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Resenhas

No fio da navalha

Textos de Novais se esbatem entre a arte e a ciência

Todos aqueles que privamos da intimidade intelectual de Fernando Novais bem sabemos: lê muito, reflete como poucos, escreve moderadamente, porque extremamente exigente com a natureza do conteúdo traduzido na sua escrita. Um perfeccionista, pois se esmera no burilar detalhado de seu texto que, finalizado, resplandece o brilho da obra de arte: um clássico. Este é o qualificativo justo para seu Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial, que, desde sua primeira edição, em 1979, transformou-se em referência incontornável para todos os estudiosos do período colonial. Impecável no seu acabamento, modelar no perfeito entrelaçamento entre forma e conteúdo. Simples; sóbrio; sem excessos ornamentais; correto; apurado; estético; um texto imorredouro, independentemente das alterações de conteúdo e senso explicativo que a pesquisa ulterior viesse a prodigalizar. Nestes termos, para além de uma obra histórica, transformou-se numa obra de ficção histórica, de refinado acabamento literário, pureza de expressão, originalidade e forma irrepreensível. Um modelo a ser imitado no gênero; lido e comentado nas escolas; um clássico na acepção do termo por ser sempre moderno; pedagógico e paradigmático, por seu vigor que alimenta a renovação historiográfica, mesmo que tomado em seu viés antitético.

Definitivamente alojado na galeria dos grandes intérpretes do Brasil, o mais novo professor emérito da USP brinda a comunidade científica e os leitores em geral com seu Aproximações – Estudos de história e historiografia, primorosa edição que merece o autor e a editora Cosac Naify. É preciso que se diga que não foi o ego do autor que originou a obra. Foi a invenção de seus alunos de pós-graduação que, reunidos em seminário comemorativo pela passagem dos 70 anos de Fernando Novais, decidiram registrar a data com esta publicação. Uma selecta apreciável de textos do autor de natureza vária, subdivididos em dois agrupamentos, um de história, outro de historiografia, completada por compilação de cinco entrevistas por ele concedidas entre 1989 e 2004, que, ao longo de 64 páginas, fala de seu mundo da história, um quase ensaio de ego-história. A coleção de estudos da primeira parte inclui textos, em sua grande maioria, de difícil acesso a seus leitores. Mas incluem também reflexões seminais, que vertebram sua obra inteira e, adaptados, integram seu clássico já referido. A seleção realizada exclui textos consagrados, a exemplo do capítulo sobre o “Capitalismo tardio e sociabilidade moderna”, publicado no volume 4 da História da vida privada no Brasil, em parceria com João Manuel Cardoso de Mello, o que talvez se explique por se alojar fora do período colonial, que concentra o grosso de sua produção intelectual. Na segunda parte, o objeto de sua atenção desloca-se da história em si para a reflexão sobre seus cultores, um cerrado diálogo com as obras históricas, exercício historiográfico do mais alto nível, sobretudo na tradução temporal do significado de grandes intérpretes do Brasil, tais como Capistrano de Abreu, Celso Furtado, Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda, entre outros.

O título é criativo. Foge ao batido Selected Essays. Tem a vantagem de revelar as inquietações que se abatem sobre o historiador, formado na melhor tradição do marxismo crítico, mas fustigado pelo vendaval do pós-modernismo historiográfico, que minou algumas de suas certezas absolutas, sobretudo no que diz respeito ao papel da cultura no processo histórico. Aproximações transmite ao leitor a sensação de um título incompleto, pois bem poderia ter sido Aproximações à história, mas ele se explicita no subtítulo: Estudos da história e historiografia, grafado na sobrecapa. Não é de menor importância elucubrar sobre o significado do título na trajetória do próprio Fernando Novais, assumido como objeto historiográfico. Enquanto Aproximações alude ao literário, remete ao alegórico, uma das formas do discurso pós-modernista apontado por Hydnum White, o subtítulo traciona a alegoria para a materialidade objetiva, a história tout court. Aproximações indica a dificuldade, ou mesmo impossibilidade, de se chegar ao conhecimento absoluto. Uma concessão à Nova História a tisnar sua heterodoxia marxista, mas Aproximações remete também ao cálculo, ao espírito analítico que se aloja no coração do constructo marxista em que se enraíza Fernando Novais, sobejamente conhecido por sua vinculação com o distinguido Seminário Marx. A acepção resultante seria entender por aproximações a busca de uma síntese entre velha e nova história, que somente um historiador que realizou a longa travessia da segunda metade do século 20 como objeto e sujeito da história poderia realizar. Por esta via, aproximações têm também o sentido de recolha de memória, de avaliação de trajetória intelectual.

