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Entrevista

André Tortato Rauen: Pesquisa orientada a missões

Economista do Ipea propõe que o investimento em ciência seja mais ousado e contemple, além da ciência básica, também a solução de grandes desafios da sociedade

Desde 2019, Rauen está à frente da Diretoria de Estudos Setoriais de Inovação e Infraestrutura do Ipea

Leo Pinheiro / Valor

Um estudo publicado em junho por pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) estimou um crescimento em 2021 de mais de 200% nos recursos que estariam disponíveis no Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), principal instrumento federal de financiamento da ciência, depois da aprovação de uma lei que vedou o expediente de usar o dinheiro do fundo para compor o superávit primário. Esse aumento acabou adiado por uma manobra do governo, que só promulgou a derrubada de vetos à nova lei dois dias após a aprovação do orçamento de 2021, mas é esperado para 2022.

Um dos autores do estudo, o economista André Tortato Rauen, vem se debruçando sobre o projeto de lei orçamentária em discussão no Congresso e constatou que os recursos integrais do FNDCT estão mesmo previstos para 2022 – da ordem de R$ 8,6 bilhões. Mas ele enxerga entraves que podem atrapalhar a execução do dinheiro. Um desafio está relacionado ao calendário de desembolso – se o governo só liberar os recursos no final do ano, isso pode inviabilizar uma aplicação eficiente. Rauen também avalia que faltam projetos ousados para absorver o crescimento de recursos.

Graduado pela Universidade Federal de Santa Catarina, mestre e doutor em política científica e tecnológica pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) com estágio de pós-doutorado na Universidade Columbia, em Nova York, Rauen ocupa desde 2019 a Diretoria de Estudos Setoriais de Inovação e Infraestrutura do Ipea. Na entrevista a seguir, ele fala sobre as perspectivas de financiamento à ciência e defende que o investimento seja menos pulverizado e contemple, além da pesquisa básica, a solução de grandes problemas da sociedade.

O que se pode esperar em relação aos recursos disponíveis no FNDCT em 2022?
Até onde pude ver no Projeto de Lei Orçamentária Anual, o Ploa, que está em discussão no Congresso e deve ser votado no início do ano, as perspectivas são positivas. O orçamento de ciência e tecnologia [C&T] é formado por uma parte orgânica, que é o orçamento de sempre e pode sofrer cortes pelas mãos do Congresso. E há uma outra parte, que é o FNDCT, que agora não pode mais ser contingenciada. O Ploa está vindo com 100% da arrecadação do FNDCT e a parte orgânica está se mantendo a mesma de anos passados. Se permanecer como está hoje, teremos algo como R$ 12,7 bilhões para a função C&T, o maior valor em muitos anos. Isso bate com a previsão de arrecadação que fizemos na nota técnica que divulgamos em junho. O volume previsto do FNDCT chegaria a R$ 8,6 bilhões. Em teoria, o cenário é muito bom, mas é necessário ficar atento a alguns desafios.

Quais são?
Uma possibilidade é que o Congresso corte a parte orgânica do orçamento e use os recursos do fundo para substituí-la. Além disso, também é preciso ver o que vai acontecer com o empenho financeiro e como os recursos serão desembolsados ao longo do ano. Caso fiquem retidos e venham a ser liberados só no final do ano, vai ser difícil aplicá-los de forma eficiente.

Se o orçamento crescer mesmo, qual será o impacto?
Fiquei assustado com a ausência de projetos ousados no MCTI [Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações] para absorver esses recursos. Uma primeira análise do Ploa mostra que há apenas um grande projeto novo, que é a construção de um laboratório de biossegurança de nível 4, o primeiro do Brasil, com R$ 200 milhões previstos. Vamos supor que o Ploa se concretize e que eles aprovem um orçamento de R$ 12,7 bilhões. Nos documentos oficiais, eu não consigo ver como esse cenário teoricamente positivo poderia ser canalizado para soluções de grandes problemas da sociedade brasileira. Pode haver uma pulverização de recursos.

