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Física

Abaixo de zero

Simulações em computador explicam propriedades elétricas do gelo

MIGUEL BOYAYANNão apenas o ócio é criativo. O medo também pode gerar boas idéias, ainda que de modo indireto. Em 2000 os físicos Adalberto Fazzio e Antonio José Roque da Silva participaram de uma maratona de conferências científicas que os obrigou a cruzar o globo pelos ares. Como não se sente bem com os pés longe do chão, Fazzio às vezes procurava se tranqüilizar com uma dose de uísque on the rocks antes de entrar no avião. Enquanto aguardavam em uma das salas de embarque, o tilintar das pedras de gelo no copo despertou uma dúvida: “Do ponto de vista físico, o que sabemos sobre o gelo?”, perguntou Fazzio.

Seis anos e alguns aeroportos mais tarde, a dupla de físicos da Universidade de São Paulo (USP) responde à pergunta com propriedade. E, em parceria com colaboradores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o físico paulista Alex Antonelli e o físico holandês Maurice de Koning, apresenta em dois artigos científicos suas primeiras contribuições para ampliar o conhecimento sobre as propriedades microscópicas do gelo, um dos responsáveis por manter o clima do planeta ameno e permitir a existência da vida.

Publicado em fevereiro de 2006 na Physical Review Letters, o primeiro trabalho ajuda a compreender melhor propriedades elétricas do gelo identificadas há cerca de 70 anos que ainda não haviam sido bem explicadas. Na década de 1930, estudos químicos e físicos mostraram que o gelo era bem mais complexo do que aparentava, embora fosse formado por uma das moléculas mais simples da natureza – a água, resultado da união de dois átomos de hidrogênio com um de oxigênio (H2O), em uma estrutura espacial que lembra a letra V.

À época na Universidade de Cambridge, Inglaterra, os físicos John Bernal e Ralph Fowler constataram em 1933 que o gelo era, na realidade, um cristal. Abaixo de zero grau Celsius as moléculas de água se unem em grupos de seis, formando hexágonos que se repetem sempre à mesma distância e com a mesma orientação. Usando uma técnica que permite identificar a posição de cada átomo no interior de uma molécula, notaram que nessa estrutura cristalina existia um padrão: há um átomo de hidrogênio entre dois de oxigênio, enquanto um átomo de oxigênio sempre intercala dois de hidrogênio de moléculas distintas. Uma força bastante intensa – a ligação de hidrogênio – mantém as moléculas de água firmemente associadas umas às outras, impedindo-as de se movimentarem livremente como na água líquida.

Um pouco antes dos experimentos de Cambridge, o físico holandês Peter Debye encontrou um efeito inesperado ao submeter um pedaço de gelo a um campo elétrico. As moléculas de água, com cargas negativas concentradas ao redor do átomo de oxigênio e positivas próximas aos de hidrogênio, alinhavam-se com o campo elétrico. Seria natural que isso ocorresse na água, porque as moléculas estão mais livres. Mas não no gelo, em que se encontram presas nos anéis hexagonais por ligações de hidrogênio. A explicação só viria mais tarde.

Como conhecia a dificuldade de romper ligações de hidrogênio em um cristal perfeito, em que as moléculas se ajustam umas às outras, o físico dinamarquês Niels Bjerrum propôs em 1952 que o gelo deveria apresentar falhas que permitiriam às moléculas de água se orientarem segundo o campo elétrico. Formado ao acaso ou pelo acréscimo de ácidos ao gelo, o defeito molecular que leva o nome de Bjerrum não passa de uma troca de posição de um átomo de hidrogênio no anel hexagonal. Essa mudança sutil cria, a um só tempo, duas ligações instáveis: uma entre dois átomos de hidrogênio de moléculas distintas, que se repelem por terem carga elétrica positiva; e outra entre dois átomos de oxigênio, de carga negativa.

Cristal imperfeito
A conseqüência é um efeito em cascata. “Depois que surgem”, explica Silva, “esses defeitos se deslocam como se caminhassem pelo gelo e facilitam a rotação de outras moléculas de água”. Por essa razão, quanto maior o número de defeitos no gelo mais facilmente suas moléculas se alinham ao campo elétrico. Esses defeitos contribuem ainda para que as moléculas se organizem de outras dez maneiras, mais estáveis que nos hexágonos, à medida que se reduz a temperatura ou aumenta a pressão. Outra conseqüência é o transporte de partículas eletricamente carregadas: no caso do gelo, íons de hidrogênio, de carga positiva, diferentemente do que ocorre nos fios de cobre, em que são as partículas de carga negativa (elétrons) que se deslocam.

Embora o defeito Bjerrum seja bem conhecido, faltavam medições precisas da energia necessária para gerá-lo e permitir que se propague de uma molécula para outra. Com o auxílio de programas de computador que simulam o comportamento das partículas atômicas, De Koning obteve uma estimativa fiel desses valores. Ele criou uma rede cristalina em que os anéis hexagonais se repetiam 16 vezes e girou artificialmente a posição de um átomo de hidrogênio, criando um defeito de Bjerrum. Em seguida, aguardou o resultado.

A energia necessária para torcer uma ligação de hidrogênio e criar o defeito de Bjerrum é até 73% maior do que se estimava. Já a energia para que essa torção passe de uma molécula a outra chega a ser 63% mais baixa. “Esses defeitos deveriam se deslocar mais facilmente do que de fato caminham”, afirma Silva. “Essa diferença de energia sugere que haja armadilhas que aprisionam os defeitos e os impedem de prosseguir”, explica.

Em outro experimento virtual, De Koning decidiu averiguar com que freqüência surgem no gelo dois outros tipos de defeitos, comuns em cristais de silício. São os chamados defeitos pontuais: a falta ou o excesso de um elemento na rede cristalina – no caso do gelo, uma molécula de água. Testes feitos em 1982 no Japão sugeriam que, dependendo da temperatura, haveria mais defeitos pontuais de um tipo ou de outro.

De Koning, Antonelli, Silva e Fazzio constataram que quanto mais próximo do ponto de fusão do gelo (zero grau Celsius) maior a quantidade de moléculas de água intrusas na rede hexagonal, segundo artigo publicado em outubro na Physical Review Letters. Já abaixo de 43 graus Celsius negativos o defeito mais comum passa a ser a falta de uma molécula de água. “Nenhum desses defeitos altera a orientação das moléculas de água no gelo”, explica De Koning, “mas se acredita que eles alterem suas propriedades elétricas”. Ainda que de fato ocorram, não impediriam que se acrescentem ao uísque algumas pedras de gelo.

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