EDUARDO CESARHá não muito tempo, a menção da Inqui-sição no título de um livro, mesmo acadêmico, remetia inapelavelmente às fogueiras ou em todo caso à perseguição de hereges e à repressão de minorias. A historiografia brasileira, a partir dos anos 1960, produziu então textos importantes para um melhor entendimento das mentalidades e dos matizes da religiosidade dos moradores da América portuguesa. Há cerca de duas décadas começaram a surgir estudos que, impulsionados por esses primeiros, se interessaram cada vez mais pela estrutura que permitiu com que essas perseguições ocorressem. De lá para cá, o conhecimento das estruturas e do funcionamento da Inquisição portuguesa aprofundou-se, graças à influência da produção italiana e portuguesa. Pelo que toca esta última, foram fundamentais os trabalhos de José Pedro Paiva e de Fernanda Olival sobre as lógicas institucionais e sociais do Antigo Regime português e sobre a influência do Santo Ofício sobre a sociedade.
O presente livro de Aldair Carlos Rodrigues, Igreja e Inquisição no Brasil, origina-se dessas várias correntes historiográficas, mas oferece um conhecimento mais detalhado e profundo de algumas das questões tratadas pela produção anterior sobre a Inquisição (com a qual poderia sem dúvida ter dialogado um pouco mais do que fez). A obra é, assim, uma grande e durável contribuição para a área, além de explorar e esclarecer pontos importantes e inéditos da história das instituições religiosas do Brasil Colônia.
Quem eram os agentes da Inquisição no Brasil? Quais as ligações entre Inquisição e clero local? Qual o seu impacto social? Defendido como tese de doutorado na Universidade de São Paulo (USP) em 2012 e agraciado com o Prêmio Capes de História e com o Grande Prêmio Capes de Tese Darcy Ribeiro, ambos em 2013, o trabalho de Rodrigues busca entender a Inquisição a partir de uma ótica relacional. Ou seja, não se pode responder às questões acima sem inserir o Santo Ofício de modo pleno no contexto eclesiástico e social locais.
Partindo desse postulado metodológico, foi-lhe necessário conhecer em detalhe o sistema de provisões e as carreiras do clero secular da América portuguesa, usando como base principal de análise o centro-sul da colônia. A partir de um conhecimento profundo da documentação, Rodrigues mostra como esses cargos entravam claramente na economia da mercê (a retribuição por serviços por meio de honras e/ou ofícios), tanto régia quanto episcopal, e como eram essenciais para a reprodução das elites locais, que rapidamente os monopolizaram, servindo também às famílias em busca de ascensão social. Isso não impediu que a Coroa continuamente afirmasse, mais ainda no final do período estudado, que o duplo padroado sob o qual o clero do Brasil existia (o régio e o da Ordem de Cristo) dava-lhe primazia na escolha e nomeação dos benefícios locais, podendo assim passar por cima das escolhas dos bispos. Já as nomeações ao cargo de comissário inquisitorial eram um elemento a mais de distinção para essa elite, confirmando sua limpeza de sangue. Como afirma Rodrigues, tanto a Igreja quanto a Inquisição dispunham, desse modo, “de instrumentos eficazes de intervenção no campo social, gerindo recursos simbólicos que exerciam forte impacto na estruturação e reiteração das hierarquias sociais”. Apesar disso, a intervenção de Lisboa na escolha dos cônegos, dignidades e outros beneficiados foi pequena.
No que concerne ao funcionamento e aos meios de ação da Inquisição, uma das conclusões mais importantes do trabalho é de que a formação da rede de comissários não significou uma autonomia do Santo Ofício em relação às estruturas da Igreja. Muito pelo contrário, fica claro que os inquisidores se corresponderam preferencialmente com um pequeno grupo de comissários que não por acaso faziam parte da cúspide da hierarquia eclesiástica local. Não se tratava, como lembra Rodrigues, de uma exclusividade do caso brasileiro, mas, tendo em vista a falta de um tribunal local da Inquisição, essas conexões sem dúvida hipertrofiavam-se.
Fica ao leitor, com esse importante trabalho, a descoberta dos detalhes dessas carreiras epíscopo-inquisitoriais e dos meios de ação do tribunal do Santo Ofício no Brasil.
Bruno Feitler é professor de História Moderna na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Republicar