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Entrevista

Aracy Amaral: Visionária da modernidade

Especialista em movimentos culturais brasileiros, historiadora da arte estabeleceu pontes com países latino-americanos ao elaborar estudos comparativos e organizar exposições transnacionais

Léo Ramos Chaves

Pesquisadora de movimentos artísticos brasileiros desde a década de 1950, a historiadora e crítica de arte Aracy Amaral realizou estudos pioneiros sobre o modernismo e as relações entre a cultura brasileira e a latino-americana. Foi a responsável pelo primeiro levantamento sistemático da obra da pintora Tarsila do Amaral (1886-1973), trabalho que se desdobrou em inúmeras publicações acadêmicas, artigos na imprensa e exposições. Professora titular aposentada de história da arte na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), dirigiu a Pinacoteca do Estado de São Paulo entre 1975 e 1979 e o Museu de Arte Contemporânea (MAC), da USP, entre 1982 e 1986. Em 2006, por sua contribuição à área de museologia, foi homenageada com o prêmio Fundação Bunge.

Suas pesquisas derivaram na curadoria de mais de 50 exposições, sendo uma delas o 34º Panorama da Arte Brasileira do Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo, em 2015, quando propôs trabalhar com obras de seis autores convidados, em um diálogo com a arte pré-histórica. A mostra mais recente, organizada em parceria com a historiadora da arte Regina Teixeira de Barros, foi inaugurada em setembro no MAM-SP. Ao mobilizar o conhecimento acumulado durante mais de 60 anos, Amaral conta que a exposição busca revelar os vários modernismos que emergiram nas artes e na cultura brasileira a partir do século XX, ampliando o horizonte de análise para além dos acontecimentos que envolveram instituições e artistas do eixo Rio-São Paulo.

Idade 91 anos
Especialidade
Modernismo, construtivismo e arte latino-americana
Instituição
Universidade de São Paulo (USP)
Formação
Graduação em jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1959), mestrado em filosofia (1969) e doutorado em artes pela USP (1971)
Produção
19 livros e mais de 50 curadorias de exposições

Paulistana, seu pai, Aguinaldo Amaral, trabalhou no Instituto Brasileiro do Café. Por conta desse emprego, a família morou em Buenos Aires, na Argentina, onde cursou os primeiros anos do ensino fundamental. Divorciada do artista plástico chileno Mario Toral, com quem teve um filho, o historiador e gravador Andre Toral, Amaral tem hoje duas netas.

Com formação eclética, antes de iniciar a carreira no campo das artes, trabalhou em diferentes veículos de comunicação e como redatora publicitária. Em 1972, comandou um programa diário transmitido pela rádio Jovem Pan sobre artes plásticas. Entre seus principais livros está Tarsila: Sua obra e seu tempo(Editora Perspectiva, 1975 – Editora 34/Edusp, 2010), resultado da tese de doutorado defendida na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, em 1971. Outros trabalhos de destaque são Arte e sociedade no Brasil (Callis, 2005), escrito em parceria com seu filho, Arte para quê? A preocupação social na arte brasileira (Studio Nobel, 2003), Artes plásticas na Semana de 22 (Editora 34, 1998) – reeditado em 2010 e que, neste ano, foi traduzido e publicado na Rússia – e Blaise Cendrars no Brasil e os modernistas (Martins Editora, 1970 – FAPESP/Editora 34, 2021). Nesse último, analisa a influência de Blaise Cendrars, pseudônimo do escritor suíço Frédéric Louis Sauser (1887-1961) no meio artístico nacional. Além disso, Amaral publicou, em espanhol, Arquitectura neocolonial: América Latina, Caribe, Estados Unidos (Memorial: Fondo de Cultura Económica, 1994) e Arte y arquitectura del modernismo brasileo: 1917-1930 (Fundación Biblioteca Ayacucho, 1978).

Em entrevista concedida por vídeo a Pesquisa FAPESP, às vésperas da inauguração da exposição no MAM, Amaral falou sobre as inquietações que envolvem as novas gerações de pesquisadores, as lacunas que identifica nos estudos de história da arte e propôs reflexões sobre o legado da Semana de Arte Moderna.

