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Medicina

Ações simultâneas

José Rodrigues Coura estuda – e combate – o mal de Chagas enquanto se dedica a espalhar especialistas em infectologia e parasitologia por todo o país

LÉO RAMOSO chefe do Laboratório de Doenças Parasitárias do Instituto Oswaldo Cruz (IOC), José Rodrigues Coura, com mais de 250 artigos científicos e oito livros publicados, abre um pequeno sorriso quando perguntado sobre seus principais trabalhos de pesquisa. “O que eu fiz de melhor foi formar gente competente. Espalhei profissionais em doenças infectocontagiosas do Rio Grande do Sul ao Amazonas”, diz. A julgar pelo que dizem os que o conhecem de perto, esta é apenas meia verdade. Desde o final do curso na Faculdade de Medicina da Universidade do Brasil (atual Universidade Federal do Rio de Janeiro, a UFRJ), Coura atendeu pacientes em hospitais e consultório, foi professor de instituições de ensino superior, criou cursos de pós-graduação, geriu o IOC e fez pesquisa básica. O que, aliás, segue fazendo diariamente, aos 86 anos.

A carreira simultânea de médico, professor, pesquisador e gestor não era vislumbrada por Coura quando estudava em Taperoá, na Paraíba, onde nasceu, ou como interno no colégio da cidade vizinha de Patos. “Quando acabei o ginásio [ensino fundamental], voltei para Taperoá e me dispus a administrar a improdutiva fazenda da família por três anos”, diz ele, o quinto de 10 filhos. “Meus esforços deram em nada e fui para o Rio de Janeiro morar com uma irmã.” Lá conseguiu um emprego de contínuo no escritório da Standard Oil, atual Esso. Seis meses depois Coura largou o emprego e, aos 20 anos, foi fazer o serviço militar, que naquela época convocava os jovens com essa idade. Aproveitou e prestou concurso para trabalhar como auxiliar de escritório na Escola do Estado-Maior do Exército. “Depois que acabei o serviço militar continuei no escritório durante o dia e fiz o curso científico [atual ensino médio] à noite.” Por coincidência, o trabalho ficava ao lado da faculdade de medicina, no bairro da Urca, e o jovem paraibano achou que valia a pena tentar fazer o curso. “Em parte, era prático, por ser muito perto; mas talvez o fato de uma irmã ter morrido em consequência de meningite meningocócica tenha me influenciado”, analisa ele hoje, mais de 60 anos depois.

Coura começou o curso com 25 anos e terminou com 30 anos, sempre trabalhando simultaneamente como funcionário público do Exército. “Hoje sinto que foi muito bom fazer a faculdade de medicina um pouco mais tarde que o convencional, porque eu já tinha alguma experiência de vida e conseguia ver as coisas com alguma maturidade”, diz. Após o curso, o jovem médico tirou uma licença-prêmio de seis meses e fez um curso de especialização na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo com Luiz Décourt, um dos pioneiros da cirurgia cardíaca no Brasil, e com João e Bernardino Tranchesi, assistentes dele. Voltou para o Rio conhecendo bem clínica médica e cardiologia e prestou concurso para médico do Exército.

Crianças na frente de rolos de piaçaba prontos para ser embarcados para Barcelos e Manaus, no mesmo período

Arquivo Pessoal Crianças na frente de rolos de piaçaba prontos para ser embarcados para Barcelos e Manaus, na década de 1990Arquivo Pessoal

Em 1960, aos 33 anos, ocorreu sua entrada para o mundo da ciência. Coura ainda trabalhava no Exército quando o professor José Rodrigues da Silva o convidou para ser instrutor de ensino na cadeira de clínica de doenças tropicais e infecciosas do Hospital São Francisco de Assis da Faculdade de Medicina. Na rotina de atendimento e ensino viu grande número de pacientes com doença de Chagas e miocardites provocadas por varíola e decidiu seguir na cardiologia. Para conseguir se dedicar integralmente à carreira acadêmica havia uma dificuldade: o salário do Exército era quase três vezes maior do que o da Universidade do Brasil. “O Rodrigues me ofereceu espaço na clínica dele e comecei a trabalhar lá também, para ganhar mais. Ficava na universidade até as 17 horas, ia para a clínica e saía às 21 horas.” Com isso, deu baixa como capitão médico em 1962.

