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Epidemiologia

Ameaça para além dos muros

Medidas para conter o avanço da pandemia entre presos podem intensificar sua disseminação dentro e fora das penitenciárias

Em rebelião no começo de maio, detentos da Unidade Prisional do Puraquequara, em Manaus, exigem melhores condições de saúde frente à escalada de casos de Covid-19

Bruno Kelly / REUTERS / FOTOARENA

Na ausência de um medicamento específico ou vacina contra a Covid-19, isolamento e cuidados com a higiene pessoal seguem sendo as principais formas de conter a disseminação do Sars-CoV-2. Nos presídios brasileiros, porém, essas práticas esbarram em problemas de longa data – relacionados, sobretudo, à falta de infraestrutura do sistema –, que inviabilizam qualquer possibilidade de distanciamento físico, caso da superlotação das celas, e dificultam a manutenção da higidez, caso das más condições sanitárias e do acesso precário a serviços médicos. Em março, quando os primeiros focos da doença começaram a despontar no país, o governo federal decidiu suspender transferências de presos e visitas de familiares e advogados. Por sua vez, as varas de execução penal, com base em uma série de recomendações do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), deram início a um processo de desencarceramento de indivíduos acima de 65 anos de idade e com doenças preexistentes, como diabetes, hipertensão, asma, tuberculose e Aids. A medida também incluiu grávidas, mulheres com filhos pequenos e presos em etapa final de cumprimento de pena não envolvendo crimes violentos ou que não integrem organizações criminosas.

O objetivo era tentar reduzir a superlotação e evitar o avanço do vírus nas penitenciárias. Até o dia 29 de junho, o número de casos da doença na população carcerária somava 4.472, segundo dados do painel de acompanhamento da Covid-19 lançado no início da pandemia pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen). O Brasil tem hoje a terceira maior população encarcerada do mundo. São quase 750 mil presos, dos quais, estima-se, 32,5 mil foram libertados ou encaminhados para prisão domiciliar. Em São Paulo, estado com a maior população carcerária do país, 3.861 dos 231.287 presos foram soltos entre março e junho, segundo a Secretaria da Administração Penitenciária. Ainda assim, para alguns especialistas, essas medidas são insuficientes e, da maneira como foram adotadas, podem intensificar a disseminação do vírus, dentro e fora dos presídios.

Uma das preocupações é que a suspensão das visitas interrompa o sistema de abastecimento de itens que ajudam a garantir as condições mínimas de sobrevivência dos detentos. Em pesquisa de doutorado desenvolvida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), o sociólogo Rafael Godoi verificou que as famílias dos presos são as principais responsáveis por fornecer alimentos, medicamentos, produtos de higiene e roupas aos que cumprem pena em estabelecimentos carcerários da Região Metropolitana de São Paulo. “As refeições nos presídios são de péssima qualidade e os itens básicos fornecidos pela administração penitenciária, como sabonete e pasta de dente, insuficientes”, diz Godoi, pesquisador em estágio de pós-doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Por essa razão”, explica, “o funcionamento das prisões depende, em grande medida, de ampla mobilização e contínua articulação de atores sociais, dentro e fora das instituições carcerárias, de modo que a interrupção das visitas e do fornecimento de insumos básicos pode afetar ainda mais a saúde dos presos e dificultar sua higiene, favorecendo a disseminação do Sars-Cov-2 e de outros agentes infecciosos”.

Pesquisadores da área da saúde também temem que a suspensão das visitas intensifique a sensação de isolamento e insegurança entre os presos, e que isso leve ao aumento de casos de ansiedade e depressão e ao agravamento do quadro dos que já sofrem com algum tipo de transtorno mental. Essa preocupação adquiriu significado ainda mais grave com a recente decisão do ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuello, de extinguir o serviço de acompanhamento de detentos com transtornos mentais, oferecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS) desde 2014.

A psiquiatra Ivete Maria Santos, que há 26 anos atua como médica do sistema penitenciário na Bahia, avalia que a situação deverá contribuir para o aumento do sofrimento mental, da incidência de suicídios e do risco de rebeliões nas prisões. “Com o fim das visitas, a restrição à circulação dentro dos presídios e a interrupção das atividades laborais, educativas e religiosas, os detentos passam ainda mais tempo confinados em celas superlotadas”, diz. “Sem o suporte da família e dos serviços de atenção à saúde mental outrora oferecido pelo SUS, também é possível que muitos dos que sofrem de transtornos mentais deixem de tomar seus medicamentos, o que deverá resultar no reaparecimento dos sintomas e no aumento da tensão entre eles, elevando o risco de conflitos.” Situações como essa foram observadas no início deste ano em presídios situados na região da Lombardia, a mais afetada pelo novo coronavírus na Itália. Em meio ao aumento dos casos da doença e da inércia das autoridades carcerárias, prisões nos estados de Washington e Nova York, nos Estados Unidos, também registraram greves de fome e rebeliões.

