As águas represadas artificialmente, tanto nas hidrelétricas como nos reservatórios para abastecimento público, atingem hoje cerca de 7.500 quilômetros cúbicos no mundo, dos quais mil concentram-se em território brasileiro. Tamanho volume necessita de acompanhamento constante, mas faltava um instrumento que pudesse ser aplicado a reservatórios com distintas vocações econômicas e sociais, na avaliação do pesquisador José Galizia Tundisi, professor aposentado da Universidade de São Paulo (USP) e orientador de pós-graduação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e da USP.
Essa constatação foi o ponto de partida para o desenvolvimento de um sistema de gerenciamento, que já está sendo utilizado em barragens e represas despertou o interesse de entidades internacionais. “O sistema foi concebido para fazer um gerenciamento integrado, porque concilia os usos múltiplos de reservatórios, como geração de energia elétrica, irrigação, navegação, pesca, cultivo de peixes, turismo e recreação”, diz Tundisi. Além disso, ele também prevê cenários que podem ocorrer a longo prazo e trabalha com toda a bacia hidrográfica, e não apenas com a represa. “Nossa proposta foi fazer um módulo que tivesse todas essas funções e pudesse ser adaptado às necessidades de cada cliente”, explica o pesquisador.
O estudo teve início em junho de 2000, no Instituto Internacional de Ecologia (IIE), empresa privada que reúne pesquisa básica e aplicada, com o apoio do Programa de Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE), financiado pela FAPESP. Dois meses depois, o IIE, que tem Tundisi como um dos sócios, fechava o primeiro contrato, com a empresa Investco, para gerenciamento da bacia hidrográfica e da represa formada pela usina hidrelétrica Luiz Eduardo Magalhães, também conhecida como Lajeado, no rio Tocantins, no valor de R$ 1,6 milhão, por um período de dois anos. Mesmo sem estar finalizado, o projeto começou a atrair parcerias internacionais.
Em dezembro do ano passado, a Army Corps of Engineers (a maior instituição de manejo de represas do mundo), com sede nos Estados Unidos, assinou um convênio de cooperação com o instituto. “Ele prevê projetos conjuntos para gerenciamento, que serão aplicados no mundo inteiro, a partir do nosso módulo”, conta o pesquisador, ex-presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). A instituição tomou conhecimento do sistema de gerenciamento integrado durante uma palestra de Tundisi, apresentada no dia 13 de agosto de 2002, na República Checa, presenciada pelo representante da Army Corps, o engenheiro Robert Kennedy. Tão logo retornou aos Estados Unidos, telefonou ao IIE propondo o trabalho conjunto entre as duas instituições.
Um outro convênio, no valor de 49 mil euros (cerca de R$ 180 mil), destinado a gerenciar as bacias do Alto Tietê, foi assinado com a Comunidade Européia, também no final do ano passado, que está interessada em criar módulos de gerenciamento para a América do Sul. “Esse interesse acadêmico, inicialmente, procura integrar a pesquisa brasileira, francesa e boliviana em projetos conjuntos, utilizando estudos de casos no Brasil e na Bolívia”, explica o pesquisador. A professora Raphaèle Ducrot é a responsável pelo projeto, que conta com o apoio do Centro de Cooperação Internacional de Pesquisa Agronômica para o Desenvolvimento (Cirad, da sigla em francês).
Esse estudo tem ainda a participação da USP e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Outro contrato, com a Hidroconsult, resultou em participação estratégica em um projeto desenvolvido para a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), com sugestões para proteger os mananciais e gerenciar a água da rede de abastecimento. O IIE também presta consultoria para a Sabesp em um projeto de transposição de águas da represa Billings para a Guarapiranga. Outras empresas, responsáveis pela administração de hidrelétricas, como a AES – a atual controladora de parte da Companhia Energética de São Paulo (Cesp) -, também já demonstraram interesse em desenvolver módulos de gerenciamento.