Reprodução Cartaz da Semana de 22, tema de exposição no MAM a partir de setembroReprodução

A senhora é uma das pioneiras no campo da curadoria no Brasil, com exposições e catálogos elaborados ainda na década de 1960. O que mudou nos últimos anos?
Muita coisa. Antes, a feitura de qualquer exposição, pesquisa ou levantamento de obras envolvia um processo extremamente artesanal. No começo, eu fazia tudo sozinha. Daí a dificuldade de organizar minha biblioteca de forma racional. Quando fazia convites, ou pedidos de empréstimos de obras para mostras, escrevia cartas com minha Olivetti Let-tera 22. Guardava a cópia em carbono e enviava a carta pelo correio. Foi por meio desse processo, por exemplo, que fiz a curadoria das exposições Tarsila: 50 anos de pintura, no MAC-USP em 1969; Alfredo Volpi: Pinturas 1914-1972, em 1972 no MAM do Rio de Janeiro, e, em 1973, a organização da primeira grande exposição com obras dos precursores da videoarte. Comecei a usar computador apenas na década de 1990.

Passados mais de 50 anos da primeira curadoria, desde 2019 a senhora esteve às voltas com a pesquisa para a exposição que acaba de ser aberta no MAM. Do que se trata exatamente?
Regina Teixeira de Barros e eu fomos convidadas para organizar uma mostra comemorativa do modernismo, tendo em vista os 100 anos da Semana de Arte Moderna, que serão completados em 2022. A princípio, a exposição deveria ter acontecido no primeiro semestre deste ano, mas a pandemia e os problemas que todos nós tivemos em 2021 obrigaram a adiar a inauguração. Nossa ideia foi enfocar não apenas a Semana de Arte Moderna e os acontecimentos de São Paulo, mas tentar evidenciar que o modernismo constitui um movimento que aconteceu em todo o Brasil. Cobrimos o período que vai de 1900 a 1937, incluindo o pré-modernismo, a eclosão de modernismos na década de 1920 e o panorama artístico depois da queda da bolsa de Nova York, em 1929. Do ponto de vista da inquietação por parte de artistas, o modernismo já existia desde o final do século XIX. Até a década de 1930, ele vai alterando seus modos de expressão em diferentes campos artísticos, incluindo poesia, música, arte popular e artes visuais. Isso significa que o desejo de renovação que emergiu no começo daquele século se intensificou na década de 1910, impulsionado pelo gradativo desligamento do Brasil do período monárquico e da implantação da República, em 1889. Na exposição, incluímos trabalhos de artistas que algumas pessoas olharão e talvez dirão: “Mas isso é moderno? Não parece moderno…”. Comparadas ao que se passava na Europa, ou seja, com a produção de expoentes de movimentos de vanguarda como o cubismo ou surrealismo, algumas obras, de fato, não são modernas. Apesar disso, expressam o desejo de ser moderno, ou uma ansiedade por modernizar-se, que só se concretiza de forma mais forte na década de 1920. O modernismo é um movimento que não aconteceu só em São Paulo, mas também em Pernambuco, no Rio Grande do Norte, no Pará e no Amazonas. À sua maneira, antes da Semana de 22, cada região já manifestava esse desejo de atualizar a linguagem artística e se distanciar de modelos estéticos de décadas precedentes. Para a exposição, elaboramos um catálogo de ensaios com reflexões de pesquisadores de todo o Brasil, especialistas em diferentes períodos históricos.

O modernismo foi impulsionado pelo desligamento do país do período monárquico e pela implantação da República

Que trabalhos evidenciam a existência desses outros modernismos para além do eixo Rio-São Paulo?
Há um grande painel de Cícero Dias [1907-2003] chamado Eu vi o mundo… ele começava no Recife, com mais de 10 metros, produzido em 1929. Ele permite pensar o modernismo a partir de um centro que não é São Paulo nem Rio de Janeiro. O italiano Filippo Tommaso Marinetti [1876-1944] escreveu o Manifesto futurista em 1909. No mesmo ano, o documento foi publicado em um jornal da Bahia e em outro do Rio Grande do Norte. Em 1930, o pernambucano Vicente do Rego Monteiro [1899-1970] trouxe para o Brasil uma grande exposição de artistas modernos franceses que circulou pelo Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. Iniciativas como essas nutriram toda uma nova geração de artistas brasileiros. Intelectuais de todo o país estavam alertas ao processo de renovação que se desenvolvia no mundo. Na mostra no MAM, optamos por exibir o painel de Cícero Dias de forma que ele domina o espaço expositivo, ao lado de obras mais conhecidas de artistas como Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti [1897-1976] e Candido Portinari [1903-1962].