Seu primeiro artigo científico foi escrito em 1961. Era um trabalho de revisão sobre o Furacin, novo medicamento que havia sido lançado para ajudar pacientes chagásicos. “Preparei o texto e entreguei para o Rodrigues. Algum tempo depois ele me disse que estava muito bom, devolveu dentro de um envelope e foi embora.” Entretanto, o texto estava cheio de marcações vermelhas e trazia uma recomendação: “Leia os originais de Carlos Chagas para aprender a escrever”. “Foi uma lição muito útil. Os artigos de Chagas são de fato muito bem escritos”, diz o pesquisador.

Em 1963, ele ganhou uma bolsa do Conselho Britânico para a Universidade de Londres e fez cursos de aperfeiçoamento no Hammersmith e National Heart Hospitals e frequentou a London School of Tropical Medicine and Hygiene. “Usei esse período de estudos para embasar minha tese de livre-docência Contribuição ao estudo da doença de Chagas no estado da Guanabara apresentada em 1965”, conta. No ano seguinte prestou concurso para professor titular na Universidade Federal Fluminense (UFF) e, uma vez aprovado, organizou o Serviço de Doenças Infecciosas no Hospital Universitário Antônio Pedro e reformulou o currículo da disciplina. Continuou também trabalhando parcialmente na Universidade do Brasil – que já tinha virado UFRJ – e estudando, além de Chagas, esquistossomose, malária e doenças infecciosas e parasitárias em geral.

Coura atendendo pacientes numa choupana em piaçabal da Amazônia, na década de 1990

Arquivo Pessoal Coura atendendo pacientes numa choupana em piaçabal da
Amazônia, na década de 1990Arquivo Pessoal

Com base em suas pesquisas sobre Chagas, Coura criou o conceito que chamou de complexo cruzi, em 1966. Ele percebeu que os modelos experimentais da infecção chagásica nunca reproduzem de modo rigoroso a infecção e a doença humana, da mesma forma como ela ocorre na natureza. Isso acontece porque são muitas as diferenças entre as espécies de hospedeiros e seus mecanismos de defesa e a relação com as diversas cepas do Trypanosoma cruzi, o parasita causador da doença, além de a moléstia variar de região para região. De 1984 a 1996 Coura e sua equipe de pesquisadores confirmaram essa ideia em trabalhos de campo realizados em Minas Gerais, Paraíba, Piauí e Amazonas.

O pesquisador deixou a UFF para ser professor adjunto na UFRJ, em 1970. No ano seguinte assumiu como professor titular a disciplina de doenças infecciosas e parasitárias, substituindo o mestre José Rodrigues, morto em 1968. Na volta a sua casa de origem, Coura organizou o curso de pós-graduação da disciplina, o primeiro da área médica credenciado no Brasil pelo Conselho Federal de Educação. Também organizou o Departamento de Medicina Preventiva da faculdade – modelo para vários outros no país – e instalou o atual Serviço de Doenças Infecciosas no Hospital Universitário Clementino Fraga Filho.

Nos anos 1970 começou outra fase importante de sua vida profissional. Ele foi convidado pelo então ministro da Saúde, Mário Lemos, a fazer um diagnóstico da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que não se desenvolvia. Coura se licenciou por três meses da UFRJ e visitou todas as unidades da fundação. Sua conclusão na época: a Fiocruz era uma ficção. “Não havia carreira profissional nem orçamento, os salários eram miseráveis e poucos trabalhavam”, lembra Coura. Ele apresentou um plano de recuperação, mas não aceitou implementá-lo. “Eu estava feliz na UFRJ.”

