O pediatra paulistano Antonio Sérgio Petrilli não para de buscar tratamentos inovadores e menos agressivos do câncer em crianças e adolescentes desde 1978, quando partiu para uma temporada no Memorial Sloan Kettering Cancer Center, de Nova York. Havia poucas opções terapêuticas no Brasil e em alguns casos eram bastante mutiladoras, como as usadas para combater um câncer ósseo chamado osteossarcoma, que frequentemente exigia a amputação de braços e pernas. De volta a São Paulo, ele implantou ou adaptou no A.C.Camargo Cancer Center as técnicas de tratamento que aprendera nos Estados Unidos, fez mestrado e doutorado na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e logo depois assumiu o setor de Oncologia Pediátrica do Departamento de Pediatria da universidade. Em 1991, decidiu dar um passo além de seus deveres clínicos e acadêmicos: aliou-se ao engenheiro civil Jacinto Guidolin e à voluntária Lea Della Casa Mingione para, juntos, criarem o Grupo de Apoio ao Adolescente e à Criança com Câncer (Graacc), uma organização não governamental (ONG) planejada com o propósito de ampliar o atendimento. Com um corpo crescente de voluntários, profissionais da área da saúde e de doadores individuais e empresários, além do apoio da Unifesp, o Graacc construiu um hospital na cidade de São Paulo, que serve também para o treinamento de médicos da universidade. Em 2017, foram atendidos 3.724 crianças e adolescentes, dos quais 406 eram casos novos, e realizadas 35 mil consultas, 2 mil cirurgias e 19 mil sessões de quimioterapia.
Formado em 1970 pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), professor titular de oncologia pediátrica na Unifesp, autor ou coautor de 132 artigos científicos, casado e pai de um casal de filhos, Petrilli recebeu no início de agosto o Prêmio Octavio Frias de Oliveira, promovido pelo Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp), na categoria Personalidade de Destaque em Oncologia. “Ser reconhecido pelos pares, que escolhem os premiados, é muito bom”, comemorou. Aos 71 anos, Petrilli acompanha de perto as novas pesquisas em biologia molecular do laboratório chefiado pela bióloga Sílvia Toledo, com base em um banco com amostras de tumores e tecidos, em busca de formas mais eficazes de tratar os tipos de câncer resistentes à quimioterapia e radioterapia. Além de professor, supervisor médico e diretor técnico na instituição, ele participa da captação de recursos – em média, R$ 60 milhões por ano – para manter o hospital do Graacc. Por essa razão, teve de apressar o fim da entrevista, concedida em 16 de agosto, para ir ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e receber uma doação de R$ 712 mil. O dinheiro veio do pagamento de dívidas de empresas convertido para instituições filantrópicas.
Especialidade
Oncologia pediátrica
Instituição
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)
Formação
Graduação em medicina pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp, 1970), mestrado (1987) e doutorado (1988) pela Unifesp
Produção científica
132 artigos científicos
Em que o câncer de criança é diferente do de adulto?
Há muitas diferenças. O câncer infantil equivale a 3% dos casos de câncer de adultos, que se manifesta principalmente a partir dos 50 anos. Em crianças a maioria dos cânceres resulta de alterações na divisão de células de tecidos ainda não amadurecidos e não depende de fatores ambientais. Em adultos, o tumor esfolia, sangra e tem marcadores no sangue, o que permite que se faça prevenção e diagnóstico precoce. Em crianças a medida mais eficaz é fazer diagnóstico precoce, a partir do exame clínico, que detecta, por exemplo, dor de cabeça, dor nas pernas e manchas roxas pelo corpo.
O tratamento também é diferente?
