Antes de agosto de 2003, Raquel, Nicole, Verônica, Gabriel, Lucas, Vitória e Gabriela seriam crianças com grande risco de apresentar retardo mental e paralisia total ou parcial das pernas. Esses problemas resultam de uma malformação que pode ser identificada pelos médicos durante a gravidez, a mielomeningocele, que impede o desenvolvimento completo da coluna e deixa a medula espinhal do feto exposta. Em uma cirurgia de uma hora e meia, o obstetra faz um corte como o de uma cesárea no ventre e outro de 9 centímetros no útero materno. Em seguida, por meio dessa abertura, outro médico, um neurocirurgião, corrige o defeito na coluna do bebê, que continua na barriga da mãe até o nascimento.
O Brasil é o segundo país, além dos Estados Unidos, a fazer esse tipo de operação, chamada de cirurgia fetal a céu aberto. Feito pela primeira vez no país no ano retrasado, o procedimento é experimental: nem os médicos brasileiros nem os norte-americanos têm certeza de que seus benefícios sejam maiores que os riscos. Duas equipes distintas, uma da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e outra da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), já realizaram oito cirurgias a céu aberto: seis bebês nasceram e estão bem e um deve nascer ainda este mês. O outro, o primeiro que passou por esse tipo de cirurgia no Brasil, em 2002, morreu.
Mesmo que o sucesso não tenha sido total, os resultados obtidos até agora podem ser considerados promissores. As complicações existem, mas são muito mais amenas do que se os bebês só tivessem passado pela cirurgia para corrigir o defeito na coluna após o nascimento, a única alternativa de tratamento possível até nove meses atrás. Além dessa correção da coluna, feita no dia do parto, a maior parte dessas crianças provavelmente necessitaria de outra cirurgia, três dias depois, para implantar uma válvula permanente no cérebro, destinada a eliminar o acúmulo no crânio do líquido que banha o sistema nervoso central, a chamada hidrocefalia, a principal conseqüência da mielomeningocele, uma doença comum que afeta uma em cada mil crianças – o equivalente a 300 bebês por ano apenas no município de São Paulo.
Passos firmes
No hospital da Unifesp, a equipe do obstetra Antonio Fernandes Moron operou seis bebês, dos quais cinco já nasceram. Quatro deles movimentam bem as pernas e estão livres da hidrocefalia, que prejudica o desenvolvimento do sistema nervoso e pode provocar retardo mental. O quinto bebê apresenta um nível moderado de hidrocefalia e recebeu o implante de uma válvula, segundo o neurocirurgião infantil Sérgio Cavalheiro. Por si só, esses resultados são um indício de viabilidade da nova técnica, pois de 85% a 90% dos bebês que nascem com a coluna aberta têm hidrocefalia e precisam do implante de um dreno no cérebro para restabelecer a circulação normal desse líquido, conhecido como líquor ou líquido cefalorraquidiano. A colocação desse dreno não é inofensiva: reduz em 20% a capacidade mental da criança, segundo estudos de Joseph Bruner, da Universidade Vanderbilt, nos Estados Unidos, coordenador de uma das três equipes norte-americanas capacitadas para tratar bebês dentro do útero.
Por fechar mais cedo a abertura na coluna, a cirurgia a céu aberto diminui a exposição da medula espinhal e dos nervos ligados à mobilidade das pernas ao líquido que envolve o bebê no útero – o líquido amniótico, que, por razões desconhecidas, pode danificar a medula e os nervos. Assim, é possível reduzir o risco de paralisia desses membros. É por essa razão que Raquel, o primeiro bebê brasileiro nascido após uma cirurgia a céu aberto, talvez consiga andar sem precisar de aparelhos. Se passasse pela cirurgia só após o nascimento, teria uma chance de 45% de conseguir se locomover com cadeira de rodas e de apenas 7% de andar sem a ajuda de um andador ou de muletas. “Se o benefício não é total, ao menos as complicações foram amenizadas”, afirma Moron, que, com o médico Carlos Almodin, da equipe da Unifesp, desenvolveu uma versão brasileira e reutilizável do trocáter, equipamento usado para fazer a abertura no útero, atualmente importado a um custo de até US$ 500.
