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Acusação premiada

Investidor cria fundo de US$ 1 milhão para dar suporte jurídico a quem denuncia má conduta

Foi criado nos Estados Unidos o Fundo de Integridade Científica, que pretende investir US$ 1 milhão nos próximos quatro anos para ajudar indivíduos que denunciam casos de má conduta científica a arcarem com os custos de sua defesa em processos por calúnia ou difamação movidos pelos pesquisadores acusados. A idealizadora da iniciativa é a engenheira e cientista de dados Yun-Fang Juan, investidora de empresas tecnológicas do Vale do Silício, nos Estados Unidos, a exemplo da rede social Reddit e da plataforma de trabalho flexível Envoy.

Poderão concorrer aos recursos pesquisadores que levantaram de boa-fé suspeitas baseadas em evidências contra colegas ou superiores hierárquicos e, em decorrência disso, passaram a enfrentar ameaças legais concretas. Também poderão ser apoiados estudantes de jornalismo que fazem a cobertura de casos de fraude acadêmica dentro de universidades e ajudam a disseminar as informações para outros alunos e a comunidade acadêmica. O fundo fornecerá até US$ 25 mil a cada beneficiado para auxiliá-lo a conseguir aconselhamento jurídico ou apoio em estágios iniciais da ação legal. Caso os custos aumentem, Juan diz que o fundo poderá liderar campanhas de crowdfunding para levantar mais recursos.

Em seu perfil na rede LinkedIn, a investidora explicou por que decidiu criar o fundo. “Tal como a maioria das pessoas, estou profundamente preocupada com o fato de um número não trivial de cientistas no topo de carreira estarem envolvidos na manipulação de dados e imagens. Suas descobertas baseadas em dados e imagens adulterados não foram retratadas até que alguém os denunciasse”, escreveu, mencionando casos como a renúncia do reitor da Universidade Stanford, o neurocientista Marc Tessier-Lavigne, por não ter se empenhado em remover dados falsificados de artigos de seu grupo de pesquisa; a retratação de seis artigos e a correção de outros 31 assinados por cientistas do Dana Faber Cancer Institute, por suspeita de manipulação de dados; e a retratação de artigos de Gregg Semenza, vencedor do Nobel de Medicina ou Fisiologia de 2019, por adulteração de imagens.

“Há muito pouco incentivo para os denunciantes se manifestarem porque criticar o trabalho de outros cientistas não promove a carreira de ninguém”, completou. Segundo Juan, o caso que mais a impressionou foi o de Francesca Gino, da Escola de Negócios de Harvard, uma especialista em estudos sobre honestidade. Quatro artigos de sua autoria publicados entre 2012 e 2020 foram apontados como problemáticos em postagens feitas em 2023 no blog Data Colada, mantido por três pesquisadores: o especialista em marketing Leif Nelson, da Universidade da Califórnia, Berkeley; o estatístico Joe Simmons, da Universidade da Pensilvânia; e Uri Simonsohn, cientista comportamental da Universidade Ramon Llull, em Barcelona, Espanha. Em 2021, o trio de blogueiros levou as suspeitas de manipulação de dados a Harvard, que abriu uma investigação. Um dos artigos foi retratado prontamente, mas os outros três só foram cancelados em 2023, depois que as suspeitas se tornaram públicas no Data Colada.

Em resposta, Francesca Gino processou os três blogueiros e o diretor da Escola de Negócios de Harvard. Pede US$ 25 milhões em indenização por danos a sua reputação e perda de oportunidades na carreira. Os responsáveis pelo Data Colada estimam que a defesa custará cerca de US$ 600 mil e conseguiram arrecadar pouco mais da metade dessa quantia em uma campanha de crowdfunding. “O caso Data Colada é um exemplo do que os denunciantes tiveram que passar para trazer a verdade à luz. Basicamente, tiveram ganhos pessoais iguais a zero, toneladas de sofrimento mental e possíveis perdas financeiras”, afirmou Juan. “Apesar dos custos pessoais, indivíduos como os responsáveis pelo Data Colada optaram por falar porque respeitam a ciência e querem fazer a coisa certa.” O caso ainda tramita na Justiça, mas, em março, foram divulgados os resultados de uma investigação feita pela Escola de Negócios de Harvard. A conclusão é de que Gino “cometeu má conduta de pesquisa intencionalmente, conscientemente ou de forma imprudente”.

Especialistas em integridade científica elogiaram a criação do fundo. Brian Nosek, psicólogo da Universidade da Virgínia que faz estudos sobre reprodutibilidade de pesquisa, disse à revista Science que uma iniciativa dessa natureza já deveria ter surgido há mais tempo. Ele considera US$ 1 milhão um bom começo, embora destaque que essa dotação pode ser insuficiente, dada a extensão do problema. Elisabeth Bik, especialista em manipulação de imagens científicas que integra o conselho do novo fundo, destacou a importância da iniciativa. “Precisamos ser capazes de fazer perguntas e levantar preocupações sobre o trabalho de outros pesquisadores, sem o risco de sermos processados ou de irmos à falência porque temos que contratar um advogado”, disse.

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