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Resenha

Arqueologia da representação colonial

João Adolfo Hansen, organizado por Cilaine Alves Cunha e Mayra Laudanna | Edusp | 344 páginas | R$ 60,00

A publicação de Agudezas seiscentistas e outros ensaios registra a rica produção de João Adolfo Hansen na sua área específica de pesquisa, qual seja, o estudo crítico e os documentos importantes das letras coloniais. Como primeiro volume que reúne artigos publicados em livros e revistas nacionais e estrangeiras, além de um texto inédito, a previsão de edição de mais dois volumes enriquecerá a bibliografia sobre o tema. Organizada por Cilaine Alves Cunha e Mayra Laudanna, a coletânea reveste-se em fonte de lições sobre as práticas letradas dos séculos XVI, XVII e XVIII. Completa ainda a obra um posfácio de Leon Kossovitch.

A complexidade dos ensaios, publicados sob a rígida escolha do autor, das práticas de representação luso-brasileiras convida o leitor a compartilhar de rara erudição, revelando um desafio para quem se dedica ao estudo de manifestações retóricas, poéticas, históricas e políticas dos períodos enfocados. Na intenção explícita de propor a “arqueologia da representação colonial”, Hansen merece ser destacado como crítico múltiplo, por enveredar em áreas como história, antropologia, filologia, semiologia, poesia e retórica. A contribuição de seu conhecimento para o diálogo entre essas áreas permite inscrevê-lo como representante de um lugar crítico pautado não só pela especialidade de atuação acadêmica como pela produção de vasta rede de informações que compõe o corpus escolhido. Com acuidade histórica, sem os vícios da temporalização contínua e evolutiva, o autor, logo no início, afirma: “Desde o livro que publiquei em 1989 sobre a sátira atribuída a Gregório de Matos e Guerra, venho fazendo uma arqueologia da representação colonial, reconstruindo-a sincronicamente, segundo as categorias e preceitos do seu presente, e diacronicamente, segundo suas apropriações e valores de uso”.

Um dos méritos da obra reside na intenção do autor em empregar categorias e procedimentos presentes nas análises das práticas discursivas como exemplos de vários tempos. Nesse particular, Hansen rejeita o anacronismo como efeito de generalização e, no seu entender, de cometer o gesto de “desistoricização neoliberal”. A generalização e a universalização impostas pelos estilos de época estariam sendo movidas pelo princípio de totalização, por atuarem como entidades classificatórias, nos moldes de um esquema temporal evolutivo.

No entanto, embora sua posição esteja correta, poderíamos nos deter no conceito de anacronismo interpretado em sentido distinto ao endossado por Hansen, como o defendido pelo escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986), citado pelo autor a propósito de outro texto, mas dando sequência às suas ponderações sobre a ekphrasis, no artigo “Categorias epidíticas da ekphrasis”. Nesse texto, considera pertinente observar “os processos de longa duração de transmissão de técnicas e modelos e das apropriações descontínuas deles”, ao defender que autores situados em tempos diversos escolhem suas amizades e inimizades artísticas, o que comprova a presença de tempos simultâneos e de emulações descontínuas. Borges concebia o anacronismo como esse encontro que rompia com a linearidade das descobertas e instituía o diálogo no presente com formas artísticas fora de seu tempo. Penso que a solução de Hansen se aproxima desse anacronismo borgiano, por meio do qual não se descarta nem a historicidade do fenômeno discursivo nem a possibilidade de sua proliferação no futuro.

Os 14 ensaios comprovam a abrangência e a importância do pensamento do autor por discorrer, com minúcia e erudição inegáveis, temas nem sempre aprofundados pela teoria e crítica literária. Trata-se tanto da abordagem de textos pictóricos, sem a exclusividade da ficção, ao lado de agudas reflexões sobre uma série de tópicos distintos. Acrescente-se que esses e os demais trabalhos desenvolvem, com precisão e rigor, a articulação erudita entre história e literatura, filologia e exegese dos conceitos, política e propriedade autoral, povo e corpo político, entre outros procedimentos poéticos e retóricos. Pesquisadores das humanidades se sentirão enriquecidos com a leitura desta obra que se impõe como uma das mais relevantes contribuições aos estudos da arqueologia da representação colonial.

Eneida Maria de Souza é professora emérita da Universidade Federal de Minas Gerais.

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