Se os recursos do FNDCT ficarem retidos e só forem liberados no final do ano, vai ser difícil aplicá-los de forma eficiente

Mas não é necessário recompor investimentos em pesquisa básica e em órgãos de fomento que ficaram represados nos últimos anos?
Sim, e era esperado que isso acontecesse. Muito dinheiro do orçamento está sendo previsto para contratos de gestão de organizações sociais, as OS, que não pertencem à administração pública. A rubrica “Ações e manutenção de contrato de gestão com Organização Social” deve subir de R$ 200 milhões em 2021 para R$ 805 milhões em 2022. Esse novo laboratório de nível 4 vai ser uma OS. Também há recursos para concluir a fonte de luz síncrotron Sirius. Em 2021, o Sirius teve R$ 30 milhões. Em 2022 pode ter R$ 221 milhões. Se somar tudo que está indo para as OS – o Sirius, esse novo laboratório, e as OS antigas –, dá R$ 1,2 bilhão. A subvenção da Finep [Financiadora de Estudos e Projetos] também deve aumentar muito – os recursos não reembolsáveis para inovação em empresas devem dobrar de R$ 350 milhões em 2021 para R$ 700 milhões em 2022, segundo o Ploa. Mas ainda não se sabe como os recursos serão aplicados nem quais serão as métricas. O desafio vai ser executar de maneira coerente, articulada. Há um elemento adicional: é um ano pós-pandemia e vai estar tudo muito confuso ainda. Como investir com coerência em um momento em que as empresas estão se reorganizando, as cadeias globais estão quebradas, surgem variantes do vírus e a incerteza continua? Demanda não falta, mas as instituições se prepararam para esse aumento na execução orçamentária? Há algumas ações mais discricionárias no Ploa, como fomento à pesquisa e desenvolvimento em áreas básicas e estratégicas. Era uma ação de R$ 100 milhões e passou para R$ 500 milhões. Qual é a missão que vai cumprir? Quem vai executar?

Os Fundos Setoriais de Ciência e Tecnologia, de onde provêm os recursos do FNDCT, originalmente geravam editais de projetos de pesquisa de interesse dos respectivos setores da economia. Isso deverá ser retomado com o fim do contingenciamento de recursos?
Historicamente, a governança dos Fundos Setoriais determinava que, quando se recolhessem recursos do setor de energia elétrica, por exemplo, um comitê com representantes da área definiria as linhas de pesquisa para onde iria o dinheiro. Aí a arrecadação ficou muito grande e esses comitês ganharam muito poder. Administrações anteriores do MCTI criaram então as famosas ações transversais. A governança foi enfraquecida e o ministério passou a definir para onde vai o dinheiro setorial, irrigando todo o sistema com o dinheiro do FNDCT. O problema de governança permanece.

O Ploa diz algo sobre isso?
As ações mais transversais são muito maiores que as setoriais. Mas os recursos a serem executados setorialmente devem crescer. O fundo setorial do agronegócio, o CT-Agro, por exemplo, tinha pouquíssimo dinheiro em 2021: havia R$ 336 mil disponíveis. Em 2022, a previsão é que passe a R$ 70 milhões. Estão dando algum gás para os fundos, mas é pouco perto dos R$ 466 milhões em ações transversais, que fomentam projetos institucionais. Rever a governança dos Fundos Setoriais é fundamental para aumentarmos as entregas à sociedade.

Como fica a situação do  CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico)?
Está prevista uma recomposição de bolsas, seguindo essa melhora geral e o orçamento previsto é de cerca de R$ 1,3 bilhão. Aqui o desafio do efetivo desembolso é muito relevante, pois os recursos precisam ser liberados de forma constante ao longo do ano, sob o risco de termos bolsas canceladas. Sobre o CNPq também tem chamado nossa atenção a ausência de dados recentes sobre a concessão de bolsas. Os últimos dados disponíveis são de 2015. Seguramente esse problema está relacionado ao elevado número de aposentadorias de técnicos e à virtual ausência de reposição de pessoal que afeta todo o sistema público de inovação.