Sim. É baseado em uma quimioterapia mais intensa que a do adulto, já que na criança o tumor cresce mais rapidamente. No adulto as células se dividem em média a cada 30 dias e em crianças, em alguns casos, o turn-over é de 48 horas. Nas leucemias, a criança recebe inicialmente quimioterapia de uma a três vezes por semana, durante 30 ou 40 dias. Como nos adultos, o efeito mais significativo nas crianças é a queda dos glóbulos brancos. Esse é inclusive um efeito desejável da quimioterapia. Se o nível de glóbulo branco não cai, é porque a dose quimioterápica está baixa, indicando que a criança e o adolescente têm maior tolerância ao remédio. Nesses casos, é necessário aumentar a dosagem da medicação. A criança se recupera da quimioterapia mais rapidamente que o adulto.
Como lidar com os pais dos pacientes?
Antigamente, o mais angustiante era lidar com um pai ou uma mãe sem ter todos os recursos de que precisávamos para o tratamento. Hoje, aqui no Graacc, sabemos que vamos enfrentar um inimigo com o que há de mais moderno no mundo em termos de tratamento. Ainda assim, é difícil. Para as crianças, explicamos por meio de desenhos e com os pais mantemos um diálogo constante, com informações sobre o tratamento. A relação com os adolescentes é especial. Eles questionam e exigem maior habilidade na comunicação. Temos de conquistá-los e ganhar sua confiança. Aprendemos que não devemos ter pena do doente, mas respeito. Enfermeiros clínicos, psicólogos, nutricionistas, professores, médicos residentes e oncologistas, todos trabalham juntos para motivar o paciente a brigar pela sua vida e se envolver com o tratamento. É importante que pacientes e familiares conheçam a doença e saibam como o tratamento é feito. O paciente precisa saber que o remédio, às vezes, o faz vomitar e ele não conseguirá trabalhar, estudar ou fazer o que queria de sua vida naquele momento. Atualmente, as médias de cura são altas, chegando a 70%, quando podemos dispor de todos os recursos para o tratamento.
“Trabalhamos para motivar o paciente a brigar pela sua vida e se envolver com o tratamento”
Mesmo assim, há um custo emocional alto também para o médico, como o de ver uma criança morrer…
É importante pensarmos o câncer longe da ideia de terminalidade, mas também é importante concebermos a morte como parte da experiência humana. Muitas vezes nossos pacientes têm uma história longa com a doença e preparamos o caminho e contamos dos remédios que não funcionaram. A relação entre o médico, o paciente e a família é um filme, não uma fotografia. O paciente percebe o que você sente no olhar, na respiração.
Por que o senhor entrou nessa área?
Porque tive a possibilidade de trabalhar na residência com um pediatra de quem gosto muito, o Alois Bianchi. Eu o conheci no Hospital do Servidor Público Estadual, para onde fui depois da graduação e de ter prestado um ano de serviço militar na Aeronáutica. O Bianchi, além do Servidor, trabalhava no A.C.Camargo. Ficava meio período em cada hospital. Nunca havia pensado em trabalhar com câncer, mas em 1974 estive com ele no A.C.Camargo e lá iniciei minha formação em oncologia pediátrica. Em 1978 conheci a pediatra Norma Wollner Steinberg, falecida em 2017. Ela aceitou que eu fosse estudar no Memorial Sloan Kettering Cancer Center, de Nova York. No Brasil, na época, pouco sabíamos sobre o câncer de criança e a mortalidade era alta. O A.C.Camargo tinha uma enfermaria grande, com muitas crianças, e a mãe não podia ficar junto.
Como era o tratamento?