Ilustração Freepik

Condições insalubres
A maioria dos presos no Brasil está trancada em celas úmidas, escuras, superlotadas e com pouca ventilação. O acesso à água potável é limitado. Além de compartilharem o mesmo banheiro, muitas vezes os presos também dividem itens de higiene pessoal, como escovas de dente e sabonete. Vários são fumantes, usuários de drogas e obesos com problemas cardiovasculares e respiratórios, e estão sujeitos a uma ampla variedade de doenças, cuja transmissão tende a ser favorecida pelas condições insalubres dos locais onde cumprem pena. “A situação degradante das prisões brasileiras é um dos principais fatores da alta incidência de doenças infecciosas entre os detentos”, diz a médica Alexandra Sánchez, da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (Ensp-Fiocruz), no Rio de Janeiro, que há duas décadas pesquisa as condições sanitárias em penitenciárias do país.

Estima-se que, no Brasil, essas doenças respondam por até 17,5% das mortes nas prisões – no Rio de Janeiro, esse percentual pode chegar a 28,5%. É o caso da tuberculose, cujo risco de contaminação pode ser até 30 vezes maior em relação à população em geral. “Da mesma forma”, explica Sánchez, “dada as condições de encarceramento no país, estima-se que cada detento com Sars-CoV-2 possa transmitir o vírus para outros 10 presos, sendo que, fora das prisões, cada pessoa infectada pode contaminar até três indivíduos, em média”. As estimativas baseiam-se em estudos recentes feitos no âmbito do Grupo de Pesquisa Saúde nas Prisões da Ensp-Fiocruz. Em um deles, publicado na revista Cadernos de Saúde Pública, Sánchez e sua equipe sugerem que em uma cela com 150 presos, 67% estariam infectados em até 14 dias caso entrassem em contato com um único portador do novo coronavírus. Passados 21 dias, todos teriam sido contaminados: 80% permaneceriam assintomáticos ou desenvolveriam formas leves da doença, 20% desenvolveriam formas mais graves da Covid-19 e teriam de ser hospitalizados 6% destes em Unidades de Terapia Intensiva (UTIs).

O cuidado com a saúde de pessoas encarceradas não costuma atrair a atenção da sociedade. “Pelo contrário”, afirma Godoi. “Negligenciados pelo Estado, os detentos ainda precisam lidar com o estigma e a falta de empatia dos que estão livres.” Por outro lado, Santos lembra que as prisões são instituições “porosas”, cujos problemas não se limitam aos muros que as cercam. “A alta incidência de infecções respiratórias entre os detentos pode transformar as penitenciárias em fonte de propagação de vírus e bactérias para a população em geral”, informa a pesquisadora, coautora de estudo publicado em maio na revista Ciência & Saúde Coletiva que também avaliou a situação da pandemia do novo coronavírus nas prisões do país. No caso da Covid-19, ainda que as visitas estejam suspensas, os presídios tendem a amplificar a transmissão do vírus por intermédio dos agentes penitenciários. São quase 110 mil no Brasil, muitos dos quais não receberam treinamento adequado para lidar com a pandemia ou mesmo equipamentos de proteção individual, conforme mostrou pesquisa realizada pelo Núcleo de Estudos da Burocracia da Fundação Getulio Vargas (NEB-FGV), em São Paulo, com 301 agentes.

Ilustração Freepik

Segundo a Secretaria da Administração Penitenciária de São Paulo, até meados de junho, 149 agentes penitenciários haviam sido diagnosticados com Covid-19, dos quais 14 faleceram por complicações decorrentes do agravamento da doença. No entanto, é possível que esse número seja muito maior. Apenas no dia 19 de junho, 76 casos de Covid-19 foram registrados em duas unidades da Fundação Casa em Itaquaquecetuba, na Região Metropolitana de São Paulo, após testagem em massa realizada em 247 pessoas. Dos 76 casos positivos, 32 eram servidores do sistema socioeducativo. “Se essa tendência continuar, as prisões podem se tornar reservatórios do Sars-CoV-2, favorecendo o ressurgimento da Covid-19 em algumas comunidades, próximas e afastadas dos centros de detenção, mesmo depois que a pandemia estiver controlada”, alerta Marcos André de Matos, professor da Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Goiás (UFG).

Para minimizar esse risco, o governo de Goiás estabeleceu parceria com o grupo de Matos na UFG. O objetivo: capacitar servidores penitenciários da Região Metropolitana de Goiânia para que adotem protocolos de limpeza e higienização dos presídios da região. Alguns presos também foram treinados para atuar como monitores. “Explicamos o que é o vírus, como ele se espalha e como prevenir a infecção, de modo que eles disseminem para os outros presos a importância da higienização dos ambientes carcerários”, conta Matos, responsável por projeto de pesquisa recentemente aprovado em edital do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) voltado ao enfrentamento da Covid-19.