Mapa do solo
O sistema é composto por um software com modelos de medida hidrodinâmica (em que entram todos os elementos de circulação de uma represa), de transporte de sedimentos e de qualidade de água. Na represa de Lajeado, geólogos fizeram um estudo do solo considerando as diferentes aptidões para as diversas atividades econômicas relacionadas à barragem. “Lá nós sabemos qual o solo fora da represa é mais ou menos sensível à irrigação e onde vai haver descarga de sedimentos do reservatório, local impróprio para o cultivo”, conta Tundisi. Todas essas informações são colocadas em um módulo integrador, que permite prever cenários a longo prazo. Um deles avalia, por exemplo, o que acontecerá com a represa se a população do Estado de Tocantins chegar a 10 milhões e o esgoto não for tratado adequadamente.
Um dos subprodutos do projeto é o Sistema de Monitoramento de Água em Tempo Real (Smart), que resultou no depósito de uma patente no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), financiada pelo Núcleo de Patenteamento e Licenciamento de Tecnologia (Nuplitec) da FAPESP. O Smart é uma estação instalada em uma plataforma que fica ancorada na represa, transmitindo dados continuamente, via rádio, para o computador na barragem, permitindo aos operadores conhecer a qualidade da água.
Esses dados são retransmitidos via Internet para o instituto. A inovadora concepção do Smart tem como base uma sonda móvel automatizada, desenvolvida por um bolsista do projeto, o biólogo João Durval Arantes Júnior. A sonda começa a fazer a leitura na superfície e desce até 28 metros de profundidade, fazendo leituras a cada 25 centímetros. Depois de uma pausa de 15 minutos, ela faz o caminho inverso, do fundo para a superfície. Pára novamente por mais meia hora e recomeça o ritual, que possibilita saber, em tempo real, 11 parâmetros, como temperatura da água, pH, oxigênio dissolvido, condutividade, turbidez, potencial de óxido-redução, nutrientes (nitrato, nitrito, amônia e cloreto) e clorofila.
“A idéia de desenvolver o sistema com a sonda móvel surgiu em decorrência da necessidade de monitorar os parâmetros da água de diversas profundidades”, conta Durval Arantes. Inicialmente, a proposta era aperfeiçoar um sistema de monitoramento desenvolvido pelo pesquisador Le Coq Hung, do Centro Nacional de Ciência e Tecnologia do Vietnã. Esse sistema, que foi mostrado pelo vietnamita aqui no Brasil, coleta as informações a apenas meio metro de profundidade, em um barco. Chegou-se a cogitar a possibilidade de um desenvolvimento conjunto para as necessidades brasileiras, mas Durval Arantes teve a idéia de movimentar a sonda na coluna da água, para superar as limitações dos equipamentos existentes no mercado.
Como a sonda é um componente caro, as empresas colocam uma unidade fixa a cada 5 metros, até atingir os 15 metros de profundidade. Em cima da plataforma foi colocada uma estação climatológica, com sensores que medem a direção do vento, a umidade relativa do ar e a temperatura. “Muitas sondas utilizam dados climatológicos que estão fora do local. A nossa permite fazer uma correlação entre, por exemplo, a temperatura do ar e a da água, a velocidade e a direção do vento e os efeitos da movimentação da coluna da água”, explica Tundisi.
Segundo o pesquisador, essa associação dá uma visão vertical completa e dinâmica do sistema. Um software dá as coordenadas para a sonda fazer a pesquisa programada e outro interpreta os dados. Com essas informações, associadas às que estarão disponíveis em outro programa produzido especialmente para cada reservatório, será possível adotar soluções que dizem respeito a toda a bacia hidrográfica.
“Pretendemos com esse projeto desenvolver um processo de gerenciamento que integre todos esses componentes, produza um software e, a partir daí, fazer o treinamento dos gerentes em três níveis: da hidrelétrica, da cidade e do Estado, para que eles possam, com os dados disponíveis, tomar decisões”, relata Tundisi. Ele cita como exemplo um acidente envolvendo um caminhão que transporta ácido sulfúrico. Se a carga cair em um rio, os sensores vão registrar a mudança química, e o operador poderá imediatamente suspender o bombeamento da água.
