Quando os últimos visitantes deixam as salas de exposições e as portas dos museus são fechadas, os objetos de seus acervos seguem protagonistas de uma realidade pouco conhecida do público. Apesar de fantasiosa, a imagem de que, nesse momento, múmias e dinossauros recobram vida ajuda a entender melhor o trabalho de bastidores que caracteriza o funcionamento dessas instituições. Não importa sua natureza, as coleções exigem dedicação constante de equipes multidisciplinares para garantir sua existência. Sem técnicos e especialistas de distintas áreas, torna-se praticamente impossível assegurar a preservação e conservação das peças – e isso envolve desde cuidados com a segurança das salas até períodos de descanso dos objetos, quando eles deixam de ser exibidos e voltam para a reserva técnica, espaço inacessível ao público e destinado a atividades de higienização e restauro.
De acordo com Sheila Walbe Ornstein, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), os cuidados com os acervos, incluindo os próprios edifícios, começam com o estabelecimento de condições de segurança, iluminação e umidade adequadas ao tipo de objeto exposto em cada espaço. “Isso exige a participação de arquitetos, engenheiros, especialistas em prevenção de acidentes, na preservação do edifício e seus acervos móveis”, diz a pesquisadora. Quando a instituição funciona em edifícios históricos, casos do Museu Nacional e do Museu Paulista, por exemplo, é preciso estar atento às instalações elétricas e às especificidades da arquitetura, como estruturas de madeira do telhado. O monitoramento da poluição e das vibrações do tráfego urbano, inexistentes quando eles foram construídos, também requer atenção. “Há edifícios históricos que foram criados para funcionar como residência e, por isso, proporcionam ventilação cruzada, que pode favorecer a propagação do fogo”, comenta. Para contornar esse tipo de situação, Sheila lembra que é possível instalar barreiras como portas corta-fogo ou telas que são acionadas no momento em que a temperatura das salas se eleva, além de detectores de fumaça e alarmes geridos por centrais de monitoramento. Equipes de brigadistas e reservas de água também são fundamentais. “Assim, as chances de incêndio em grande escala são reduzidas e é possível atrasar a propagação do fogo até a chegada dos bombeiros”, afirma.
Os museus devem, ainda, contar com comissões ativas de prevenção de acidentes, responsáveis pela elaboração de planos de ação a serem adotados em eventos de risco e que incluam estratégias não apenas de retirada das pessoas, mas também das peças consideradas prioritárias, em casos de incêndio ou inundação. Sistemas de monitoramento por câmeras, em todos os ambientes, e ferramentas de vigilância específicas, para os objetos mais valiosos, são itens indispensáveis. “O busto de Nefertiti, que pertence ao Museu Egípcio de Berlim [Alemanha] fica armazenado em uma vitrine, que conta com um sistema de alarme individual”, conta Sheila, lembrando que garantir a segurança dos acervos requer investimento contínuo devido à necessidade de constante atualização tecnológica e treinamento das equipes.
Escassez de recursos
É justamente a falta de verba para manutenção que tem afetado o sistema de alerta de incêndio do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), que possui 20 coleções, incluindo aproximadamente 15 mil peças do acervo etnográfico, produzidas por 120 povos indígenas da Amazônia (ver reportagem). Fábio Jacob, técnico do acervo de etnografia do MPEG, explica que há cerca de um ano oscilações na rede elétrica têm causado a queima dos sensores – com certa frequência, são acionados por formigas. Apesar do problema nos alarmes, a sala que comporta a coleção etnográfica parece bem protegida. O acesso a ela é controlado por senha e restrito a pesquisadores e técnicos. No seu interior, protegido por uma porta corta-fogo que veda sua única entrada, temperatura e umidade são controladas por ventiladores, exaustores e desumidificadores, acionados automaticamente por um sistema eletrônico. “Para essa coleção, o mais importante é manter a umidade relativa do ar entre 55% e 60% e, assim, reduzir o risco de infestação por insetos”, explica Jacob. Além disso, há detectores de fumaça instalados em todos os laboratórios e nas salas com coleções, conectados a uma central de alarmes.
Objetos perdidos no incêndio poderão ser reconstituídos com ajuda de tecnologia
Profissionais envolvidos na preservação e restauração de acervos devem contar com formação interdisciplinar, além de atualizar-se constantemente através de pesquisa científica e em novas tecnologias, explica Ana Gonçalves Magalhães, curadora do Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP. A partir dessas qualificações múltiplas, tornam-se capazes de estabelecer protocolos em relação às peças exibidas em distintos espaços. “Em salas que abrigam obras sobre papel, como desenhos ou gravuras, por exemplo, a forma de iluminação é crucial”, explica a curadora, utilizando como exemplo as coleções de gravuras do Museu Albertina, em Viena, Áustria. Com um acervo contendo obras datadas do século XVI, a instituição tem protocolos que determinam períodos de descanso programados e recorrentes em sua reserva técnica, totalmente escura. “A saída, para mantê-las acessíveis ininterruptamente, foi digitalizar essas coleções. Quando estão descansando, o público pode vê-las em uma base de dados digital ou por via de exibicão de fac-símiles”, conta. Ana lembra que os acervos, em geral, são muito maiores do que aquilo que está exposto ao público. Parte das peças permanece guardada na reserva técnica para a realização de trabalhos de preservação, catalogação ou pesquisas.
