significativamente nos meses da pandemia. Logo no início da gestão assinamos um contrato com o Google para uso das ferramentas do G Suite for Education, que incluem o Google Classroom. Na época, houve oposições pontuais a esse contrato no Conselho Universitário. Se não tivéssemos essa importante plataforma digital para ser usada durante a pandemia, não teríamos mantido muitas das atividades acadêmicas e administrativas da universidade.
Para apoiar os docentes e os estudantes durante a quarentema, contratamos uma empresa que ajudou a dar escala ao uso do Google Classroom, pois tínhamos uma equipe pequena para orientar e tirar dúvidas. Com isso, unidades conseguiram avançar no conteúdo teórico do semestre, de forma remota, faltando apenas a parte prática de disciplinas, as clínicas, os estágios e outras atividades que não abrimos mão de serem presenciais. Algumas unidades já estão se organizando para o possível retorno das atividades presenciais, utilizando modelo híbrido de ensino (blended) para algumas disciplinas. Vamos aguardar como o governo de São Paulo pretende retomar as atividades escolares. De todo modo, a universidade tem autonomia e está avaliando se haverá condições de retomar aulas presenciais em 2020. A Unesp buscará o caminho mais seguro para todos.
No dia 11 de março, quando foi declarada a pandemia, tivemos uma reunião no Conselho de Reitores das Universidades Estaduais Paulistas (Cruesp) e suspendemos as aulas presenciais. Na Unesp, os funcionários migraram para um regime de teletrabalho e até o pessoal da Coordenadoria de Gestão de Pessoas passou a processar as folhas de pagamento em casa. Mantivemos contratos terceirizados para manutenção de prédios. Eu fui para minha residência em Araraquara em março e só retornei a São Paulo, onde fica a sede da reitoria, no início de agosto. Graças à ferramenta Google Meet, foi possível manter a rotina das atividades, inclusive as reuniões dos órgãos colegiados centrais. Vencidas as barreiras ideológicas e de acesso às tecnologias digitais de informação e de comunicação, tenho certeza de que não há retorno para a transformação digital da Unesp.
Nas últimas semanas, com cuidado, iniciamos a retomada de atividades administrativas presenciais na reitoria. Estou reitor e estarei empenhado na superação dos desafios que se impõem até o último dia do meu mandato, ou seja, 14 de janeiro de 2021, para entregar a universidade em melhores condições do que se encontrava em janeiro de 2017. Depois disso, seguirei contribuindo, como professor e pesquisador que sou, para o sistema de educação, ciência e tecnologia do estado de São Paulo, responsável em grande parte pela produção científica do Brasil.
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