Ilustração Freepik

Serviços de saúde
A dificuldade no acesso a serviços de saúde é um problema recorrente nas penitenciárias brasileiras. Metade das 1.422 prisões do país não dispõe de consultórios e áreas de observação, e as prisões que contam com esses espaços sofrem com a falta de equipes médicas. “Na ausência de uma estrutura que permita o isolamento em celas individuais, os presos com suspeita ou diagnóstico confirmado de Covid-19 são reunidos e confinados em espaços separados”, explica Sánchez. Muitos voltam para o convívio com a população carcerária sem que se verifique se estão livres do vírus.

Como acontece com a população em geral, no caso do Brasil, o baixo nível de testagem é um dos principais gargalos para o controle da doença dentro dos presídios. Estima-se que pouco mais de 13 mil presos foram submetidos a testes. Os pesquisadores, porém, não têm dúvidas a respeito da subnotificação de casos e de mortes por Covid-19 entre os detentos. Um levantamento realizado pela equipe de Sánchez sugere que a taxa de mortalidade da doença entre os presos no Rio de Janeiro seja três vezes superior à contabilizada oficialmente — o estado tem 50.822 presos, a terceira maior população carcerária do país. “É fundamental que os detentos com sintomas compatíveis com a Covid-19, mesmo que leves, sejam testados com exames moleculares e, se confirmada a contaminação, sejam isolados”, destaca a pesquisadora. A testagem de profissionais de segurança e da saúde nas instituições prisionais também deve ser considerada prioritária.

Na avaliação de Camila Prando, pesquisadora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), os dados do Depen não refletem a real dimensão da pandemia no sistema penitenciário nacional. “Os números divulgados no painel eletrônico da instituição apresentam várias falhas metodológicas”, ela diz. “Não se sabe como as informações são coletadas nem os tipos de testes usados para determinar os casos confirmados.” Há ainda, segundo ela, um descompasso entre os números registrados pelo painel e o que é informado pelas secretarias estaduais de Administração Penitenciária.

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Prando é coordenadora do projeto Infovírus, lançado em março com o objetivo de verificar as declarações e as informações oficiais sobre a pandemia no sistema prisional brasileiro. A iniciativa envolve grupos de pesquisa de várias universidades do país, como o Centro de Estudos de Desigualdade e Discriminação da UnB, o Grupo de Pesquisa em Criminologia da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), entre outros. O projeto tem constatado que a divulgação das informações sobre a situação da Covid-19 nos presídios não é feita de forma contínua e apresenta oscilações, às vezes diárias, no número de casos suspeitos e de infectados, de modo que não há como saber a real extensão da pandemia dentro do sistema prisional do país. Para Prando, a baixa testagem, somada à inconsistência dos dados do Depen, impede a construção de uma série histórica sobre a dinâmica de transmissão do vírus no ambiente prisional. “Ao mesmo tempo, do modo como são apresentados, os números dão a falsa impressão de que a pandemia está controlada nos presídios.”

“Parece-nos um tanto óbvio que a proibição de visitas não impediria a entrada do vírus nas prisões, já que existe um fluxo permanente de funcionários”, diz o sociólogo Ricardo Campello, da FFLCH-USP. “A única forma de atenuar os índices de contágio seria reduzir drasticamente a superpopulação dos presídios, mas essa medida, apesar das recomendações do CNJ, vem enfrentando resistência.” Para ele, a estratégia geral de enfrentamento da pandemia posta em prática hoje consiste menos em conter a disseminação do vírus e mais em reforçar o caráter hermético do sistema carcerário, “ainda que isso signifique a exposição à morte dos milhares de pessoas que estão lá dentro”.

Projeto
Fluxos em cadeia: As prisões em São Paulo na virada dos tempos (nº 2011/09590-0); Modalidade Bolsa no Brasil – Doutorado; Pesquisadora responsável Vera da Silva Telles (USP); Bolsista Rafael Godoi; Investimento R$ 151.996,94.

Artigos científicos
SÁNCHEZ, A. et al. Covid-19 in prisons: An impossible challenge for public health? Cadernos de Saúde Pública. v. 35, n. 5. p. 1-5. mai 2020.
CARVALHO, S. G. et al. The pandemic in prison: Interventions and overisolation. Ciência & Saúde Coletiva. mai. 2020.
MATOS, M. A. New Coronavirus (Sars-Cov-2): Advances to flatten the curve the prison population. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical. v. 53, p. 1-2. mai 2020.

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