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Ficção

A última comédia em preto & branco

MANU MALTEZForam duas batidas na porta: a primeira, viril; a segunda, um pouco mais prudente, como se o visitante quisesse neutralizá-las. Dois toques espaçados por segundos infinitos de tempo. Alguém queria me ver, conversar comigo, eventualmente trocar idéias, mas denotava receio.

Cinco horas da tarde. Sexta-feira. 30 de setembro. Fim do dia. Fim da semana. Fim do mês. Essa espécie de cronometragem arbitrária, no entanto, para mim, não tem o menor sentido: meus dias são todos iguais: acordo invariavelmente às sete da manhã, tomo um café puro e venho para a universidade. Às terças e quintas dou aula; o resto da semana fico aqui no gabinete, conversando com as aranhas, que tecem suas infindáveis teias pelos cantos.

Mesmo que fossem vinte e três horas e cinqüenta e nove minutos do dia 31 de dezembro, em que isso me afetaria? A essa altura do campeonato, um novo ano, para mim, significa apenas uma possibilidade maior de ficar sem próstata.

Minha vida como acadêmico foi metódica: no começo, era o verbo. Depois, vieram os eufemismos. Em seguida, as elipses ? minha memória tinha mais buracos que um queijo suíço. Hoje, não passo de um vulgar estereótipo. Não ligo. A vida não é mais do que isso. Me disseram que a resignação é um sinal de maturidade e eu acreditei.

Entra, eu disse.

Ele entrou. Como professor de literatura durante mais de trinta anos, aprendi a tomar muito cuidado com as palavras. Como descrever o sujeito? Quais adjetivos usar? Carcomido pelo tempo. Jubilado pela vida. Desesperançado. Pela bola sete. Aparentava mais que sessenta. Beiraria os setenta? Quais parâmetros empregar?

Senta.

Ele sentou.

Silêncio.

Ele me olhou. Eu olhei para ele. As aranhas ficaram de sobreaviso. Partículas de antimônio pairaram pelo ar denso e decantaram. Algo estava para acontecer. A vigília era latente. Iniciei uma hipotética contagem regressiva no intuito de testar minha paciência. Por fim, ele disse:

Professor, tenho uma tese.

Todos têm uma, retruquei, mais para marcar presença do que para dar prosseguimento à conversa.

É sobre Jayme Fusco.

Não conheço, eu disse, mentindo. Sabia quem era o sujeito: um escritor mineiro de Cataguases. Não tinha lido nada dele mas sabia que fizera um barulho com suas transgressões literárias lá pela década de 60. Resumindo: ele queria um orientador.

Podemos conversar, eu disse, lacônico. Fazia tipo: um homem de poucas palavras, um mestre acima do Bem e do Mal, categórico, disciplinado, ciente de suas responsabilidades. Um cara que já viu e ouviu de tudo na vida e anda cético. As aranhas adotaram uma atitude de prudência que me pareceu exagerada.

Quem é ele?, perguntei.

Um escritor importante, ele disse.

Assumi meu já característico tom blasé e retruquei em cima: Meu amigo, existem parâmetros subjetivos para medir isso. E outra coisa: há todo um processo seletivo para que eu aceite orientar quem quer que seja. A fila é grande!

Ouvi distintamente risadas de galhofa provenientes de um dos cantos do gabinete, onde duas aranhas se cutucavam.

O visitante recuou mas percebi que era apenas um artifício para tomar um impulso maior. Não captei qualquer traço de contrariedade em sua fisionomia diante de minhas palavras duras. Pelo contrário: ele riu. Estávamos falando a mesma língua. O sujeito jogava no meu time. E botou em cima de minha mesa dois exemplares bastante (agora sim) carcomidos pelo tempo. Folheei ao acaso. Eram dois livros porcamente editados: capas toscas, revisão descuidada, tipos evanescentes. Um inferno.

Por que ele é importante?, perguntei.

Ele disse. ?Explanou? seria um termo mais adequado. Falou por dez minutos sem parar. Seu discurso tinha uma lucidez de arrepiar. Forma e conteúdo. Verossimilhança. Narração sólida e diálogos certeiros. Ficção e realidade. Transgressão técnica. Método. Engenhosidade. Quando parou, eu disse:

Topo.