As primeiras leucemias começaram a ser curadas com quimioterápicos no início dos anos 1970. O tratamento para tumores sólidos era feito por meio de cirurgia. Para linfomas de intestino, que respondem bem à quimioterapia, como veria mais tarde nos Estados Unidos, o tratamento ainda era cirúrgico, com grandes ressecções da alça intestinal. As crianças morriam mais de infecção, por causa da quimioterapia e das cirurgias, do que de câncer. A mortalidade era muito alta, de 85% a 90%. Com recursos próprios, junto de minha esposa e filhos, decidi ver como era realizado o tratamento nos Estados Unidos. Passei um ano no Memorial e conheci as ideias novas que começavam a aparecer na oncologia pediátrica. Lá conheci o médico Gerald Rosen, especialista em tumores ósseos, e comecei a me interessar pela carreira científica. Antes de voltar ao Brasil fui para o MD Anderson Cancer Center, em Houston, no Texas. Ali, com Norman Jaffe, aprendi a terapia intra-arterial para osteossarcoma. Estavam começando a fazer cirurgias conservadoras de membros, com quimioterapia pré-operatória para reduzir o tamanho do tumor antes da cirurgia. Os médicos deixavam um cateter bem próximo do tumor e injetavam a medicação, necrosando o tumor. Antes dessa técnica, era necessário tirar o osso inteiro ou amputar a perna, como era feito no Brasil. Nos Estados Unidos, usavam cateteres sofisticados e depois jogavam fora, porque não podiam reutilizá-los. Fiquei amigo do médico radiologista que fazia o cateterismo e perguntei: “Tem problema guardar esses cateteres? Pretendo começar a fazer isso lá no Brasil”.
Como foi a volta ao Brasil?
Começamos a fazer os protocolos de tratamento de leucemias e linfomas usados nos Estados Unidos, a treinar as equipes e a adaptar as técnicas. No início, para a terapia intra-arterial para osteossarcoma, com os cateteres que nos mandavam dos Estados Unidos e reesterilizávamos, usávamos cisplatina, uma droga muito mais acessível; os remédios que usavam nos Estados Unidos eram muito caros. Com os médicos Jacyr Quadros e Elvira Côrtes, usávamos uma bombinha de infusão para injetar a medicação na artéria, e o tumor diminuía. Como na época o A.C.Camargo não tinha ortopedista para fazer os procedimentos com os cateteres, combinamos com Helio Consentino, da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, e com Valter Penna para iniciar a quimioterapia intra-arterial para osteossarcoma. Esses foram meus primeiros casos de câncer ósseo. Em seguida chegaram os ortopedistas Reynaldo Gracia, da Escola Paulista de Medicina [atual Unifesp], e Olavo Pires de Camargo, da USP [Universidade de São Paulo]. Formamos o primeiro grupo brasileiro de tratamento de osteossarcoma, com ortopedistas, patologistas, oncologistas e radiologistas. Deixamos de indicar a amputação para todos os casos; pelo menos 60% dos pacientes conservavam a perna. Com essas mudanças, as curvas históricas de sobrevida foram de 15% a 20% para 50%. Hoje, usamos metotrexato e aumentamos a sobrevida para 65%. Com o desenvolvimento da cirurgia ortopédica oncológica, foi possível empregar soluções biológicas, utilizando o próprio osso saudável do paciente, que é colocado no lugar do osso retirado.
Há outros grupos que trabalham na mesma área?
Em São Paulo há grupos fortes e muito atualizados em osteossarcoma em vários hospitais. Dizemos que, antes do aumento da sobrevida, as próteses não davam tanta complicação porque os pacientes morriam antes. Agora, com o tratamento quimioterápico muito mais intensivo, a vida útil das próteses é menor que a sobrevida dos doentes. O paciente vive mais e a prótese tem de ser trocada.
Por que fez pós-graduação depois de toda essa experiência?
Meu sonho era fazer mestrado e doutorado para poder ensinar. Eu trabalhava no A.C.Camargo quando comecei a pós-graduação na Escola Paulista, em 1984. Ao terminar o doutorado, em 1989, surgiu a possibilidade de trabalhar com oncologia pediátrica na universidade. Havia apenas três leitos no nono andar do Hospital São Paulo [ligado à Unifesp] e brigávamos muito contra as condições da enfermaria, porque às vezes as crianças não tinham pijama nem remédio. Como já tinha feito muito no A.C.Camargo, em 1990, na Unifesp, pensei: “Vamos começar de novo aqui”. Hélio Egydio Nogueira, na época diretor-superintendente do Hospital São Paulo, nos ajudou muito nesse começo. Jacinto Guidolin, pai de um paciente meu, foi fundamental; ele era engenheiro civil e foi presidente do Graacc de 1991 a 2001. Lea Della Casa Mingione era voluntária do A.C.Camargo e a convidei para vir para cá. Ela, Jacinto e eu começamos o Graacc, em 1991. Logo depois chegaram dois oncologistas pediátricos, Flavio Luisi e Nasjla Saba, e uma enfermeira, Carla Dias. Em 1992, alugamos uma casa para a oncologia pediátrica, ocupávamos apenas a parte de baixo, a outra metade era da nefrologia. Era uma situação bem precária, mas começaram a vir voluntários e pais de pacientes para nos ajudar.