Como esse movimento de renovação se relaciona com o processo de modernização das cidades brasileiras?
Muitas razões explicam o desejo do Brasil de se reconstruir naquela época. O país passava por um momento de grande prosperidade. No Norte, por exemplo, a borracha estimulava a economia, enquanto em São Paulo o mesmo acontecia com o café, que se tornou o carro-chefe do Produto Interno Bruto [PIB]. As cidades se expandiam e se urbanizavam, buscando uma modernização por meio de reformas arquitetônicas. São emblemáticas, nesse sentido, as transformações ocorridas no Rio de Janeiro, com a derrubada do morro do Castelo, em 1920, e a construção da avenida Central, que depois passou a se chamar avenida Rio Branco. Em São Paulo, no começo do século XX, foram feitas alterações no Vale do Anhangabaú, por meio da canalização do rio e a criação de jardins. Observamos que essa inquietação também acontecia nas artes visuais e na música, que procuravam descobrir um outro Brasil.

A arte contemporânea está empobrecida. Mas, entre artistas populares, vejo uma criatividade que assombra

Qual foi a influência dos movimentos de vanguarda europeus nesse contexto?
Muitos intelectuais brasileiros que futuramente foram chamados de modernistas estudaram na Europa. Desde os mais conhecidos, como o escritor Oswald de Andrade [1890-1954], passando por Vicente do Rego Monteiro [1899-1970], que era do Recife. Na década de 1910, Tarsila do Amaral se modernizou depois de frequentar, na França, o ateliê do pintor e desenhista cubista Fernand Léger [1881-1955]. Di Cavalcanti também esteve em Paris, na década de 1920. Anitta Malfatti [1889-1964] foi à Alemanha e a Nova York, em um percurso completamente diferente da trajetória usual de artistas daquela época que, com frequência, optavam por estudar na França. O escultor Víctor Brecheret [1894-1955] aperfeiçoou-se em estudos na Itália. O desejo de modernidade surgiu nas artes, na arquitetura e na literatura nacional a partir desses contatos com o panorama de outros lugares.

Como esse desejo de modernidade se desenvolveu nas décadas seguintes?
Quando Getúlio Vargas [1882-1954] chegou ao poder, em 1930, criou um ambiente que permitiu aglutinar diferentes vertentes do espectro político. Além disso, criou um projeto para implementar aulas de canto orfeônico em escolas brasileiras, inspirado nas ideias de Heitor Villa-Lobos [1887-1959], que defendia a inclusão de educação musical em instituições de ensino básico. A tentativa do Partido Comunista de tirar Vargas do poder, em 1935, foi influenciada pelo que acontecia  na União Soviética, da mesma forma que o movimento fascista na Itália e o nazismo na Alemanha colaboraram com a politização de artistas brasileiros, que não tinham essa postura na década de 1920. Isso ecoou nas artes, como na produção de  Di Cavalcanti, ou nos trabalhos de viés popular de Tarsila do Amaral, como a famosa tela Operários, de 1933. Se analisarmos a década de 1930, veremos como ela traz ecos da modernidade e da preocupação com a realidade social que permeava o imaginário artístico em todo mundo. O recorte temporal da exposição no MAM vai até 1937 com o golpe de Vargas para instituir o Estado Novo, regime que perdurou até 1945. Assim, traçamos um panorama que vai do desejo de modernização, das tentativas de ser moderno na década de 1920, momento em que a Semana de Arte Moderna representava um divisor de águas, chegando até a década de 1930, caracterizada por um processo de conscientização social do meio artístico, incluindo a música, a literatura e as artes plásticas.

Arquivo Nacional / Wikimedia Commons Amaral pesquisou a influência de vanguardas europeias na obra de artistas brasileiros, como Di Cavalcanti (1897-1976). Na foto, o pintor diante de um de seus trabalhos, em 1965Arquivo Nacional / Wikimedia Commons