Há o risco de se liberar dinheiro para crédito a empresas em vez de recursos não reembolsáveis para inovação, como aconteceu em 2021?
A subvenção vai aumentar bastante, para R$ 700 milhões, mas o crédito a empresas continuará bem maior. Vai crescer de R$ 3,6 bilhões para R$ 4,2 bilhões. Dada nossa baixíssima taxa de inovação empresarial, um volume adequado e constante de crédito é muito importante. Acredito ser um ponto bem positivo, a questão toda é o que se quer com isso. Digo, em termos de solução de nossos desafios históricos, como a baixa produtividade da economia.

Outro estudo do Ipea do qual o senhor participou classificou como excessivamente abrangente a nova Estratégia Nacional de Inovação apresentada pelo governo em julho. Esse reforço de caixa não ajudaria a alcançar aqueles objetivos?
Temos ali um conjunto de intenções e pouca coisa concreta. Mas isso não é exclusividade dessa ou daquela gestão federal. Sempre que se lança um documento desse tipo o problema se repete. Aparecem juntas todas as intenções existentes no sistema de inovação, sem selecionar ou priorizar nada. O que se espera de uma estratégia efetiva é que ela faça escolhas. Os Estados Unidos traçaram um objetivo concreto em sua política de inovação: querem recuperar seu poder na manufatura e voltar a ser competitivos frente à China. A Alemanha quer desenvolver tecnologia verde. A Europa, como um todo, quer desenvolver tecnologias para beneficiar uma população que envelhece. Claro que há outras metas, mas tem uma lógica central, um drive. Nossa estratégia não faz escolha alguma. O ideal seria discutir essas escolhas com a academia e as empresas. O Ipea fez essa discussão recentemente e propôs que o drive brasileiro deveria ser a busca de soluções para problemas sociais e para aumentar a produtividade da economia. Alguns temas prioritários de C&T foram levantados, como segurança, mobilidade, acesso à água e meio ambiente. Ao não fazer escolhas, a estratégia vira uma carta de intenções em que todo mundo se vê ali, mas que não ajuda em nada na execução de uma política pública de inovação baseada em missões.

É surpreendente não termos um projeto minimamente articulado para criar uma vacina contra dengue, zika e chikungunya

Há metas associadas a empresas, que são muito ambiciosas, como elevar até 2024 a taxa de inovação dos atuais 33% para 50%. Já as metas vinculadas a ações do governo são mais conservadoras. Adianta estabelecer metas difíceis de alcançar?
Precisa ter essas metas. Eles foram muito ousados nos 50% de taxa de inovação. Acho interessante a preocupação da nova estratégia em melhorar o ambiente de negócios, tema bastante defendido pela atual administração. Existe um reconhecimento de que o dinheiro responde por uma parte do problema, mas não por tudo. Mas o que mais chama a atenção nessa meta é a ausência de um plano minimamente articulado para atingi-lo. O Brasil é um país de dimensões continentais, tecnologicamente dependente e com uma enormidade de problemas socioeconômicos e ambientais. O estranho nessa estratégia é propor uma meta superousada sem nenhuma ação ousada para tanto. Problemas grandes e complexos exigem soluções complexas e de médio e longo prazos.

O que proporia?
Em primeiro lugar, garantir recursos firmes e contínuos para a ciência básica, guiada pela curiosidade, sem a qual o sistema de C&T não funciona. Em segundo, selecionar problemas concretos que podem ser enfrentados pela ciência. Isso rompe o padrão de eleger áreas tecnológicas ou segmentos da economia a serem beneficiadas – o foco é a solução de problemas. É isso que os americanos nos ensinaram com a operação Warp Speed [velocidade de dobra] para acelerar o desenvolvimento de vacinas contra a Covid-19. O governo injetou recursos onde havia mais potencial de inovação e conseguiu obter um “entregável” claro. No Brasil, o momento é perfeito para fazer isso porque há dinheiro novo. Ou seja, não se vai tirar de ciência básica para investir na solução de problemas relacionados aos desafios brasileiros.

