Em um fluxo contínuo, as ondas do mar formam correntezas e arrastam os sedimentos marinhos como um rio paralelo à praia. Estimado pela primeira vez para todo o litoral brasileiro, o volume transportado pode variar 20 vezes, dependendo da praia. O maior volume médio, entre Alagoas e o norte do estado da Bahia, é de 460 mil metros cúbicos (m3) anuais, o equivalente a 105 caminhões de areia por dia indo para o sul; seria o suficiente para encher um sobrado de quatro andares com área de 100 metros quadrados por andar.
Já o menor transporte, entre o estado do Rio de Janeiro e o sul da Bahia, é de, em média, 109 mil m3 anuais, o equivalente a 25 caminhões por dia seguindo para o norte, ou uma casa térrea de 100 metros quadrados. Os cálculos foram feitos por pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande (Furg), com base em modelagem por computador, e detalhados em um artigo publicado em março deste ano na revista Regional Studies in Marine Science.
“O estudo indica a direção predominante do transporte de sedimentos e a quantidade de areia carregada em praias de todas as regiões do país”, diz a engenheira civil Thaísa Trombetta, principal autora do artigo. “O ponto de partida do estudo são os dados sobre o vento, que usamos para simular as ondas. Depois, aplicamos fórmulas para calcular o transporte de sedimentos, baseadas na altura e direção das ondas e no ângulo de incidência das ondas em relação ao litoral.” Para validar os dados, os pesquisadores os compararam com outros estudos científicos.
A simulação abrange um período longo, de 1997 a 2015, e calculou o trânsito de sedimentos em cada praia (ver infográfico). As ondas movimentaram o máximo de 765 mil m3 por ano em Pina, em Pernambuco, enquanto, no outro extremo, apenas 37 mil m3 de areia circularam no balneário Lucena, na Paraíba, de acordo com o trabalho.
“O transporte costeiro de sedimentos é um dos fatores mais importantes para a configuração da linha de costa e ambientes costeiros, como as praias”, comenta o oceanógrafo Eduardo Siegle, do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (IO-USP), que não participou do estudo. “No passado, o aporte de sedimentos pelos rios era maior, chegando ao litoral e sendo redistribuído pela ação das ondas. Atualmente o balanço de sedimentos na costa é bastante afetado pelas barragens, que reduzem o volume de sedimentos que chegam ao litoral.”
Pesquisadores de São Paulo, da Bahia e do Espírito Santo reconhecem a relevância desse trabalho, o primeiro de abrangência nacional, e concordam com a maioria dos sentidos de transporte de sedimentos ao longo do litoral. Mas observam que não é possível usar suas conclusões para dimensionar a perda de sedimentos – a erosão – ou o acúmulo – a progradação –, responsáveis pela reconfiguração de 60% do litoral brasileiro ao longo dos últimos anos. Segundo eles, resultados mais exatos dependeriam de levantamentos mais detalhados da entrada e saída de sedimentos em cada praia.
O estudo prevê o encontro de correntes com sedimentos, uma vinda do norte e outra do sul, em Guarapari, no Espírito Santo, o que indicaria acúmulo de sedimentos. Ali, porém, existe “uma forte erosão, inclusive das falésias”, afirma a geógrafa Jacqueline Albino, da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). “Mas é difícil saber até que ponto a erosão é natural ou se está associada à urbanização, à destruição de dunas e à construção dos portos, que bloqueiam os sedimentos.” Segundo ela, um dos lugares que apresentam progradação da linha de costa por acúmulo de sedimentos é o delta do rio Doce. “Mas é algo esperado nas proximidades de desembocaduras fluviais”, diz.
Albino ressalta o papel das dunas na proteção contra a erosão, por armazenarem sedimentos e amortecerem as ondas. Em praias com dunas e sem construções, as ondas maiores perdem energia conforme avançam. “A onda pode levar uma parte da areia da duna para a praia em condições de maior energia. Quando não há dunas, a onda bate na construção e volta com mais força, levando os sedimentos da praia”, diz ela.
“Em algumas praias, a direção do transporte descrita pelo estudo não corresponde à realidade”, observa o geólogo José Maria Landim Dominguez, da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Segundo ele, em alguns locais, como no litoral de Alagoas, a erosão é mais imaginária do que real. “Os moradores constroem os muros de suas casas e até mesmo rampas de acesso para barcos diretamente na praia, transmitindo uma falsa impressão de que a linha de costa está ameaçada pela erosão.”
No município de Caravelas, no sul da Bahia, o litoral é protegido das ondas por recifes do complexo de corais do arquipélago de Abrolhos. Mas, com o aumento estimado no nível do mar de cerca de 20 centímetros no último século, as ondas começaram a passar com mais força por cima dos recifes. Em consequência, houve mudanças consideráveis na morfologia costeira, desde a década de 1960, indicadas por imagens de satélite e relatos de pescadores.
Uma delas foi a abertura e o alargamento de um braço do canal principal do estuário. “A partir da abertura do novo canal, simulações indicaram alterações na dinâmica do estuário. Ocorrem mudanças nas velocidades de correntes e salinidade, por exemplo, fatores que podem levar a alterações na fauna e flora locais”, diz Siegle. Ele descreveu essas transformações em um artigo publicado em outubro de 2019 na revista Estuaries and Coasts.
Caso o nível do mar suba 2 metros até o fim do século XXI, como preveem alguns modelos climáticos, a força das ondas pode dobrar em regiões tropicais, atualmente mais protegidas por recifes, e ocasionar mudanças ainda maiores. Aumento do nível do mar, barragens e ocupação desordenada do litoral ainda devem alterar bastante o desenho do litoral brasileiro.
Artigos científicos
SIEGLE, E. et al. Shoreline retraction and the opening of a new inlet: Implications on estuarine processes. Estuaries and Coasts. v. 42, p. 2004-19. 28 out. 2019.
TROMBETTA, T. B. et al. An overview of longshore sediment transport on the Brazilian coast. Regional Studies in Marine Science. v. 35, 101099. mar. 2020