A senhora fez doutorado na Escola de Comunicações e Artes e lecionou na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Como isso reverberou em sua trajetória?
Minha inquiteção talvez tenha me levado a sempre me deslocar pelo Brasil e o exterior. Como estava na FAU, também tinha muito interesse por arquitetura. Realizei uma longa viagem pela América Latina para pesquisar e fotografar construções que estabelecessem diálogos com a arquitetura rural paulista, como parte de um estudo sobre as relações entre a arquitetura da América hispânica com São Paulo. O trabalho deu origem ao livro A hispanidade em São Paulo – Da casa rural à Capela de Santo Antônio [Livraria Nobel, Edusp, 1981 – Editora 34, 2017]. Nessa obra, que ganhou o prêmio Jabuti na área de Ciências Humanas, em 1982, defendo a existência de aspectos estéticos similares entre habitações do início da ocupação do estado no período colonial com as casas de hacienda, presentes em diferentes partes da América do Sul. Essa era uma visão diferente dos historiadores da arquitetura daquela época, que falavam de um isolamento da casa paulista em relação à arquitetura de outros lugares. Sob minha curadoria, a ideia de promover a 1ª Bienal de Arte Latino-americana, realizada em São Paulo em 1978, também partiu desses deslocamentos. As pesquisas sobre a hispanidade em São Paulo me mobilizaram a viajar por toda a América Latina, enquanto os estudos sobre a preocupação social na arte brasileira me forçaram a fazer contato com o país. Quando era professora da USP, também dirigi a Pinacoteca e o MAC. Com isso, fui abrindo portas. Penso que, hoje, o problema das universidades é que os professores ficam fechados em seus gabinetes, preocupados com a evolução da titulação. Também passei por isso, mas ao mesmo tempo tinha vontade de aventurar-me e de trabalhar em outros contextos. Como resultado desses interesses ampliados, organizei, em 1973, a Expo-Projeção-73, para mostrar o trabalho de artistas, naquela época emergentes, como Hélio Oiticica [1937-1980], Antônio Dias [1944-2018] e Antonio Manuel, que estavam mexendo com novas mídias, como vídeo e outras formas de expressão não usuais. Nesse período, eu integrava o conselho do MAM do Rio e viajava frequentemente a Nova York em razão de minhas pesquisas acadêmicas. Com isso, consegui fomentar um intercâmbio entre o universo das artes e a universidade.

Nos últimos anos, temos observado a emergência de questões identitárias no campo das artes. Como vê esse movimento?
Uma das explicações para esse movimento talvez passe pela ideia de a arte contemporânea estar um pouco empobrecida. No campo da videoarte, por exemplo, há um esgotamento, uma falta de renovação. Por outro lado, quando você olha os artistas populares, encontra uma criatividade e uma sabedoria ancestral que assombram. Estamos muito mais atentos à presença de manifestações de afrodescendentes no Brasil do que estávamos há 15 anos. De certa forma, parte da revolta e da conscientização sobre o assunto deriva da influência de movimentos de afro-americanos nos Estados Unidos. Assim como aquele país, o Brasil sempre sofreu, mas esse sofrimento não se manifestava de forma tão gritante como agora. Hoje, ligamos a televisão e vemos anúncios de casais miscigenados, mesmo que isso não corresponda rigorosamente à realidade cotidiana. As novas gerações recebem uma injeção de conscientização e alertas sobre o preconceito contra a população negra, que se arrasta por séculos. Em termos educacionais, o Brasil está abaixo, inclusive, de outros países latino-americanos. Aqui, afrodescendentes e populações indígenas sofrem isso de maneira atroz. Há uma efervescência na criação artística indígena e afrobrasileira que está desvinculada dos grandes centros urbanos. Hoje essas produções estão em todas as pautas, na agenda de galerias, colecionadores e museus. Mesmo a arte dita popular, ou seja, de populações que vivem mais recolhidas no interior do país, passou a ser buscada pelo mercado de forma intensa a partir da década de 1990. Se antes as obras desses artistas estavam na mão de alguns poucos colecionadores, hoje observamos a abertura de galerias dedicadas exclusivamente a esse tipo de arte. Esse é um fenômeno positivo de nosso tempo, mas também é resultado de uma importação. O Brasil, infelizmente, é um importador de tendências de países desenvolvidos.