Que temas poderiam inspirar uma operação Warp Speed aqui?
É surpreendente que não tenhamos um projeto minimamente articulado de uma vacina tríplice contra dengue, chikungunya e zika. Como ainda não temos um programa de ciência, tecnologia e inovação [CT&I] para resolver problemas de mobilidade urbana, que tanto prejudicam a vida dos brasileiros e sua produtividade? Muitos desafios do país não têm a ver com a CT&I, como a questão da distribuição de renda. Mas outros têm tudo a ver, como sementes adequadas a mudanças climáticas ou a eficiente aplicação industrial do 5G. Defendemos uma lógica de financiamento orientada para missões concretas e ser ousado nesse investimento. A ideia central aqui é a de substituir o paradigma de apoio setorial pelo apoio voltado a “entregáveis” claros que resolvem problemas concretos. Como foi com o projeto do Sirius e o do Reator Multipropósito Brasileiro.

Mas o projeto do reator multipropósito está parado…
Ele está com migalhas no orçamento. O reator é tão importante quanto o Sirius. Dominar a produção de radiofármacos é fundamental, porque o SUS [Sistema Único de Saúde] consome muito esses insumos. Acontece que hoje preferimos pulverizar os recursos, pois assim o máximo possível de instituições e pesquisadores tem algum apoio. Isso garante incentivo à pesquisa guiada pela curiosidade, base de qualquer sistema de inovação. Mas também é importante que uma parte dos recursos seja concentrada em grandes projetos e problemas nacionais. Os instrumentos destinados a esses grandes projetos são mais difíceis de executar. Eles atuam pelo lado da demanda, é preciso definir qual é a encomenda tecnológica. Nós sabemos fazer isso. Com o Sirius, fizemos. O mundo abandonou esse sistema que distribui dinheiro por setores, e abraçou os “tiros na Lua”, os moonshots. Um dos nossos tiros na Lua, para mim, devia ser uma vacina tríplice.

O senhor é um especialista em encomendas tecnológicas e participou da elaboração da legislação sobre o assunto no Brasil. Houve progressos?
Sou suspeito para falar. Mas observe o contexto: estamos em um país extremamente polarizado, que sempre associou compra pública com corrupção. Aí aparece uma coisa chamada encomenda tecnológica, que inverte a lógica da compra pública e diz: olha, você pode fracassar, você pode contratar mais de um fornecedor, você pode negociar estratégias com fornecedores. Não era esperado que as encomendas explodissem, mas começaram a acontecer coisas muito boas. Uma encomenda tecnológica está ajudando a gente a superar a pandemia. Se não fosse esse instrumento, a Fiocruz não teria comprado a vacina da AstraZeneca. Compramos a vacina a risco. A vacina não existia. Se não fizéssemos a encomenda, teríamos que esperar para comprar só quando ela estivesse pronta e ir para o final da fila. O instrumento permitiu acessar a tecnologia antes de ela ficar pronta.

Há outros exemplos?
O Supremo Tribunal Federal fez uma encomenda de um algoritmo de decisão em segunda instância. A Marinha, de um sistema de segurança da Amazônia Azul. Até municípios estão usando o instrumento. Há outra coisa nova, que veio agora no Marco Legal das Startups, que se chama Compra Pública de Solução Inovadora. Por exemplo, um determinado departamento de trânsito tem um problema a resolver e sabe que ele pode ter diferentes soluções. Há várias startups oferecendo soluções diferentes. Não dá para fazer uma licitação por menor preço, porque isso não é eficiente: não se conhece, na prática, o que cada solução trará. Então, você faz uma licitação que vai selecionar em função do desempenho em um teste. Vem a Microsoft, vem a sua startup, vem a minha startup, todo mundo compete com sua solução. E você é remunerado durante o teste. Um Contrato Público de Solução Inovadora tem no DNA esses elementos que temos defendido, de o problema definir o desenvolvimento da inovação.

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