Como se organizaram nesse começo?
Vimos que primeiramente tínhamos de saber o que queríamos: um lugar para tratar pacientes. Explicávamos aos potenciais doadores que havia professores e vários profissionais do setor de oncologia do Departamento de Pediatria da Escola Paulista e só não tínhamos lugar nem recursos para tratar as crianças. Em outra viagem aos Estados Unidos, em 1988, visitei várias instituições de tratamento de câncer infantil e gostei do Hospital Saint Jude Children’s Research Hospital, em Memphis, no Tennessee. Eles têm uma organização que capta recursos, que é o que fazemos hoje. Nossa forma de funcionamento foi inspirada no que vi por lá. Criamos o Graacc como uma organização não governamental.
Quais as vantagens de ser uma ONG?
Como Graacc, havia mais facilidade para receber as doações e prestar contas, porque ninguém queria doar para uma universidade e saber que o dinheiro poderia ser distribuído para outros setores, igualmente necessitados. Vencemos algumas barreiras e conseguimos o certificado do CNAS, o Conselho Nacional de Assistência Social, o que nos permitiu pedir a doação e dar o recibo em nome do Graacc. Batemos à porta do Banco Itaú, Telefônica, Shopping Eldorado, Fundação Safra e outras empresas, para captar recursos, por meio de pessoas que eram conhecidas por causa de pacientes e outras que foram chegando; um foi abrindo a porta para os outros. E assim compramos três casas na Vila Mariana [zona sul de São Paulo], antes de pensarmos no primeiro de nossos dois prédios atuais. Um pessoal importante foi o da Fundação Orsa, cujo diretor, Sérgio Amoroso, é o presidente de nosso conselho. Para a primeira reunião, ele convidou Jacinto e eu e marcou para uma Quinta-feira Santa às 17 horas. Atravessamos a cidade com um trânsito horrível, véspera de feriado. Depois ele contou que era para ver se iríamos mesmo. Ele pagou três andares de nosso primeiro prédio, ao lado deste em que estamos.
“O câncer tornou-se a principal causa de morte entre 1 e 19 anos de idade”
O senhor mesmo ia às reuniões com os empresários?
Sim. Tinha de largar o que estava fazendo para explicar nossos planos. As empresas e instituições gostavam de ouvir os voluntários, que são quem abrem as portas, mas o médico reforçava, explicando o que precisávamos. Em essência, queríamos espaços adequados para ampliar as chances de cura do câncer de crianças e jovens. Era estratégico ir junto, porque assim pude participar do projeto inteiro. Alguns serviços que colocavam só o voluntário para buscar recursos se tornaram em geral hospitais essencialmente assistenciais, com pouca inovação. Ao mesmo tempo, em 1993, estávamos entrando no McDia Feliz [dia em que parte da renda líquida da venda de sanduíches do McDonalds é direcionada para instituições de combate ao câncer infantil]. No primeiro ano ganhamos perto de R$ 100 mil. Chegamos ao McDonald’s por meio do Benjamin Kopelman [na época professor de pediatria da Unifesp], que conhecia um diretor que trabalhava lá. Vieram ver e gostaram. Uma vez o Gregory Ryan [1950-2017], presidente do McDonalds, veio fazer a entrega de um cheque. Estávamos construindo um hospital, ainda pequeno, e falei: “Nosso sonho é ter um prédio para abrigar o hospital”. Ele perguntou: “Mas por que você não sonha?”. Depois de um tempo, quando ele voltou, ao ver o prédio, falou: “Só não sabia que você tinha sonhado tão alto”. Na época o Renato Kherlakian, criador da marca de roupas Zoomp, promovia desfiles cuja arrecadação vinha para o Graacc; eu era pediatra da filha dele. Andre Guper foi fundamental no desenvolvimento do projeto do hospital. Nunca teríamos alcançado tanto sem a visão dos empresários, que, além das doações, fizeram o planejamento estratégico. Eu não teria cabeça para fazer aquilo – eles ajudaram no controle de custos e gastos. Ao mesmo tempo, nosso voluntariado começou a se envolver mais e cresceu. Hoje temos perto de 600 voluntários, que trabalham em média quatro horas por semana. Muitas pessoas ajudam muito. E assim formamos o tripé empresariado, voluntariado e universidade.
