Assim que começaram a lidar com idosos saudáveis com mais de 100 anos, pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) perceberam que têm de agir com rapidez para marcar consultas, coletar sangue e fazer os exames. Dos 50 centenários que estão sendo acompanhados, dois morreram nos últimos dois meses. Uma das causas pode ser uma desregulação das atividades do sistema imune, com aumento ou redução de anticorpos e células que participam da eliminação de agentes causadores de doenças, como indicado por outro estudo com idosos, também na UFMG.
“Além da senescência que se instala nos músculos, no coração, em outros órgãos e nas células, o envelhecimento está associado a uma inflamação crônica leve, com uma produção intensa de proteínas chamadas citocinas pró-inflamatórias”, observa a médica imunologista Ana Maria Caetano Faria, do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG. “Os que se mantêm saudáveis, por causa principalmente da genética, da alimentação e de bons hábitos, conseguem compensar esse mecanismo e manter estável a produção das citocinas anti-inflamatórias como a interleucina-10, de modo que a inflamação é ativada somente quando necessário, sem prejudicar o organismo.” As proteínas que ativam a inflamação, em geral indispensável no combate a micróbios e tumores, podem favorecer o surgimento de doenças como Alzheimer, transtorno bipolar, esclerose múltipla, artrites ou degeneração muscular.
Se a quantidade de citocinas anti-inflamatórias em circulação no sangue não se mantiver estável, a inflamação crônica se instala e o organismo começa a desandar de modo acentuado já a partir dos 70 anos. Em um estudo publicado em julho na revista científica Experimental Gerontology, o grupo da Fiocruz e da UFMG examinou os níveis de 27 proteínas conhecidas como mediadores do sistema imune, responsáveis pela ativação de células de defesa e outros mecanismos de controle do sistema imune, em amostras de sangue colhidas de 541 pessoas saudáveis com idades de 3 a mais de 70 anos, todas sem infecção aparente. Nos septuagenários, a quantidade de mediadores era a metade do nível mais alto, verificado na faixa entre os 60 e 70 anos (ver gráficos).
Também chamados de citocinas, os mediadores exercem muitas funções no organismo: além de ativar ou desativar os processos inflamatórios, estimulam a produção de anticorpos e de células capazes de destruir patógenos ou as recrutam para os locais de infecção. Do mesmo modo, o sistema imune tem outros papéis além de combater infecções, como manter a tolerância aos tecidos do corpo, assim evitando as chamadas doenças autoimunes, e eliminar células velhas ou mortas.
Ondas
A quantidade de mediadores varia de acordo com o que Martins-Filho, Faria e seus colegas chamam de ondas. Há um grande aumento nos mediadores entre 6 e 10 anos e um declínio entre 11 e 20 anos e 21 e 30 anos. Volta a aumentar na faixa dos 31 a 40 anos e cresce ainda mais entre os 51 e 60 anos. Após os 70 anos, ocorre um declínio acentuado dos níveis dessas proteínas no soro sanguíneo, principalmente em mulheres. No grupo das septuagenárias, caíram os níveis de 12 citocinas, incluindo o de interferon-gama, um poderoso antiviral e antitumoral, enquanto apenas duas desse conjunto de proteínas apresentaram queda entre os homens da mesma idade.
“O primeiro pico de citocinas, aos 6 anos, indica um amadurecimento da resposta imune, depois de as crianças terem tido contato com vírus e outros patógenos, como resultado da convivência em creches e escolas”, comenta a pediatra imunologista Magda Carneiro-Sampaio, do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (ICr-HC-USP), que não participou do estudo. “Nessa fase elas desenvolvem a resposta de memória contra vírus e bactérias.”
Segundo ela, os ambulatórios de hospitais pediátricos de várias cidades do Brasil e de outros países lotaram com a reabertura de escolas e creches no início deste ano exatamente porque a reclusão das crianças durante a pandemia impediu o contato entre elas e retardou o desenvolvimento das chamadas células de memória, que se tornam aptas a enfrentar infecções em resposta à troca gradual de agentes patogênicos no convívio diário. Ao voltarem a se encontrar, as crianças receberam uma dose alta de uma variedade de vírus, geralmente transmitidos pelo ar.
As ondas de citocinas diferem entre homens e mulheres. “Provavelmente por causa da oscilação hormonal ao longo da vida, as mulheres tendem a ter mudanças nos níveis de mediadores do sistema imune antes dos homens”, diz o bioquímico-farmacêutico Olindo Assis Martins-Filho, do Instituto René Rachou da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em Belo Horizonte, coautor do trabalho na Experimental Gerontology. “Nas mulheres esses níveis caem após os 30 anos, enquanto nos homens só depois dos 50.”