Ele riu de novo. E me apertou a mão, despedindo-se. As aranhas, então, deram início a uma espécie de dança tribal que (pelo que pude deduzir) representava um tipo exótico de rito de passagem. Afinal, já lá iam pelo menos sete anos que eu não orientava ninguém. Com toda razão, elas comemoravam o desenlace feliz do inusitado encontro. Mas fingi não prestar atenção à festinha. Tinha que manter meu distanciamento crítico a todo custo. São bichos matreiros & oblíquos. Não se deve confiar em quem anda de lado.

Muito bem. Daquele dia em diante, novos encontros se sucederam em avassaladoras sessões de análise da obra de  Fusco. A essa altura, eu já tinha lido os dois romances, percebe­­ra a genialidade do autor, sua filosofia de vida, sua rebeldia, sua crítica voraz às instituições. Nasceu daí minha simpatia por  seus livros e por sua atitude diante da injustiça humana.

Em seu estilo ácido, denunciara hipocrisias, arrivismos, picuinhas & todo tipo de preconceito. Mas o autor se metera em inúmeras intrigas de salão, ironizando vaidade e mediocridade. Rompera com tudo, brigara com todos, fora (em seu tempo) uma autêntica usina de metáforas, beleza & sarcasmos. Mas percebi que, com seu cinismo, cavara sua própria ruína.

Mais: segundo as próprias informações do meu ilustre orientando, a Academia o tinha esnobado solenemente. Era hora de reparar esse equívoco. Mergulhei no trabalho: dei dicas, sugeri atalhos, instiguei sua imaginação e criamos juntos um esqueleto prévio da tese. Os dias passaram rapidamente, algumas semanas, meses. O ano terminou com pendências. Em março, elas persistiam. Mas abril me deixou claro o que eu já suspeitava: meu orientando não estava fazendo nada, não tinha escrito sequer uma linha. Queria conversar, trocar dedos de prosa. A situação era francamente bizarra: enquanto meu entusiasmo pela obra de Fusco crescia, ele estagnava numa perigosa inércia absolutamente incompreensível. Perguntei o que estava acontecendo. Ele me respondeu de forma enigmática:

Tenho a impressão que já cheguei a um bom termo.

Percebi que, enquanto minúsculas bolhas de antimônio estouravam no teto, no canto esquerdo de meu gabinete, duas aranhas se entreolharam de forma suspeita. E estacaram.

Como assim?, perguntei, horrorizado.

Ostentando um sorriso franco de felicidade em seu rosto, meu orientando se levantou da cadeira, esticou a espinha, assumindo uma jovialidade inédita em todo nosso relacionamento, e rodeou minha mesa. Vamos colocar as coisas da seguinte maneira: apesar de sempre ter me orgulhado das atitudes distanciadas e quase nobres com que me relacionava com as pessoas, nunca tive a certeza absoluta de que isso poderia me trazer algum bem-estar. Isso ficou límpido como água mineral quando ele me deu um abraço bem apertado. Deduzi que aquela era sua melhor maneira de demonstrar gratidão mas não entendi toda a extensão daquele gesto. Contrariando completamente minha tão arraigada discrição, não negligenciei essa velha forma de contato humano: o abraço durou uma eternidade. Em seguida, ele se despediu, me deixando sozinho com minhas aranhas contorcionistas.

No dia seguinte, acordei como sempre às sete horas da manhã, e meus pés me dirigiram ao bar próximo de casa. Uma voz surgiu de dentro de mim:

E aí, qual a boa?

Mesmo estranhando aquela intimidade toda, o atendente disse: Tudo nos conforme, doutor. O que vai ser?

Uma média e pão com manteiga.

Adotei aquilo para os dias que se seguiram. O ser humano pode demorar bastante tempo para descobrir a felicidade mas chega o dia em que ele acorda para sempre: felicidade é tomar café e pão com manteiga no bar da esquina. Até as aranhas sabem disso.

Chegou o sábado. Atiraram o jornal na porta, como sempre ? identifiquei o estrondo com nitidez. Peguei e comecei a ler. De repente, no fim do segundo caderno, uma foto. Li o necrológio ao mesmo tempo em que uma pontada aguda atingia o lado esquerdo de meu peito. Era breve: Escritor mineiro de Cataguases, radicado no Rio de Janeiro desde a década de 70, Jayme Fusco morreu ontem de embolia pulmonar. A foto era de meu orientando.

Furio Lonza é escritor, jornalista e dramaturgo, tendo publicado, entre outros, Eric com o pé na estrada, Máquina de fazer doidos, As mil taturanas douradas e História impossível.

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