Imprimir PDF Republicar

Antonio Candido

Antonio Candido: O pioneirismo do mestre

A história da concessão das primeiras bolsas para Humanidades

Antonio Candido: apoio da FAPESP foi decisivo para o setor

BEL PEDROSA/FOLHA IMAGEMAntonio Candido: apoio da FAPESP foi decisivo para o setorBEL PEDROSA/FOLHA IMAGEM

O crítico e ensaísta Antonio Candido de Mello e Souza tem qualidades conhecidas e decantadas em qualquer lugar do Brasil onde haja laivos de inteligência. A capacidade como professor, escritor e sua influência na interpretação da literatura brasileira é sempre louvada. O que pouco se sabe é a participação decisiva que ele teve nos primeiros financiamentos da FAPESP para a área de Humanidades. Sem a iniciativa, a insistência e o prestígio do pesquisador, os bolsistas certamente levariam mais tempo para receber apoio financeiro. Para si, o professor, de 84 anos, nunca pediu auxílio ou bolsa – o fez apenas para alunos que tinham pesquisa relevante a ser feita.

A trajetória do crítico começou no interior de Minas Gerais. Carioca criado em Cássia e em Poços de Caldas, cidades mineiras, Antonio Candido não freqüentou a escola primária. “Aprendi a ler tarde. A minha mãe tinha idéia que não se podia cansar a cabeça das crianças. Então, comecei a ler sozinho e meu pai disse a minha mãe: ‘É bom você começar a ensinar a esse menino senão ele vai chegar naquele estilo que se lê ô mé-ni-nó che-gou na ca-sa’”, contou ele em entrevista à revista Investigações – Lingüística e Teoria Literária, da Universidade Federal de Pernambuco, em 1995. Mais tarde, cursou o ginásio em Poços de Caldas e em São João da Boa Vista, em São Paulo. A vida acadêmica teve início na década de 30, quando ingressou na Faculdade de Direito (abandonada no último ano) e na de Filosofia, na seção de Ciências Sociais.

Tornou-se professor assistente de sociologia em 1942 e ficou no cargo até 1958, quando resolveu se dedicar apenas à literatura. Antes, em 1954, obteve o título de doutor em ciências sociais com a tese Os parceiros do rio Bonito, que depois se tornaria referência obrigatória na área.“Esse foi um livro que teve sorte”, diz o pesquisador. “Onde já se viu uma obra de sociologia alcançar nove edições no Brasil?”, ironiza. A última delas, publicada em 2001, traz as fotos tiradas na época da pesquisa.

Embora tivesse como origem a sociologia, sempre fez crítica literária em jornais e revistas. “Decidi prestar um concurso de literatura brasileira na Universidade de São Paulo (USP) para mudar de área assim que tivesse uma chance”, conta. Ele passou no concurso em 1945, aos 27 anos, e ganhou o título de livre-docente, que trazia embutido, na época, o grau de doutor. A oportunidade de lecionar apenas literatura veio em 1958 quando surgiu a Faculdade de Filosofia de Assis, posteriormente incorporada à Universidade Estadual Paulista (Unesp). Em 1961, voltou à USP para assumir como professor colaborador a nova disciplina de teoria literária e literatura comparada, da qual se tornaria titular em 1974. Trabalhou por dois anos na Universidade de Paris, entre 1964 e 1966, e um ano na Universidade Yale (1968), nos Estados Unidos – não por acaso, eram anos de chumbo no Brasil.No anos 70, coordenou o Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Antonio Candido sempre escreveu na imprensa. Foi crítico da revista Clima (1941-44), dos jornais Folha da Manhã (1943-45) e Diário de São Paulo (1945-47) e em 1956 preparou o projeto do prestigiado Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo. Entre 1973 e 74 foi um dos dirigentes da revista Argumento, proibida pelo regime militar. Também participou da luta contra a ditadura do Estado Novo, entre 1943 e 45, e um dos fundadores da União Democrática Socialista, transformada em 1947 no Partido Socialista Brasileiro. Em 1980, participou da fundação do Partido dos Trabalhadores.

Mestre da teoria literária, autor da obra seminal Formação da Literatura Brasileira, Antonio Candido inaugurou uma nova interpretação da literatura. Para ele, há uma clara distinção entre a literatura e o sistema literário. Ou seja, ele não está interessado em estudar fenômenos isolados, mas o cruzamento de fenômenos. “A literatura é um processo histórico, de natureza estética, que se define pela inter-relação das pessoas que a praticam, que criam uma certa mentalidade e estabelecem uma certa tradição”, disse à revista Investigação. “Quando isso acontece, a literatura está constituída.” O crítico comprou algumas brigas ao reafirmar a tese de que a literatura brasileira não nasceu no século 16 – na realidade, veio de Portugal. Assim, a carta de Pero Vaz Caminha e os poemas de José de Anchieta são manifestações de uma literatura madura, que é a portuguesa. Por conta dessas idéias, foi acusado de ser dono de uma visão excessivamente européia. O pesquisador se orgulha pelo fato de um dos grandes críticos da literatura latino-americana, o uruguaio Angel Ralna, ter adotado o seu ponto de vista e passado a aplicá-lo sistematicamente à America Latina.