Como está a ligação com a Unifesp?
Renovamos o acordo em 2017. O terreno em que construímos este prédio é do Graacc e foi comprado com os recursos captados com as doações. Assim podemos ter autonomia. Quando o primeiro prédio ficou pronto, em 1998, formamos um conselho administrativo, com empresários, intelectuais e voluntários. O Graacc convidou o Departamento de Pediatria da Unifesp, sem prejuízo da autonomia financeira, para fazer a operacionalização tecnocientífica do hospital. Foi um convênio absolutamente acadêmico, com ensino, pesquisa e assistência. O acordo é que o chefe do Setor de Oncologia da universidade seria o diretor técnico da instituição. Ele salvaguardaria a marca da Unifesp dentro do Graacc. A universidade permitiu que usasse sua marca e o Graacc passou a ser o Setor de Oncologia Pediátrica da Unifesp. O docente poderia trabalhar no Graacc como se estivesse na universidade. Os alunos e os médicos residentes também atuam aqui. Temos um programa com a Pró-reitoria de Extensão, com residência multidisciplinar. Formamos sete oncologistas pediátricos por ano. Eles fazem dois ou três anos de pediatria e depois mais três aqui. Já formamos perto de 190 médicos residentes, alguns permaneceram aqui e outros voltaram para seus estados. Sou docente, diretor técnico e participo da captação de recursos.
Qual é a participação do Sistema Único de Saúde (SUS) no Graacc?
Em 2017, o SUS respondeu por 85% dos atendimentos e gerou uma receita de R$ 15 milhões. Os convênios privados, com 15% dos pacientes, renderam R$ 16 milhões. Vamos fazer mais dois andares de internação no prédio onde estamos para aumentar a participação dos convênios para 25% a 30%, o que deve aumentar a receita operacional. Nossa despesa anual é de R$ 94 milhões. Quase sempre começamos o ano com um déficit de R$ 64 milhões, mas estamos equilibrados porque investimos nesse modelo de buscar dinheiro na sociedade civil. A captação por doadores é de R$ 81 milhões, mas cada real arrecadado custa R$ 0,25, porque temos 100 pessoas trabalhando nisso atualmente, chefiadas pela Tammy Allensdorf. O Graacc tem um cadastro de cerca de 319 mil pessoas físicas e empresas ativas, com uma média mensal de 98 mil doadores e quantias que vão de R$ 5 a R$ 1.000. Conseguimos recursos também com campanhas e eventos, como o McDia Feliz, emendas governamentais e doações, como a do Tribunal de Justiça, que vou receber agora à tarde.
Como está o tratamento do câncer infantil hoje no país?
Como a mortalidade por diarreia, meningite, sarampo e outras doenças infectocontagiosas caiu muito nas últimas décadas, o câncer tornou-se a principal causa de morte entre 1 e 19 anos de idade. Isso ocorre nos Estados Unidos e em outros países mais desenvolvidos. A prevalência de câncer infantil é de 16 para cada 100 mil crianças, entre 1 e 19 anos. São cerca de 12 mil casos novos por ano; a maior parte é atendida nos diversos centros públicos país afora e 25% a 30% têm seguro-saúde. No Graacc, a sobrevida de cerca de 6 mil crianças de 0 a 10 anos que atendemos de 1991 a 2015 é de 74% em cinco anos e de 71% em 10 anos. É um resultado de país desenvolvido.