Apesar de cruciais à vida dos museus, a arquiteta Fabiola Zambrano Figueroa, supervisora do serviço de conservação do Museu Paulista, explica que ainda são poucas as graduações em conservação e restauração de bens culturais disponíveis no Brasil. Hoje, cursos com esse perfil são oferecidos pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Universidade Federal de Pelotas (UFPel), no Rio Grande do Sul, e Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), além da pós-graduação em Museologia do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP.
Fechado desde 2013 para reformas, o prédio de arquitetura neoclássica inaugurado em 1892 do Museu Paulista abrigava coleções com peças que vão dos séculos XVI ao XXI, envolvendo três grandes núcleos – iconografia, documentos textuais e objetos, conforme Adilson José de Almeida, supervisor do serviço de objetos. Para realizar a obra, o acervo, composto por itens como moedas, selos, móveis, porcelanas, e brasão de barões, teve de ser transferido para edifícios nas proximidades, no bairro do Ipiranga. O processo foi planejado durante cinco anos. Até outubro, mais da metade do acervo já havia sido transferida. O principal desafio tem sido manter parte das peças disponíveis a pesquisadores e para a organização de mostras. “Uma pia batismal do século XVI proveniente da área em que o padre Anchieta atuava, peça icônica da coleção, está hoje exposta em uma mostra no palácio do governo estadual”, exemplifica Almeida. O projeto de reforma estima que o edifício será entregue em 2022. “A ideia é que ele seja usado para a realização de exposições e que o acervo fique armazenado em salas técnicas construídas ao redor”, detalha.
No caso do Museu Nacional, há mais de duas décadas discutia-se projeto similar, prevendo a retirada do acervo do palácio e sua realocação em edifícios técnicos. Apesar das perdas causadas pelo incêndio, o paleontólogo Sergio Alex Azevedo, coordenador do Laboratório de Processamento de Imagem Digital da instituição, afirma que cerca de 300 objetos de maior destaque foram, de certa forma, preservados. Itens como o meteorito Bendegó, o crânio de Luzia, múmias do setor de egiptologia e fósseis de dinossauros e pterossauros haviam sido escaneados e as imagens resultantes, digitalizadas, como parte de um projeto desenvolvido em parceria com o Departamento de Artes e Design da Pontifícia Universidade Católica do Rio (PUC-Rio). Com impressoras 3D, réplicas podem ser reconstituídas. “Talvez esse número chegue a 500 peças. Estamos fazendo um inventário do que temos conosco e do que pode estar com parceiros”, informa Azevedo, cujo laboratório perdeu 30 computadores de última geração. “Imprimimos muitas réplicas de peças que eram holótipos para o acervo de outros museus. Não imaginávamos que um dia teríamos de recorrer a isso para substituir os originais”, lamenta. Ele afirma ainda que alguns objetos que não foram escaneados podem eventualmente ser reproduzidos, se houver pelo menos 10 fotos de diferentes ângulos.
Armazenamento virtual
Ana, do MAC-USP, lembra que a digitalização dos acervos é importante para garantir sua sobrevivência, ainda que virtual, e também para possibilitar o acesso do público quando, por distintas razões, espaços de exibição não ficam abertos. Caso do Rijksmuseum, em Amsterdã, Holanda, que, antes de fechar para reformas, em 2003, digitalizou todo seu acervo. “Mas é preciso destacar que qualquer conteúdo que passa pelo processamento digital se torna um problema, pois ninguém sabe como preservar essas reproduções a longo prazo”, analisa Giselle Beiguelman, professora da FAU-USP. Para ela, é equivocada a ideia de que, ao digitalizar, necessariamente se ocupa menos espaço físico. Idealmente, para garantir a segurança de um conteúdo digitalizado é preciso armazená-lo em três lugares e dois formatos distintos. “Se continuarmos com o ritmo de obsolescência tecnológica atual, precisaremos de mais espaço físico do que o necessário para manter os objetos propriamente ditos, pois será preciso preservar os suportes e interfaces que dão leitura para as mídias atuais e também às novas tecnologias”, finaliza Giselle, referindo-se a dispositivos para leitura e armazenamento de dados, como discos rígidos, DVDs e cartões de memória, ou mesmo equipamentos que suportam padrões de codificação de informações armazenadas na nuvem.
Os 1.560 títulos distribuídos em 3.662 volumes que constituem o acervo de obras raras do Museu Nacional não foram atingidos pelo incêndio porque ficam guardados na Biblioteca Central da instituição, localizada no Horto Botânico. Criada em 1863, até o final da década de 1980 a biblioteca especializada em ciências antropológicas e naturais ocupava o terceiro andar do palácio. Precisou ser transferida para um prédio próprio – reivindicado desde os tempos da monarquia –, entre outros motivos, pelo peso da coleção de mais de 300 mil volumes à época.
“O setor de obras raras reúne aquilo que bibliófilos consideram precioso e único, com alto valor no mercado”, explica a bibliotecária documentarista Leandra Pereira de Oliveira, chefe da biblioteca do museu desde 2014. “Nosso acervo trata da história dos primórdios do país e contém relatos de naturalistas não apenas sobre o Brasil, mas também sobre países localizados em outros continentes.”
Entre as preciosidades ali mantidas estão Viagem filosófica: Expedição científica de Alexandre Rodrigues Ferreira nas capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá – 1783-1792 e uma edição de 1481, em latim, da obra Historia Naturale, do naturalista romano Plínio, O Velho (23 d.C – 79 d.C). Muitos desses textos estão disponíveis na página da biblioteca digital do museu e podem ser acessados via internet.