Coura em maio de 2014 trabalhando em seu laboratório: atividade intensa aos 86 anos

Rodrigo Méxas Coura em maio de 2014 trabalhando em seu laboratório:
atividade intensa aos 86 anosRodrigo Méxas

Em 1979 houve novo convite para assumir os cargos de vice-presidente de Pesquisa da Fiocruz e de diretor do IOC, a mais antiga instituição que compõe a fundação. Desta vez Coura aceitou, mas p ercebeu que as condições continuavam ruins. “Faltavam boas cabeças para liderar as pesquisas e ensinar os mais jovens”, diz. Ele conseguiu levar para o IOC cientistas que estavam se aposentando ou viviam no exterior, em parte expulsos pela ditadura militar. Da Venezuela vieram Leônidas e Maria Leane; de Genebra, Luís Rey; da Inglaterra, Hélio e Peggy Pereira; dos Estados Unidos, Henrique e Jane Lenzi. Zigman Brener se aposentou na UFMG e foi para o Centro René Rachou, a Fiocruz de Minas; Zilton e Sônia Andrade saíram da UFBA e foram para a unidade do IOC de Salvador; Elói Garcia e Samuel Goldenberg também aceitaram o desafio. Além dos novos recursos humanos, foram criados os cursos de pós-graduação em biologia parasitária e medicina tropical e o curso técnico de pesquisa para jovens.

“Na primeira gestão de Coura como diretor, o IOC voltou a ter uma base de profissionais técnico-científicos importante e competente”, diz o atual diretor do instituto, Wilson Savino. Na segunda gestão, ele mudou a estratégia de distribuição de recursos na instituição, que passou a ser definida por um mapa de produtividade interna. “Ele tinha uma visão de gestão que levou o IOC a um novo patamar de qualidade.” Paulo Gadelha, presidente da Fiocruz, chama a atenção para a formação de diferentes gerações de pesquisadores da fundação e de outras instituições. “Ele sempre foi uma referência forte na área de biomedicina e é também uma referência para o ensino”, diz.

Dois exemplos ajudam a entender a extensão da contribuição do veterano médico e pesquisador. Em 1991, ele estava com estudantes em Barcelos, no Amazonas, e começou a investigar a ocorrência do inseto barbeiro, hospedeiro do parasita T. cruzi, na piaçaba colhida pela população local. “Fiz os testes e deu contaminação em alto grau”, diz Coura. “Os piaçabeiros invadem a área dos animais para colher a planta, comem e espantam os animais que são a fonte de alimento do barbeiro e este, sem opção, ataca o homem.” É o ciclo silvestre da doença, sobre a qual seu grupo publicou diversos artigos a partir de 1994. Coura, como médico, também ajudava a tratar os piaçabeiros e suas famílias. “Ele é, seguramente, um dos dois especialistas que mais entendem o mal de Chagas no Brasil, ao lado de João Carlos Pinto Dias, da Fiocruz de Minas”, testemunha Savino.

Barbeiro infectado com T. cruzi sobre fibras de piaçaba em comunidade da Amazônia: com seu hábitat invadido, sem alimento, inseto ataca seres humanos

Arquivo Pessoal Barbeiro infectado com T. cruzi sobre fibras de piaçaba em comunidade da Amazônia: com seu hábitat invadido, sem alimento, inseto ataca seres humanosArquivo Pessoal

Outro exemplo vem de Mato Grosso do Sul, quando ele realizou pesquisas no pantanal com um grupo que incluía Rivaldo Venâncio, ex-aluno na pós-graduação do IOC. “Ele percebeu de imediato a carência de ensino e pesquisa no estado e se ofereceu para criar dois cursos de mestrado: de biologia parasitária e de medicina tropical”, diz Venâncio, hoje professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e responsável técnico pelo escritório da Fiocruz na região. Coura e outros professores do IOC estiveram em Campo Grande e de 1997 a 2001 formaram 24 mestres nessa área – destes, 18 se tornaram doutores. A UFMS criou seus próprios cursos de pós-graduação e o perfil do estado na área mudou, com profissionais ensinando em outras universidades e trabalhando em serviços públicos municipais de saúde. “Ele fez isso aqui, na Paraíba, no Piauí, no Amazonas…”, avisa Venâncio.

Daí o sorriso de Coura, pai de um filho e duas filhas, quando perguntado sobre suas contribuições em quase 60 anos de carreira: “Pelas minhas contas, formei mais de 200 profissionais competentes. Não é motivo de orgulho?”.

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