Custos altos
O módulo integrador é fruto de um desenvolvimento conjunto entre o Instituto de Ecologia e a Innova Tecnology e Information, de São Paulo. Outras empresas também participam desse projeto: a Hidromares, composta por pesquisadores do Instituto Oceanográfico, desenvolveu toda a parte referente à hidrodinâmica. A Investco construiu uma das plataformas em Lajeado, e outra está sendo fabricada por uma empresa de São Carlos, para ser colocada na represa do Broa, em Itirapina (SP), com um protótipo do Smart. Participam do projeto, como assessores e consultores, pesquisadores do Brasil, Dinamarca, Espanha e Suécia, que periodicamente lêem os relatórios ou vêm para país.
Tundisi, um profundo conhecedor de águas doces, com mais de 30 anos de pesquisas na área, diz que, quanto melhor a qualidade da água, maior é a capacidade da sociedade local de usar o sistema para usos múltiplos. E lembra que a preservação da qualidade das águas é uma tarefa que exige investimentos consideráveis. Os custos para tratamento de água deteriorada são quase 13 vezes maiores em comparação com os de qualidade preservada. O tratamento de 1.000 metros cúbicos de água suja fica em US$ 25,00; e da limpa, US$ 2,00. Os gastos para conservar as turbinas de hidrelétricas também são 20% maiores quando a água está com excesso de algas e sujeira. “O grande objetivo desse projeto para as regiões em que está sendo aplicado é possibilitar, por meio do manejo do sistema do gerenciamento da qualidade da água e da otimização dos usos múltiplos, abrir novas possibilidades de desenvolvimento econômico”, contabiliza Tundisi.
Em tempo real
O embrião do projeto foi um estudo feito para o rio Corumbataí, que abastece a cidade de Piracicaba. “A idéia era colocar um conjunto de sensores no rio, antes da estação de tratamento”, conta Tundisi. A operação de uma estação de tratamento de água é feita “no escuro”, segundo o pesquisador. “O operador tem de desenhar o tratamento no momento em que a água chega à estação”, relata. Se ele puder receber as informações em tempo real, poderá tomar decisões mais adequadas às circunstâncias.
Segundo Tundisi, o IIE foi concebido como uma empresa destinada a trabalhar com pesquisa clássica, tradicional, na área de limnologia (estudo das águas doces e de seus organismos) e ao mesmo tempo servir como consultoria. “A proposta é transformar o conhecimento existente em inovação e em produto, mas ele não deixa de ser um instituto de pesquisa”, diz o pesquisador. Além do projeto PIPE, o instituto trabalha em um projeto do Programa Biota, também financiado pela FAPESP. A principal finalidade desse projeto ligado ao Biota é verificar qual a relação entre qualidade da água, poluição e diversidade de zooplâncton no Estado de São Paulo. Esses pequenos animais, que vivem em suspensão na água e fazem parte do elo da cadeia alimentar, podem indicar a concentração de substâncias tóxicas no ambiente.
A participação do IIE no programa envolveu o estudo de 220 represas, nas 22 bacias paulistas, com o objetivo de ter um mapa do Estado do ponto de vista da biodiversidade de zooplâncton, especialidade da pesquisadora Takako Matsumura, casada há 30 anos com Tundisi e sócia no empreendimento. “Com esse mapa, temos condições de saber hoje quais as áreas onde há maior biodiversidade, de que forma foram afetadas ou não pela poluição”, relata Takako. Essas informações poderão ser utilizadas no projeto do PIPE, dentro da concepção do instituto de transferir os conhecimentos produzidos na ciência básica a um produto, que, ao que tudo indica, tem um grande campo de aplicação.
O Projeto
Sistema de Suporte à Decisão no gerenciamento de reservatórios de abastecimento público e hidroelétricas (nº 00/14482-7); Modalidade Programa de Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE); Coordenador José Galizia Tundisi – Instituto Internacional de Ecologia; Investimento R$ 180.777,67 e US$ 50.522,29