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Paleontologia

Animal bípede de dedos longos tinha bico inesperado, há 230 milhões de anos

Venetoraptor gassenae amplia a diversidade morfológica conhecida para animais que deram origem aos pterossauros e dinossauros

Interpretação artística de Venetoraptor gassenae com particularidades em destaque: bico na ponta do focinho, com dentição adequada para consumir invertebrados; mãos com dedos longos, em especial o quarto dígito; pés com dois dedos que se apoiam no chão

Caio Fantini

Um réptil de bico curvo capaz de rasgar pedaços de carne e “mãos” de dedos longos com garras em foice, ideais para agarrar galhos de árvores. Esse é Venetoraptor gassenae, animal do grupo dos lagerpetídeos que, há cerca de 230 milhões de anos, media aproximadamente 1 metro (m), pesava entre 4 e 8 quilogramas (kg) e andava em duas pernas com as mãos livres, conforme descrito na edição de hoje (16/8) da revista científica Nature.

A pré-história aflora à superfície na região central do Rio Grande do Sul. No município de São João do Polêsine, paleontólogos da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) já encontraram uma bela coleção de fósseis de animais que viveram naqueles tempos. Entre eles, dinossauros dos mais antigos já registrados no mundo, como Buriolestes schultzi, e lagerpetídeos, como Ixalerpeton polesinensis e a nova espécie, hoje considerados precursores dos pterossauros. “Já sabemos que lagerpetídeos coexistiram com dinossauros”, diz o paleontólogo Rodrigo Temp Müller, que encontrou o espécime mais recente.

Quando ele avistou o fêmur fossilizado, logo percebeu do que se tratava. Era, afinal, coerente com a idade preservada naquela camada de rocha sedimentar. Como de costume, a equipe retirou o bloco de pedra para o trabalho minucioso no laboratório, que envolve estabilização com resina e exposição do fóssil com equipamento adequado para evitar danos. A surpresa foi encontrar partes do esqueleto ainda desconhecidas para outros lagerpetídeos, especialmente importantes: o crânio com a ponta da mandíbula e a porção posterior, incluindo a órbita, e a mão com dedos compridos, especialmente o quarto dígito. “Esse dedo é o que, nos pterossauros, é alongado e suporta a asa”, explica Müller.

“A relação deles com os pterossauros foi proposta em 2020”, explica o paleontólogo Max Langer, do campus de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP-RP), que não participou do estudo deste ano, mas sim do anterior, que associou Ixalerpeton aos vertebrados alados. “Uma proposta raramente recebe consenso tão rápido na literatura, mas o novo artigo deixa mais robusta a ideia dos lagerpetídeos como precursores dos pterossauros, que se torna hoje a hipótese mais aceita.” Ainda não há indícios, em São João do Polêsine, de pterossauros contemporâneos.

Janaína Brand Dillman O fóssil da nova espécie preservou características inéditas, como as mãos e a parte anterior do crânioJanaína Brand Dillman

A interpretação desse animal como carnívoro – ou ao menos insetívoro – e com capacidades arborícolas vem da comparação com organismos semelhantes, fósseis ou atuais. Não significa que esteja tudo resolvido: nas aves de hoje, bicos fortes e curvos podem ter uma variedade de usos, como quebrar frutos duros, impressionar o sexo oposto, produzir sons ou mesmo regular a temperatura. O crânio de V. gassenae não tem dentes preservados, mas com base em outros lagerpetídeos é provável que tivesse uma dentição pouco afeita a uma dieta herbívora.

A descoberta fascina os pesquisadores pelo que permite imaginar sobre esse animal, mas ainda mais interessante é o que ela pode vir a significar. A percepção geral era de que esses animais precursores de pterossauros e dinossauros fossem bastante genéricos e uniformes. “Com essa descoberta fora da curva, começamos a perceber que essa hipótese estaria equivocada”, conta Müller, da UFSM. “O que o estudo mostrou, com uma análise numérica bem embasada e detalhada, é que essa explosão de diversidade ocorreu antes do surgimento dos pterossauros e dinossauros, dentro do grupo dos precursores”, explica Langer, da USP. “É como se esses dois grupos fossem a consequência natural de um aumento de diversidade que aconteceu antes de seu surgimento.” Müller reitera a inversão da lógica vigente: “Dessas linhagens bem diversas teriam sido selecionados os dinossauros e pterossauros”.

Em termos globais, o estudo corrobora observações feitas na África em anos recentes de que um aumento no padrão de chuvas tenha enfraquecido barreiras geográficas impostas por zonas desérticas e permitido a migração da fauna de sul para norte. Nas Américas o mesmo podia estar acontecendo na mesma época, há cerca de 230 milhões de anos, com base na semelhança entre os fósseis gaúchos e exemplares encontrados nos Estados Unidos. Vale tanto para lagerpetídeos como para dinossauros da época, de acordo com o pesquisador da UFSM.

Novos capítulos da história devem surgir nos próximos anos. Müller conta que os fósseis continuam a ser encontrados na região. Os espécimes já coletados, armazenados em coleções de pesquisa, também poderão ser reanalisados e reinterpretados à luz do novo conhecimento. Os ossos de V. gassenae ficarão expostos no Centro de Apoio à Pesquisa Paleontológica em São João do Polêsine, um centro de pesquisa cuja exposição recebe até 700 visitantes por mês.

A edição impressa de setembro traz uma versão resumida desta reportagem.

Artigo científico
MÜLLER, R. T. et al. New reptile shows dinosaurs and pterosaurs evolved among diverse precursors. Nature. 16 ago. 2023.

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