A senhora fez um levantamento sistemático da obra de Tarsila do Amaral,  produziu análises e exposições sobre inúmeros modernistas, trabalhou com o universo do concretismo e da videoarte, investigou o engajamento político na arte brasileira e elaborou estudos sobre a presença da identidade hispânica na arquitetura de São Paulo. Que temas desejaria ver pesquisados no campo da história da arte?
Historicamente, o Brasil sempre foi alheio ao que se passa no contexto cultural de países latino-americanos. O intelectual do país está afastado do convívio com a região e, com isso, estamos um pouco divorciados do que eles fazem. A América Latina dialoga entre si, mas o Brasil não dialoga com a América Latina. Isso é um problema. Então, eu pergunto: será exclusivamente por causa da diferença da língua? Ou o Brasil, por julgar-se um gigante esplêndido, não se interessa e dá as costas à região, buscando ficar de frente para a Europa e os Estados Unidos? Mais da metade de nossa população tem herança africana e tampouco dialogamos com a África. O Brasil é um país periférico. Por que não se articula com a África para pensar temas envolvendo a história da música e da alimentação, por exemplo? Faltam estudos para investigar a relação do Brasil com a América Latina, tanto no tempo presente como no passado. Análises sobre os séculos XVIII e XIX e sobre movimentos artísticos de caráter popular em Minas Gerais e no Nordeste também são necessários, além de investigações sobre a importância da informação estrangeira na formação de nossos pesquisadores de história da arte.

Sempre observei inúmeros objetos que podiam render pesquisas. De repente, sinto que a vida é breve para fazer tudo o que quero

Há estudos que a senhora gostaria de desenvolver?
Tenho pesquisas que não pude levar a cabo e outras que foram interrompidas. Há, ainda, projetos que não dei conta de assumir. Quando eu tomava ônibus de um país a outro na América do Sul, observava inúmeras situações e objetos que podiam render trabalhos. Algumas ideias permaneceram no fundo de minha mente. Então, de repente, sinto que a vida é muito breve para fazer tudo o que quero. Por causa disso, quando vejo jovens universitários sem saber o que pesquisar, tenho vontade de sacudi-los e dizer que é preciso olhar em volta. Tenho a desconfiança de que os jovens não têm apreço pela leitura. Também não existe uma base firme para fazer pesquisa no Brasil. As instituições não estão sólidas suficientes para apoiar as novas gerações. Conheço jovens do interior que se mudam para os alojamentos da Cidade Universitária, na USP, em São Paulo. Mesmo antes da pandemia, eles não iam ao cinema, teatro ou a exposições porque não tinham dinheiro. Tampouco podem conhecer os arredores de São Paulo. Isso afeta sua motivação e criatividade para pesquisar. Antigamente, também tínhamos essas dificuldades, mas penso que havia mais entusiasmo. Pergunto-me: em que medida os novos meios de comunicação têm contribuído para os estudantes serem mais acomodados? Não sei responder. Jogo essa pergunta para você.

Como fica o trabalho do curador em tempos de pandemia?
A exposição em cartaz no MAM sobre a Semana de Arte Moderna foi a mais difícil de toda minha vida profissional. Em 2019, quando Regina e eu fomos convidadas para fazer a pesquisa que embasaria a mostra, ainda tivemos um tempo no segundo semestre e nos dois primeiros meses de 2020 para visitar museus e começar a selecionar as obras participantes. Porém, com a chegada da pandemia, tudo foi interrompido drasticamente e passamos a trabalhar somente por intermédio de reuniões virtuais. Houve um momento de absoluto silêncio e ninguém sabia o que ia acontecer, nem mesmo os prazos que teríamos para fazer as entregas. Imagine pensar em planejar uma exposição só com reuniões remotas, por computador ou celular. Perdeu-se aquele caráter prazeroso que tínhamos ao encontrar e conhecer pessoas. Não dá para ficar todo tempo conversando por meio de quadrados de videoconferências. Obras que tínhamos pensado em apresentar tiveram seu empréstimo negado, surgiram novas regras de exibição e circulação de pessoas em museus. Fomos obrigadas a reduzir o número de trabalhos a serem expostos. Fizemos três ou quatro relações de obras que deveriam integrar a mostra até chegarmos à lista definitiva. Mesmo assim, muitas instituições já não queriam fazer o empréstimo, pensando nas atividades comemorativas sobre a Semana de Arte Moderna, que serão organizadas em 2022. Uma exposição como essa, com uma pandemia em andamento, tendo de contatar colecionadores e instituições responsáveis pelas obras que queríamos solicitar e localizar pesquisadores de várias partes do país para colaborar com o catálogo, foi um desafio pesado. Como todos, acho agradável poder, às vezes, ir a um restaurante, tomar um café e encontrar conhecidos e amigos. Esses pequenos prazeres da vida ninguém pôde ter nesses tempos. Com deslocamentos tolhidos ou reduzidíssimos, o sentimento de culpa quando saímos também ocorre. Não sabemos se haverá público nas exposições. Vivemos um tempo cruel, tanto para quem é sênior quanto em especial para as gerações jovens.

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