Como é a situação geral?
Há centros de atendimento ótimos em São Paulo, como o Itaci, do HC da USP, o Centro Boldrini, em Campinas, Hospital de Amor, em Barretos. Há outros no Rio de Janeiro, Porto Alegre, Recife, Brasília e Curitiba. Mas muitas crianças ainda ficam sem atendimento. A sobrevida nacional está em torno de 50%, mas não temos certeza sobre esse número. O Ministério da Saúde identifica os casos principalmente por meio dos atestados de óbito, estimando a sobrevida a partir da mortalidade. Não conseguimos dados numéricos seguros porque existe um número grande que morre e é notificado como causa desconhecida. Essa realidade vem mudando. Nos últimos anos está diminuindo o número de mortes de origem não definida e aumentando o registro de casos de crianças com câncer. Recentemente, fui para Belém, no Pará, e conheci o Hospital Oncológico Infantil Octávio Lobo, planejado por ex-residentes do Graacc. É uma parceria público-privada, que funciona com um contrato com o governo estadual. Estão no terceiro ano de funcionamento. No início esperavam 70 casos novos por ano e já estão com 170. Estão chegando crianças de toda parte da região Norte. É uma população de lugares distantes, que antes falecia na floresta de convulsões e outras causas e não tinha acesso a uma tomografia para diagnosticar um tumor cerebral. A curva de sobrevida pode não mudar logo, porque ainda está entrando gente no sistema, em estágio avançado, mas em algum tempo vai melhorar.
Quais os próximos passos do Graacc?
Uma das prioridades para os próximos anos é ampliar o trabalho em genética. A bióloga Sílvia Toledo, que dirige nosso laboratório de pesquisa molecular, está coordenando um projeto para examinarmos as mutações genéticas mais frequentes em 500 pacientes com tumores no sistema nervoso central, leucemias e retinoblastomas. Já recebemos um sequenciador e vamos trabalhar com a equipe do Children’s Hospital, da Universidade da Califórnia em Los Angeles, que verá as mutações mais frequentes deles e nós, as nossas. É um projeto orçado em R$ 2,5 milhões, financiados por doadores privados. Vamos usar nosso banco de tumores, que tem cerca de 10 mil amostras de sangue e fragmentos de tecidos. Esse material é moeda de ouro para o que vai ser feito daqui para a frente, a medicina de precisão, que é hoje mais usada com adultos do que com crianças. A maioria dos cânceres de crianças é geneticamente mais simples que os dos adultos e pode ser tratada com quimioterapia, radioterapia e cirurgia. Mas para alguns tipos, como o tumor cerebral e ósseo, que apresentam menor sobrevida que outros, precisamos de estudos mais aprofundados. Queremos entender melhor o surgimento e a evolução do câncer em cada paciente e ajustar o tratamento de acordo com as alterações genéticas que detectarmos.
Pensa em alguém para substituí-lo no Graacc?
Já comuniquei ao nosso conselho que no dia 23 de dezembro de 2021, daqui a três anos e pouco, vou me afastar. Farei 75 anos, vou deixar a universidade e estou me preparando para passar o boné, com muita alegria. Não é bom ficar além do que se deve. Não existe serviço ou instituição cuja qualidade não caiu quando o chefe não saiu na hora certa. Quem fica mais do que devia só estraga o que fez. Estou preparando quatro pessoas e o conselho decidirá quem vai ficar. Até lá vou manter o trabalho, a liderança e a vontade de acordar cedo. Ainda tem muita coisa para fazer. Já comecei a me afastar. Hoje vou ao meu consultório quatro dias por semana, faço pilates, ando no parque. Depois que sair, se a cabeça estiver boa, penso em dedicar mais tempo ao consultório e ajudar outras pessoas a criar projetos similares ao do Graacc.