Foi contemporâneo e amigo de intelectuais do calibre de Décio de Almeida Prado, Sérgio Buarque de Holanda, Paulo Emílio Salles Gomes e Florestan Fernandes. Formou uma geração brilhante no primeiro ano em que voltou à USP para ensinar teoria da literatura, em 1961: Celso Lafer, Roberto Schwartz, Walnice Nogueira Galvão,Victor Knoll e Mariano Carneiro da Cunha, entre outros. Na entrevista abaixo, Antonio Candido fala especificamente sobre como a FAPESP começou a apoiar a área de Humanidades.

O senhor foi a primeira pessoa a conseguir da FAPESP uma aprovação de bolsas para a área de humanas e, especificamente, para literatura. Por que era difícil obter essas bolsas?
Tenho a impressão de que a FAPESP foi concebida como fonte de auxílio para as ciências propriamente ditas. E talvez, devido à origem de seus primeiros dirigente, com maior peso para o lado das biológicas. Não creio que tenha havido preconceito, mas sim a resultante de uma determinada concepção, expressa no peso do nome: o amparo era às Ciências, e as Humanidades não eram consideradas como algo do âmbito destas. Chego a pensar que me concederam uma bolsa para Letras porque o diretor científico me conhecia e tinha confiança em mim. Como era eu que pedia…

Como ocorreu o processo?
Se me lembro bem, solicitei essa primeira bolsa ali por 1963, para a licenciada em Letras Pérola de Carvalho, que seguia o meu curso de especialização (não se falava ainda em pós-graduação), a fim de realizar no Rio de Janeiro pesquisas sobre as fontes inglesas de Machado de Assis. Ela fez um trabalho notável, reunindo material enorme e significativo, sempre louvada pelos assessores. Infelizmente, acabou desistindo e não terminou a tarefa.

Como foram conseguidas as demais bolsas?
Animado por este precedente, pedi em seguida bolsas para três estudantes de especialização fazerem o levantamento das anotações marginais da Biblioteca Mário de Andrade, ainda na casa onde vivera. O pedido foi recusado, pois naturalmente acharam que eu estava abusando e querendo mais exceções… As moças começaram a pesquisa sem qualquer auxílio. Tempos depois encontrei numa recepção o dr. Celso Antonio Bandeira de Mello, secretário geral da FAPESP, e ele me perguntou por que eu não tinha mais feito solicitações. Contei a recusa e ele me aconselhou a insistir. Insisti e (naturalmente, por intermédio dele) recebi as bolsas.

Do que se tratava?
Foi uma pesquisa de conseqüências importantes, efetuada por Maria Helena Grembecki, Nites Teresinha Feres e Telê Ancona Lopez. Durante alguns anos elas fizeram a localização e transcrição sistemática da marginália de Mário de Andrade, de que resultaram as suas dissertações de mestrado. Mais tarde, Nites e Telê fizeram, também a partir da sua experiência nessa investigação, as teses de doutorado, sempre com bolsas da FAPESP. O material que colheram foi todo recolhido ao Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), onde se encontra, e essa pesquisa foi a semente a partir da qual se formou uma equipe especializada na obra de Mário de Andrade, cujo acervo acabou incorporado ao IEB. Foi certamente a investigação de maiores conseqüências dentre as que orientei. Basta verificar os seus frutos ao longo dos anos e até hoje no IEB. A partir de então, não tive dificuldade em obter bolsas, graças ao exemplo que foi o rendimento excelente das primeiras bolsistas. Elas mostraram à FAPESP que na área de humanas, inclusive Letras, o trabalho pode ser sério e produtivo.

As bolsas estavam vinculadas a algum projeto de pesquisa do qual o senhor era o coordenador ou a projetos da pós-graduação em que o senhor funcionava como orientador?
No meu caso, o objetivo era predominantemente a pós-graduação. Nunca solicitei auxílio ou bolsa para trabalhos pessoais.

Em que medida o apoio da FAPESP de fato ajudou na formação de pesquisadores de alto nível na área de literatura, em São Paulo?
O apoio da FAPESP foi decisivo. Creio que, sem ele, não teria sido possível desenvolver o trabalho que enriqueceu de maneira notável a produção da USP e de outras instituições em matéria de estudos literários. Pudemos, além das bolsas, ter a oportunidade de contratar professores estrangeiros como visitantes, mandar alguns estudantes ao exterior, disciplinar o trabalho intelectual graças à exigência rigorosa dos relatórios, receber auxílio para publicações, etc. No tempo em que solicitava bolsas, isto é, até 1978, contei sempre com o apoio dos dirigentes da FAPESP, à qual a USP e outras instituições devem, sem dúvida, as condições necessárias para mostrar à comunidade acadêmica a pertinência do trabalho em nosso setor.

O senhor acredita que esse apoio proporcionou alguma mudança importante dentro da universidade?
Nesse sentido, penso que a FAPESP teve papel importante na mudança dos hábitos mentais e na própria concepção do trabalho universitário. No começo, lembro que quando se falou de tempo integral para o setor de Humanas (ali por 1946-47), várias importantes personalidades universitárias se mostraram escandalizadas: tempo integral para quem não usava laboratórios nem fazia experimentações? Passadas as reticências iniciais, a FAPESP foi decisiva para mudar essa visão obsoleta.

Republicar