Imprimir PDF Republicar

Obituário

Alfabetização e justiça social

Olhar de Magda Becker Soares sobre letramento infantil influenciou a formulação de políticas públicas

Gláucia RodriguesMagda Soares durante entrevista concedida em sua casa em Belo Horizonte (MG), em 2015Gláucia Rodrigues

Pesquisar a alfabetização infantil por meio de uma perspectiva multifacetada, integrando análises de métodos de ensino com perspectivas sociais, políticas e históricas, foi uma das principais contribuições da educadora Magda Becker Soares, professora emérita da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A pesquisadora morreu no dia 1º de janeiro, aos 90 anos, em decorrência de um câncer, e deixou três filhas e dois filhos, além de quatro netos e dois bisnetos.

Graduada em Letras Neolatinas na UFMG em 1953, Soares defendeu o doutorado em Didática na mesma instituição, em 1962. Em 1990, como docente da Faculdade de Educação da UFMG, fundou o Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale), onde desenvolveu pesquisas sobre alfabetização, orientou projetos e formou alunos, durante décadas.

Ao afirmar que a educadora inaugurou os estudos de letramento de crianças no Brasil, a partir do diálogo com as teorias de Paulo Freire (1921-1997), de quem foi discípula e amiga, Hércules Tolêdo Corrêa, da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), destaca a preocupação de Soares em pensar sobre o que a universidade pode fazer pelas camadas populares. Além disso, ele explica que as pesquisas da educadora passaram por diferentes momentos históricos envolvendo concepções da linguagem, do ensino e da alfabetização, e ela nunca teve medo de rever ou repensar suas próprias análises. “Magda não tinha receio de assumir novas posições sobre o que escrevia”, afirma.

Corrêa foi próximo a Soares desde o início de sua trajetória como pesquisador, logo depois de concluir a graduação, em 1989. “Magda pensava a alfabetização não apenas do ponto de vista cognitivo, mas também conforme os usos e funções da escrita”, diz. Outra colaboração da educadora foi levar essa visão inovadora sobre a alfabetização para políticas públicas, especialmente a partir dos anos 2000. “O Programa Nacional de Alfabetização na Idade Certa, de 2012, foi criado a partir de seus estudos sobre letramento, dentre outras contribuições”, afirma Corrêa, que também é pesquisador do Ceale.

De acordo com a pedagoga Carlota Boto, diretora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP), a educadora defendia que o letramento deveria acontecer dialogando com o contexto em que o aluno se inseria. “Ela pensava o desenvolvimento de uma sociedade letrada como forma de se criar, também, uma sociedade mais justa, com melhor distribuição da riqueza e com todos acessando bens culturais”, comenta. Boto destaca, ainda, que o viés inovador de seus estudos sobre alfabetização infantil foi central à formação de professores no Brasil. “Pela leitura dos livros de Soares, nós também nos formamos como alfabetizadores.”

“Ao propor que o processo era mais do que ensinar letras e fonemas, mas também um meio de se perceber a função social do texto, Magda revolucionou a forma como os pedagogos pensavam a alfabetização infantil”, enfatiza Renata Junqueira de Souza, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Presidente Prudente. Segundo ela, Soares partiu dos estudos de Paulo Freire sobre alfabetização de adultos para criar metodologias orientadas ao letramento infantil.

Utilizando elementos do cotidiano das crianças para alfabetizá-las, Soares apresentava uma visão diferente da concepção tradicional, que se apoiava em cartilhas e no ensino de famílias fonéticas. “Ela defendia que era preciso partir do que a criança sabia antes de chegar na escola para alfabetizá-la com sucesso”, explica Souza. Assim, Soares criou o conceito de alfaletrar, que une a ideia de letramento com perspectiva social e a necessidade de se ensinar, também, as famílias fonéticas.

Souza trabalhou com Soares quando ela foi coordenadora executiva do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) do Ministério da Educação, de 1998 a 2015. “Magda era uma pessoa simples e modesta, sempre disposta a dividir seu conhecimento com as outras pessoas. Muito ativa e inquieta, até poucos meses antes de morrer ia até a UFMG dirigindo seu carro”, recorda.

Aposentada da UFMG no ano 2000, Soares seguiu colaborando com o Ceale-UFMG, além de atuar como consultora da rede municipal de educação em Lagoa Santa (MG), coordenar projetos de alfabetização na rede pública de ensino da cidade e criar bibliotecas em escolas. “A atuação de Magda em Lagoa Santa trouxe melhorias significativas para o município no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica [Ideb]”, assegura Souza.

Com 12 livros publicados, algumas de suas obras de destaque são Alfabetização no Brasil: O estado do conhecimento (Inep, 1989); Letramento: Um tema em três gêneros (Autêntica, 1998); Linguagem e escola: Uma perspectiva social (Ática, 2002); Alfabetização: A questão dos métodos (Contexto, 2016), que venceu o Prêmio Jabuti, em 2017; e Alfaletrar: Toda criança pode aprender a ler e escrever (Contexto, 2020), escrito com base na experiência de 20 anos na rede escolar de Lagoa Santa. Em 2015, ela recebeu o Prêmio Almirante Álvaro Alberto para a Ciência e Tecnologia do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Até pouco tempo antes de falecer, Soares trabalhava na redação de um livro sobre o uso da literatura no ensino da leitura e da escrita. Como questões em aberto, Boto, da USP, avalia que ela deixou o desafio de ampliar a aplicação de seu legado intelectual. “Essa poderia ser a grande pergunta a ser enfrentada pelo novo governo que se inicia no Brasil. O sonho de Magda era ver um mutirão em prol de uma política efetiva de alfabetização no Brasil”, finaliza Boto.

Republicar