No dia 1º de março, Lucas nasceu em Campinas, quatro meses depois de ser operado pela equipe do obstetra Ricardo Barini, da Unicamp. A primeira cirurgia feita pelo grupo, em dezembro de 2002, não foi bem-sucedida: a placenta descolou e o feto morreu logo após o parto. No caso de Lucas, a cirurgia reduziu o dano causado pela mielomeningocele e impediu o avanço da hidrocefalia. Ele nasceu na 35ª semana da gravidez, com quase nove meses, enquanto a maioria das crianças com esse defeito congênito nasce ainda mais prematura, com cerca de 32 semanas – o risco de parto prematuro é uma das razões que levam os médicos a hesitar em fazer a cirurgia a céu aberto. “Se a lesão inicial não fosse corrigida, Lucas certamente nunca movimentaria as pernas”, diz Lourenço Sbragia Neto, coordenador cirúrgico da equipe. “Agora, temos esperança até de que ele possa andar.”
Embora persigam o mesmo objetivo, as duas equipes adotam critérios distintos para selecionar os bebês que cumprem os requisitos necessários para a operação. O grupo da Unicamp segue as normas estabelecidas pelos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos Estados Unidos, que só recomendam a cirurgia a céu aberto para mielomeningocele quando a mãe é saudável e se encontra entre a 19ª e 25ª semana de gestação (final do quarto e o início do sexto mês). No caso do bebê, a lesão da coluna deve localizar-se entre a primeira vértebra torácica, na altura dos ombros, e a primeira sacral, próxima à cintura. “A melhora da hidrocefalia é pequena após as 25 semanas”, diz Sbragia. “Depois desse período, é melhor esperar o bebê nascer para operar”, acrescenta o pesquisador, que dirige o laboratório de cirurgia experimental fetal da Unicamp – ali, um dos estudos em andamento trata do efeito inflamatório do líquido amniótico sobre a medula espinhal de fetos de ratas.
Em um estudo feito com 104 crianças submetidas à cirurgia fetal a céu aberto e outras 189 tratadas da maneira convencional, médicos norte-americanos da Universidade Vanderbilt e do Hospital Infantil da Filadélfia constataram que a incidência da hidrocefalia é similar entre os bebês operados no útero depois de 25 semanas de gravidez e os submetidos à cirurgia para corrigir a coluna após o nascimento.Outra conclusão: 75% dos fetos operados na barriga da mãe depois da 25ª semana necessitaram do implante da válvula no cérebro depois do nascimento, enquanto só metade dos operados antes da 25ª semana de gravidez precisou passar pela segunda cirurgia. Esse número sobe para 85% entre os bebês que só são operados depois do nascimento. Já os médicos da Unifesp realizam a cirurgia do feto no útero materno até a 27ª semana de gestação (final do sexto mês).
Em avaliação
Nos Estados Unidos, os Institutos Nacionais de Saúde estão financiando um estudo de porte, com um orçamento de US$ 25 milhões, destinado a desfazer as dúvidas sobre qual tipo de cirurgia – a céu aberto ou após o nascimento – é mais eficaz para corrigir a mielomeningocele. O projeto Management of Myelomeningocele Study (Moms) deve avaliar até agosto de 2008 os resultados apresentados por cem crianças que passaram pela correção da coluna no útero e outras cem operadas após o parto.
Enquanto não saem os resultados do Moms, melhor do que tentar minimizar os danos provocados pela mielomeningocele é prevenir seu aparecimento, associado a defeitos genéticos e à dieta pobre em ácido fólico, encontrado em verduras e em carnes vermelhas. Por essa razão, os médicos aconselham às mulheres que desejam ter filhos que, dois meses antes de engravidar, tomem doses suplementares de ácido fólico, numa terapia preventiva que deve durar até o final do primeiro trimestre da gestação. O consumo extra de ácido fólico evita a recorrência da mielomeningocele em até 72% dos casos de famílias que já tiveram um bebê com o problema.
O Projeto
Avaliação Morfológica, Histológica e Bioquímica de Fetos de Ratas Spreague-Dowley, Submetidos a Gastrosquise Experimental Intra-útero, em Diferentes Idades Gestacionais (nº 02/02563-8); Modalidade
Linha Regular de Auxílio a Projeto de Pesquisa; Coordenador Lourenço Sbragia Neto – Unicamp; Investimento R$ 226.889,18