O título remete, portanto, a uma concepção histórica que se esbate entre a arte e a ciência, dimensão científica que, contudo, prevalece no conteúdo do livro, pois em sua grande maioria foi produzido entre os anos 1950 e 80, fase de hegemonia inconteste, entre nós, das interpretações alicerçadas no marxismo. A complexidade historiográfica de nosso tempo se reflete no corpo seleto de pesquisadores, professores e intelectuais formados por Fernando Novais. Expressa-se na apresentação de Pedro Puntoni, que sobreleva a dimensão marxista de seus textos; na “orelha” de Laura de Mello e Sousa, que enfatiza sua abertura para a dimensão cultural. Ambos, Pedro e Laura, belos exemplos da abertura intelectual de Fernando Novais, sempre disponível a acolher o ar fresco das renovações historiográficas, sem cair nos modismos fáceis ou abandonar as convicções longamente acalentadas, um espaço de criatividade para seus discípulos e amigos, não obrigados a seguir a fatura do mestre.

Há, visivelmente, dois Fernandos; filhos univitelinos do perseverante mestre-escola Laurindo Novaes Junior. O segundo Fernando Novais nasce em 1997, no texto Condições da privacidade na Colônia, que, por sua força teórica e metodológica, poderia ter figurado na segunda parte do livro. Travejado no velho e bom marxismo, teve que responder ao impacto da Nova História, da tarefa de dirigir uma coleção sobre a História da vida privada no Brasil. Em meio ao renhido combate entre historiadores ancorados na visão de totalidade, epistemologicamente enraizados no marxismo, e aqueles dotados de uma visão fragmentária, narrativa, avessa ou mesmo hostil aos recursos da teorização no seu privilegiamento de um relativismo subjetivo, Fernando Novais incorporou a sábia virtude da mediação.

No prefácio da obra, não constante desta coletânea, critica a Nova História por não elaborar um aparato conceitual adequado à abordagem dos novos temas, apontando aí sua fragilidade essencial pelo acentuamento do caráter narrativo, reconhecendo na própria abertura para novas temáticas e o conseqüente enriquecimento do discurso historiográfico sua virtude primacial. Para contornar a sensação transmitida pela Nova História, a de pairar no ar, em permanente suspensão, por não trabalhar as formas de estruturação da sociedade, do Estado, da vida material, propôs um novo arranjo metodológico, através do qual os fragmentos se incrustassem na reconstituição mais compreensiva do processo histórico, repondo o cotidiano da vida privada na formação histórica brasileira, enlaçando de modo renovado velha e nova história. É por essa via que, sem abrir mão dos pressupostos mais gerais, implícitos nas determinações do antigo sistema colonial, repõe a escravidão como relação social dominante, a partir da qual perscrutaria a esfera do cotidiano e da intimidade, definida pela ambigüidade presente na descontinuidade, desconforto, instabilidade, provisoriedade, desterro, que emblematizam a vida na Colônia.

Por esta via, vislumbramos uma saída, um caminho estreito, nos dizeres de Roger Chartier, para quem rechaça, ao mesmo tempo, a redução da história a uma atividade literária de simples curiosidade, livre e aleatória, e a apreensão de sua cientificidade, um reduzido espaço de manobra para o historiador que quiser, como Fernando Novais, equilibrar-se no fio da navalha, que é operar entre a história artefato literário e a história discurso científico.

José Jobson de Andrade Arruda é historiador e professor titular da USP/Unicamp/USC.

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