Ainda não se sabe por que os níveis de citocinas oscilam ao longo da vida. “Essa variação é um fenômeno curioso, uma vez que as citocinas são geralmente produzidas em resposta a infecções; seria esperado que elas não variassem tanto ao longo da idade”, comenta o biólogo Dario Simões Zamboni, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP, que também não tomou parte dessa pesquisa. “Uma possibilidade é que algumas das pessoas que participaram desse estudo estejam naturalmente inflamadas ou tenham alguma infecção latente, mas de qualquer forma essas observações abrem portas para futuros estudos.” Em 2020, Zamboni integrou um grupo que elucidou um dos mecanismos desencadeadores da chamada tempestade de citocinas, que resulta em uma inflamação intensa em pessoas com Covid-19.
Altos e baixos ocorrem também com os níveis de dois tipos de células de defesa, os linfócitos T, produzidos no timo, e os B, que saem da medula óssea. Um estudo da equipe da UFMG e da Fiocruz com 232 participantes saudáveis e sem infecção aparente (80 crianças e 152 adultos), com idade entre 0 e 86 anos, registrou as maiores quedas da quantidade de linfócitos B em circulação no sangue entre 11 e 40 anos e após os 61 anos, enquanto com os linfócitos B a maior redução foi após os 75 anos. Os resultados estão detalhados em um artigo publicado em novembro de 2008 na revista científica Neuroimmunomodulation.
Scientific Animations / Wikimedia Commons e Léo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESPAs mulheres tendem a apresentar antes dos homens uma queda na quantidade de mediadores do sistema imune em circulação no sangueScientific Animations / Wikimedia Commons e Léo Ramos Chaves / Revista Pesquisa FAPESP
“Nesse trabalho de 2008 vimos o que chamamos de efeito gota-d’água”, conta Faria. “Um idoso com mais de 75 anos tem uma saúde ótima, mas de repente sofre uma queda ou um acidente qualquer sem gravidade, que faz o organismo perder o delicado equilíbrio e sobrevém um declínio na saúde e até a morte súbita.”
Conectividade
Os especialistas de Minas Gerais identificaram conexões entre os mediadores. “Eles conversam entre si”, sintetiza Martins-Filho. Podem agir isoladamente, aumentando ou reduzindo a ação de outro, ou em conjunto. Faria exemplifica: quando produzidas ao mesmo tempo pelas células dendríticas, duas citocinas – o fator de crescimento transformador-beta (TGF-β) e a interleucina-6 (Il-6) – estimulam a diferenciação de linfócitos T em um tipo de célula inflamatória, enquanto o TGF-β isoladamente tem efeito anti-inflamatório.
No estudo da Fiocruz e da UFMG, a conectividade se mostrou maior entre 3 e 5 anos de idade, com ritmos diferentes de declínio e reconstrução em homens e mulheres. Martins-Filho observa que uma resposta imune muito intensa, como a verificada na Covid-19 e nas sepses (infecções generalizadas), pode levar à desconexão entre as citocinas.
Como nos septuagenários a produção de linfócitos T diminui, em razão da contínua atrofia do timo, ocorre uma reposição mais lenta de células e perda de diversidade celular. “Para fazer uma boa resposta a vacinas, a diversidade celular é muito importante”, comenta Zamboni. O predomínio de células de memória favorece a resposta contra patógenos já conhecidos do organismo, mas não aos novos, como o causador da Covid-19.
Ainda não se sabe se é possível restaurar as defesas entre os mais idosos, mas já se sabe que as bebidas alcoólicas podem enfraquecê-las. O grupo da UFMG mostrou em 2006 na Clinical and Experimental Immunology que o consumo excessivo de álcool durante quatro dias, em camundongos, disparou uma reação inflamatória intensa. “Trinta dias depois do experimento, as funções das células imunes dos animais ainda estavam alteradas”, relata Faria.
Artigos científicos
ANDRADE, M. C. et al. Alcohol-induced gastritis prevents oral tolerance induction in mice. Clinical and Experimental Immunology. v. 146, n. 2, p. 312-22. nov. 2006.
BRITO-DE-SOUSA, J. P. et al. Serum soluble mediator waves and networks along healthy ageing. Experimental Gerontology. v. 164, 111771. 22 mar. 2022.
FARIA, A. M. C. et al. Variation rhythms of lymphocyte subsets during healthy aging. Neuroimmunomodulation. v. 15, n. 4-6, p. 365-79. 26 nov. 2008.
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